Nos dias 13 e 14.03.2013 o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento de ações diretas ajuizadas pelo Conselho Federal da OAB e pela CNI contra diversos dispositivos constantes na chamada “Emenda do Calote” (Emenda Constitucional nº 62/09) com a expressa declaração de inconstitucionalidade: a) da expressão “na data de expedição do precatório”, contida no § 2º do art. 100 da CF; b) dos §§ 9º e 10 do art. 100 da CF; c) da expressão “índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança”, constante no § 12 do art. 100 da CF, do inciso II do § 1º e do § 16, ambos do art. 97 do ADCT; d) do fraseado “independentemente de sua natureza”, inserido no § 12 do art. 100 da CF, para que aos precatórios de natureza tributária se apliquem os mesmos juros de mora incidentes sobre o crédito tributário; e) por arrastamento, do art. 5º da Lei nº 11.960/09; e f) do § 15 do art. 100 da CF e de todo o art. 97 do ADCT.
A decisão foi tomada por maioria, vencidos os Ministros Gilmar Mendes, Teori Zavascki e Dias Toffoli. Na ocasião, deliberou-se apreciar questão relativa a eventual modulação de efeitos da decisão oportunamente (cf. STF – Pleno – ADIs 4.357 e 4.425, Rel. Min. Ayres Britto, red. p/ ac. Min. Luiz Fux), como já tivemos oportunidade de registrar em escritos anteriores.
Em 11.04.2013, o Ministro Luiz Fux proferiu despacho determinando, ad cautelam, que os Tribunais de Justiça de todos os Estados dessem imediata continuidade aos pagamentos de precatórios, na forma como já vinham realizando até a decisão referida acima, segundo a sistemática vigente à época, respeitando-se a vinculação de receitas para fins de quitação da dívida pública, sob pena de sequestro.
Em 24.10.2013, o julgamento foi retomado. O Relator levantou questão de ordem na qual propôs a modulação temporal dos efeitos da decisão, nos termos do art. 27 da Lei nº 9.868/99. Em seguida, pediu vista o Ministro Roberto Barroso.
Em caráter preliminar, durante o debate prévio ao início do voto do Relator na questão de ordem, foi lembrado pelo Presidente que o quorum para eventual modulação estaria preenchido, na medida em que oito Ministros estavam presentes a sessão. O Ministro Marco Aurélio, no entanto, prontamente manifestou o seu reiterado entendimento no sentido contrário ao instituto da modulação (por entender que flexibiliza a rigidez constitucional inerente ao nosso ordenamento jurídico).
Antes mesmo da prolação do voto do Relator, o Ministro Roberto Barroso antecipou aos seus pares que pediria vista no caso para melhor análise, dada a repercussão generalizada da questão jurídica e a necessária busca por uma solução consensual e factível de cumprimento por todos.
Na proposta de modulação que formulou na questão de ordem que suscitou, o Ministro Luiz Fux explicitou, a título de esclarecimento prévio, que: a) à luz da inconstitucionalidade declarada pelo STF, seria necessário cuidado para não transformar o voto vencido em vencedor, a pretexto de modular a decisão; b) a sistemática declarada nula efetivamente entrou em vigor, surtiu efeitos e foi aplicada durante os últimos quatro anos, tendo-se consolidado ao longo do decurso do tempo; c) a atual programação orçamentária e financeira de diversos Estados e Municípios foi forjada levando em conta o teor da Emenda Constitucional nº 62/09, agora declarado nulo pelo STF; c) a aplicação cega e irrestrita do efeito retroativo (ex tunc) inerente à regra da nulidade pode conduzir a um agravamento da ofensa dos valores constitucionais mais básicos; d) em razão da consolidação de tais fatos durante o transcurso de tempo impõe-se homenagear o princípio da segurança jurídica através da ponderação do princípio da nulidade das leis.
Consideradas tais premissas, o Ministro Luiz Fux decidiu que, de modo geral, o efeito atribuído à declaração de inconstitucionalidade é retroativo (ex tunc) e com aplicação imediata, inclusive com o reconhecimento de que não se pode tutelar a confiança de quem atua de forma abusiva no exercício do poder estatal privilegiando a si mesmo. Aliás, reconheceu que o interesse social é evidentemente contrário aos interesses da atividade legiferante, com a premiação de medidas inconstitucionais que viriam a gerar efeitos, ainda por alguns anos, com a completa subversão da ordem jurídica. Além de incabível a modulação como regra geral, ela também não se revela necessária. Afinal, não se pode admitir que o Poder Público lance mão de expediente inconstitucional para reduzir o seu passivo com a sociedade brasileira. Aqui não há qualquer violação à segurança jurídica.
Contudo, quanto à declaração de inconstitucionalidade do § 15 do art. 100 da CF e do art. 97 do ADCT, ambos incluídos pela Emenda Constitucional nº 62/09, deve sim ter a modulação temporal dos efeitos de tal decisão, sob o fundamento de que: a) a satisfação imediata de todos os credores do Estado poderia impactar sobremaneira a consecução dos demais misteres constitucionais, afetando a esfera jurídica de inúmeros cidadãos que nada tem a ver com a recalcitrância do Poder Público em pagar suas dívidas, embora fosse desejável que os entes públicos honrassem suas dívidas pontualmente; bem como b) o exercício de 2013 encontra-se próxima do fim e boa parte do planejamento orçamentário de 2014 foi realizado com base na sistemática prevista pela Emenda recentemente declarada inconstitucional pelo STF.
Desse modo, o Relator entende necessária e episódica a manutenção temporária do regime jurídico especial por cinco anos. Esclareceu que a proposição inicial que formulou, logo depois da conclusão do julgamento de mérito, foi estabelecendo o prazo de um ano. Contudo, ouvindo diferentes partícipes do processo objetivo, inclusive a Autora, chegou a flexibilizar a fórmula inicial (deslocando o termo para cinco anos). Antecipa também que a partir do pedido de vista formulado pelo Ministro Roberto Barroso, o processo de maturação pode levar a uma fórmula intermediária melhor.
A forma da modulação que propôs foi com a observância das seguintes regras:
1) consideram-se válidos os pagamentos dos precatórios realizados até o trânsito em julgado das ações diretas, nas modalidades leilão e quitação por acordo, porquanto ficarão declarados nulos apenas com eficácia ex nunc, sendo certo que não poderão ser usados doravante;
2) mantêm-se os percentuais mínimos da receita corrente líquida vinculados ao pagamento de precatórios (art. 97, §§ 1º e 2º), permitindo aos entes federados dar continuidade ao pagamento de suas dívidas sem comprometer os serviços básicos de relevante interesse público;
3) até o final do exercício financeiro de 2018, os entes federados que estiverem realizando o pagamento de acordo com o regime especial aqui modulado não poderão sofrer sequestro de valores, exceto no caso de não liberação tempestiva dos recursos de que tratam o inciso II e os §§ 1º e 2º do art. 97 do ADCT ex vi do art. 97, § 13, do ADCT;
4) na forma do art. 97, § 10, do ADCT, no caso de não liberação tempestiva de tais recursos vinculados ao pagamento de precatórios, haverá: a) sequestro da quantia nas contas dos entes federados na forma do § 4º até o limite do valor não liberado; b) constituir-se-á alternativamente por ordem dos Tribunais em favor dos credores direito líquido e certo auto-aplicável, independente de regulamentação, à compensação automática com débitos líquidos lançados por esta contra aqueles; c) e, havendo saldo em favor do credor, o valor terá automaticamente poder liberatório do pagamento de tributos dos entes federados devedores até onde se compensarem; d) e o Chefe do Poder Executivo responderá na forma da Lei de Responsabilidade Fiscal e de Improbidade Administrativa.
Além disso, o Relator esclareceu que o entendimento exposto aplica-se tanto aos precatórios pendentes de expedição como também aos que venham a surgir no futuro até o final do exercício financeiro de 2018.
Por fim, registrou que a proposta de modulação já incorpora as concessões máximas que se pode admitir em nome da segurança jurídica. Qualquer passo além desses implicaria, na prática, em fazer prevalecer o voto vencido no julgamento das ações diretas, no sentido de que seria constitucional a criação do regime especial afinal rechaçado pela maioria.
Em adendo final, o Relator expôs enorme preocupação com o adequado cumprimento da decisão do STF no prazo estabelecido (de cinco anos) pelos entes públicos destinatários. Nesse sentido, se concretizado o desrespeito ao prazo de cinco anos, defende a aplicação rigorosa e imediata do novo art. 100 da Constituição da República com o sequestro de valores no caso de descumprimento, bem como a responsabilidade civil e criminal do Presidente do Tribunal. Afinal, deixar de pagar precatórios não pode jamais voltar a ser uma opção para os governantes, disse.
Entende, ademais, que seria o momento oportuno para rever a orientação da Suprema Corte quanto à intervenção federal, quando motivado pelo descumprimento de decisão judicial pelo não pagamento de precatórios, estaria sujeita a comprovação do dolo e da atuação deliberada do gestor público de se furtar ao direito, com o esvaziamento do instituto. Com isso, propõe uma revisão na jurisprudência da Corte para que seja possível tornar efetiva a decisão adotada pelo STF (e, portanto, resguardando a sua credibilidade). Deixa a provocação para reflexão do Ministro Roberto Barroso.
A partir da proposta formulada pelo Ministro Luiz Fux e das relevantes questões que levantou no seu voto, cabe aguardar o voto do Ministro Roberto Barroso que, certamente, trará esclarecimentos adicionais para a solução dessa relevante questão jurídica problemática que tanto envergonha a gestão pública nacional. É confortante saber que há preocupação dos Ministros em relação à posição de conforto dos entes devedores, inclusive quanto ao resguardo da credibilidade da decisão do STF.
Ao final, a medida cautelar concedida anteriormente pelo Ministro Luiz Fux foi ratificada para que continue a ser cumprida ao menos a Emenda Constitucional nº 62/09 até que seja proclamado o resultado final do julgamento quanto ao tema específico da modulação de tal decisão.