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Justiça Militar brasileira em uma análise de fato e de direito:

renovar e atualizar é preciso

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04/12/2013 às 14:42
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2. O julgamento de civis e a ofensa ao princípio do juiz natural

O STF vem demonstrando nítida aversão quanto à possibilidade de submissão de civis à jurisdição militar em tempo de paz e vem sustentando o entendimento de que o julgamento nessas hipóteses, não raras vezes, ofende o princípio constitucional do juiz natural (STF. 2010: 4/5):

A tentativa de o Poder Público pretender sujeitar, arbitrariamente, a Tribunais castrenses, em tempo de paz, réus civis, fazendo instaurar, contra eles, perante órgãos da Justiça Militar da União, fora das estritas hipóteses legais, procedimentos de persecução penal, por suposta prática de crime militar, representa clara violação ao princípio constitucional do juiz natural (CF, art. 5º, LIII).

Não se pode deixar de acentuar, bem por isso, o caráter anômalo da submissão de civis, notadamente em tempo de paz, à jurisdição dos Tribunais e órgãos integrantes da Justiça Militar da União, por suposta prática de crime militar, especialmente se se tiver em consideração que tal situação - porque revestida de excepcionalidade – só se legitima se e quando configuradas, quanto a réus civis, as hipóteses delineadas em sede legal e cujo reconhecimento tem merecido, do Supremo Tribunal Federal, estrita interpretação. (grifos originais)

Acompanhando tendência internacional, nossa Corte Suprema tem contrariado e reformado inúmeras decisões do Superior Tribunal Militar – STM – e garantido que os civis mantenham-se sujeitos, em regra, ao ordenamento jurídico comum, entretanto, com nítido reforço em decisões que procuram influenciar o legislador constituinte ou ordinário, a excluir em caráter definitivo, a previsão legal de julgamento de civis do foro militar (STF. 2010: 6):

1. Ao contrário do entendimento do Superior Tribunal Militar, é excepcional a competência da Justiça castrense para o julgamento de civis, em tempo de paz. A tipificação da conduta de agente civil como crime militar está a depender do ‘intuito de atingir, de qualquer modo, a Força, no sentido de impedir, frustrar, fazer malograr, desmoralizar ou ofender o militar ou o evento ou situação em que este esteja empenhado’ (CC 7.040, da relatoria do ministro Carlos Veloso).

2. O cometimento do delito militar por agente civil em tempo de paz se dá em caráter excepcional. Tal cometimento se traduz em ofensa àqueles bens jurídicos tipicamente associados à função de natureza militar: defesa da Pátria, garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem (art. 142 da Constituição Federal).

Mostra-se grave, por isso mesmo, a instauração, em tempo de paz, de inquérito policial militar (IPM) contra civil, com o objetivo de submetê-lo, fora dos casos autorizados em lei, a julgamento perante a Justiça Militar da União!

Cabe rememorar, por oportuno, histórica decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos da América (verdadeira “landmark ruling”), proferida no julgamento, em 1866, do caso “Ex Parte Milligan” (71U.S. 1).

A Suprema Corte dos Estados Unidos da América, nesse importante precedente, ao examinar decisão condenatória motivada por fatos ocorridos no curso da Guerra Civil americana, veio a invalidar tal condenação, que impusera a pena de morte (enforcamento), por traição, a um acusado civil, Lambden P. Milligan, por entender que, mesmo que se tratasse de um crime praticado nas circunstâncias de tempo e de lugar em que ocorrera, ainda assim um civil não poderia ser julgado por uma Corte militar (“martial court”), desde que os órgãos judiciários da Justiça comum estivessem funcionando regularmente.

Nesse julgamento, enfatizou-se, por unânime votação, que a Constituição não se suspende em períodos de crise ou de emergência nacional, pois ela representa, enquanto estatuto do poder e instrumento das liberdades, a lei suprema que a todos se aplica, tanto a governantes, como a governados, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra. Concluiu-se, por tal razão, naquela decisão, que o julgamento de civis, por tribunais militares (cortes marciais), era inadmissível, nos locais em que houvesse tribunais civis em pleno e regular funcionamento. (grifos originais)

O julgamento de civis na Justiça Militar da União – JMU – tem seu registro inicial no art. 84 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1934 (CRFB) e assim perdurou textualmente até a Constituição de 1967 (art. 111 da CRFB/37; art. 108 da CRFB/46 e art. 112 da CRFB/67), ocorrendo importante alteração do texto constitucional quando da promulgação da Constituição Cidadã de 1988. A carta em vigor, em seu art. 124, contrariando os textos constitucionais anteriores, retirou a expressa submissão de civis aos tribunais militares, remetendo o conceito de crime militar ao ordenamento infraconstitucional (ratione legis), bem como, taxativamente e acertadamente, no art. 125, manteve proibido o julgamento de civis pela Justiça Militar Estadual.

O que teria motivado o constituinte de 1988 a manter a possibilidade de julgamento de civis pela JMU nos parece um tanto quanto obscuro e duvidoso, pois se o mantém desde sempre em nível estadual, natural que tivesse uniformizado o comportamento em todas as esferas judiciais militares. Com todo o respeito, a obscuridade e a dúvida surgem pelo fato de ter havido relevante modificação no texto da lei maior nos artigos supra destacados, entretanto, desalinhada vinculação da competência jurisdicional castrense para a matéria infraconstitucional, ou seja, para a legislação penal militar prevista no Dec. Lei 1001 - Código Penal Militar (CPM) e no Dec. Lei 1002 - Código de Processo Penal Militar (CPPM), ambos de 1969.

Esta questão se complica no caso brasileiro pelo fato de possuir forças militares estaduais (Polícia e Bombeiro Militar) e forças militares da União (Exército, Marinha e Aeronáutica). “Na realidade, diríamos que o formato da polícia militar brasileira é uma distorção, uma anomalia que nasce com a preocupação de combater as primeiras greves, de combater os primeiros movimentos de reivindicação social que ocorreram no começo da República” (DALLARI. 2010: 1).

No Brasil, as Unidades de Polícia Militar passaram a ter características intrínsecas de quartéis de forças armadas e, paralelamente a isto, se criou as justiças militares estaduais, a que passaram a ficar submetidos os seus membros que cometessem infrações. Registra-se que a Justiça Militar Estadual – JME – passa a figurar nas constituições brasileiras somente a partir daquela promulgada no ano de 1946, em seu art. 124, dois anos após a edição do Dec. Lei n. 6.227 de 24 de janeiro de 1944, que instituiu o novo código penal militar.

Verifica-se que por não existir uma clara delimitação da aplicação penal militar (rationne legis) em fatos não estritamente de natureza castrense em tempo de paz, muitos conflitos e divergências surgem entre o STM e o STF quando o autor é civil, conforme observamos em alguns julgados extraídos da jurisprudência da Suprema Corte:

HC 99671 / DF - DISTRITO FEDERAL

Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE

Julgamento:  24/11/2009           Órgão Julgador:  Segunda Turma

EmentaHABEAS CORPUS. LESÃO CORPORAL CONTRA MILITAR EM SERVIÇO DE VIGILÂNCIA, GARANTIA E PRESERVAÇÃO DA ORDEM PÚBLICA. CRIME CULPOSO. AUSÊNCIA DE INTENÇÃO DE ATINGIR INSTITUIÇÃO MILITAR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. PRECEDENTES. ORDEM CONCEDIDA. 1. Não há na conduta descrita na peça acusatória qualquer intenção de o paciente atingir instituição militar. 2. O simples fato de a vítima ser militar no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, só por si, não é suficiente para atrair a competência da Justiça Castrense. 3. Consoante já decidiu essa Suprema Corte, a tipificação da conduta de civil como crime militar depende do "intuito de atingir, de qualquer modo, a Força, no sentido de impedir, frustrar, fazer malograr, desmoralizar ou ofender o militar ou o evento ou situação em que este esteja empenhado." (CC 7.040/RS, Rel. Min. Carlos Veloso, DJ 22.11.1996). No mesmo sentido HC 86.216/MG, Rel. Min. Carlos Brito, DJ 24.10.2008).4. Habeas corpus concedido.

HC 100230 / SP - SÃO PAULO

Relator(a):  Min. AYRES BRITTO

Julgamento:  17/08/2010           Órgão Julgador:  Segunda Turma

EmentaEMENTA: habeas corpus. PICHAÇÃO DE EDIFÍCIO RESIDENCIAL PERTENCENTE AO EXÉRCITO BRASILEIRO. AGENTES CIVIS. NÃO OCORRÊNCIA DE CRIME MILITAR. EXCEPCIONALIDADE DA JUSTIÇA CASTRENSE PARA O JULGAMENTO DE CIVIS, EM TEMPO DE PAZ. ORDEM CONCEDIDA. 1. O MPM tem legitimidade para impetrar HC em favor de quem se ache constrangido em sua liberdade de locomoção, direta ou indiretamente, atual ou iminente. No caso, o habeas corpus se revela apto a favorecer os pacientes com medidas despenalizadoras, inclusive as previstas na Lei 9.099/1995.2. Ao contrário do entendimento do Superior Tribunal Militar, é excepcional a competência da Justiça castrense para o julgamento de civis, em tempo de paz. A tipificação da conduta de agente civil como crime militar está a depender do "intuito de atingir, de qualquer modo, a Força, no sentido de impedir, frustrar, fazer malograr, desmoralizar ou ofender o militar ou o evento ou situação em que este esteja empenhado" (CC 7.040, da relatoria do ministro Carlos Veloso).3. O cometimento do delito militar por agente civil em tempo de paz se dá em caráter excepcional. Tal cometimento se traduz em ofensa àqueles bens jurídicos tipicamente associados à função de natureza militar: defesa da Pátria, garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem (art. 142 da Constituição Federal).4. No caso, nada revela a vontade dos pacientes de atentar contra as Forças Armadas, tampouco a de impedir a continuidade de eventual operação militar ou atividade genuinamente castrense. Conduta que, em tese, se amolda ao tipo do art. 65 da Lei 9.605/1998.5. Ordem concedida para determinar a remessa do procedimento investigatório para a Justiça comum federal.

2.1 Precedentes de modernidade e democracia

O debate se torna relevante, pois no dia 27 de junho de 2008, uma Comissão de Juristas entregou ao Presidente do Senado, projeto de reforma do Código Penal Brasileiro, Decreto-Lei 2848 de 07 de dezembro de 1940, sob a presidência do Ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça. Torna-se oportuno não deixar de lado matéria penal relacionada à justiça castrense, sob pena de implantarmos e sedimentarmos em nosso território, legislações penais consideravelmente distintas entre si. Nosso país, como signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, em um ambiente de democracia plena, não pode se destacar negativamente no campo do direito comparado, mantendo os civis em jurisdição militar em tempo de paz.

Na América do Sul, registramos recentemente dois países alinharem sua legislação penal infraconstitucional no intuito de darem pleno cumprimento as normas Internacionais, em especial, ao Pacto de Direito Civis e Políticos e a Convenção América de Direitos Humanos. A Argentina derrogou o Código de Justiça Militar por intermédio da Lei n. 26.394, de 29 de agosto de 2008, modificando o Código Penal Comum, onde fez inserir os tipos infracionais castrenses. O Chile, de forma menos abrangente, por intermédio da Lei n. 20.477, no dia 30 de dezembro de 2010, modificou a competência dos tribunais militares deixando seu campo de ação concentrado de maneira exclusiva em causas em que estejam implicados os uniformizados, retirando desse âmbito os civis. “Essa tendência já vinha sendo registrada, modernamente, em sistemas normativos estrangeiros, no sentido da extinção (pura e simples) de Tribunais Militares em tempo de paz ou, então, da exclusão de civis da jurisdição penal militar como é o caso de Portugal, Colômbia, Paraguai, México e Uruguai” (STF, 2010, p. 1).

Diante dessa transparente tendência do STF em alinhar-se com a moderna visão do direito internacional, penso que a postura de nossa Corte Constitucional não contraria a manutenção da Justiça Militar em tempo de paz em nosso território. Entretanto, conforme ROMERO (2001), afirmo que o foro castrense, caso pretenda continuar subsistindo, deve retomar sua definição ontológica de crime militar, voltada exclusivamente aos militares, sem o que não haveremos de alcançar em plenitude uma sociedade democrática:

A la justícia militar se la conoce como distinta a las comunes de aplicación a los no militares, es independiente de la justicia civil, y esto tiene plena justificación, puesto que sería poco imaginable suponer a un magistrado civil sacado de sus estrados para seguir a un ejército, actuando en um ambiente que desconoce, así en la Roma de los Césares, los tribunales militares juzgaban a todos quienes cometían delitos en el campo de batalla, es decir, fundamentalmente se juzga a los militares, como consecuencia de la una infracción cometida en actos de servicio, que es la circunstancia que le permita ser juzgados por sus pares, no en razón de las personas, sino em función de delito cometido, algo así como un especie de res militaris.

La institución armada está regida por un conjunto de normas constitutivas del "orden jurídico militar", que  comprende la totalidad de las legislación que se refiere a la organización y funcionamiento de las Fuerzas Armadas, las mismas que tienen cono primordial objetivo el mantenimiento de sus fines esenciales, es decir para que dicha institución funcione correctamente es necesario que sus componentes se sujeten a una complejidad de obligaciones y deberes que emanan de la Constitución, de las leyes, de los reglamentos y de las órdenes superiores, constitutivos de la llamada "disciplina militar".

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3. A perda da identidade física dos juízes militares e a parcialidade do escabinato

Em sua vertente prática, a Justiça Militar da União (JMU) é formada por juízes de direito militar de primeira instância e juízes militares e civis de segunda instância integrantes do Superior Tribunal Militar (STM). De forma semelhante, a Justiça Militar Estadual (JME) é formada por juízes de direito militar de primeira instância e juízes militares e civis de segunda instância integrantes do Tribunal de Justiça Militar (TJM).

Na primeira instância da JMU e JME, os juízes de direito militar são togados (concursados) e ocupam as vagas por intermédio de concurso público de provas e títulos, o que lhes confere total legitimidade, imparcialidade e identidade no exercício da atividade jurisdicional. Na segunda instância da JMU e JME, os juízes são nomeados, respectivamente, por ato do Presidente da República e Governador do Estado, entre integrantes da ativa do último posto da carreira militar (Generais, Brigadeiros, Almirantes e Coronéis), e membros do poder judiciário, ministério público e ordem dos advogados do Brasil.

No âmbito nacional, a JMU processa e julga os crimes militares federais, definidos em lei, praticados por militar federal (ativa, reserva e reformado), militar estadual como se civil fosse (ativa, reserva e reformado) e pelo civil, propriamente dito. Nessa esfera, todos os processos criminais são julgados pelos Conselhos de Justiça, formado por um magistrado togado e quatro juízes militares (oficiais), sob a presidência do oficial militar de maior posto.

Na esfera estadual, a JME julga somente os crimes militares estaduais, definidos em lei, praticados por militar estadual (ativa, reserva e reformado). Nessa esfera, os processos cíveis e criminais, são julgados, singularmente, pelos magistrados togados, quanto aos crimes militares praticados contra civis e contra ações disciplinares das autoridades militares. Os Conselhos de Justiça (oficiais) julgam os demais crimes militares, ressaltando que a presidência será sempre do juiz de direito (togado). Neste aspecto, inequivocamente, a JME, além de uma conformação mais moderna e democrática, encontra-se alinhada com as recomendações da Corte Interamericana de Direitos Humanos no que se refere ao não processamento e julgamento de civis em foro castrense, o que infelizmente não ocorre em nível federal.

As ofensas a princípios constitucionais e processuais aparecem e se agravam em ambas as justiças militares, federal e estadual, quando da formação dos escabinatos, ou seja, os Conselhos de Justiça, integrados por magistrados e Oficiais militares da ativa. Esses Conselhos, ainda, se dividem em Permanentes e Especiais, sendo que os primeiros atuam em processos envolvendo Praças e o segundo em processos envolvendo Oficiais ou Oficiais e Praças quando em concurso de agentes de crimes militares.

Destaco que, embora se dê a denominação de Conselhos Permanentes, na verdade, são de caráter temporário, pois há obrigatoriedade legal de serem sorteados e substituídos a cada três meses. Assim, no curso de um processo, que poderá durar anos, essa situação provoca a atuação distinta e, diga-se de passagem, bastante indevida, de inúmeros conselhos e julgadores. Esta rotatividade fática de escabinatos traz a certeza da completa ausência da identidade física do juiz em relação aos militares que neles atuam. Na JMU, todos os processos passam nas mãos desses conselhos e, na JME, somente aqueles em que não há civil como vítima.

Por outro lado, os Conselhos Especiais são reunidos toda vez que ocorrer a necessidade de realização de um ato dentro do processo e, da mesma forma, observamos um rodízio indevido de julgadores que o integram, impossibilitando que os juízes militares se envolvam no âmbito material da busca pela verdade e aplicação da justiça. Não conhecem os integrantes desses conselhos, adequadamente, de como foram produzidas as provas do processo e de como se comportaram as pessoas durante os respectivos depoimentos, embasando suas decisões em obscuras convicções provenientes da leitura fria das peças que compõem o documento ou, pior, acompanhando simplesmente, o entendimento esposado e as deliberações apresentadas pelo juiz de direito togado.

Outro aspecto relevante, como os Conselhos Permanentes e Especiais são formados, além do juiz de direito (togado), por mais quatro juízes “militares da ativa”, resta evidente nestes últimos, ausência do princípio da imparcialidade, pois pertencem, simultaneamente, a dois poderes distintos, executivo e judiciário. Não nos parece coerente que um juiz possa integrar e exercer, mesmo que por um breve lapso temporal, atividades funcionais no poder executivo e judiciário estando, no caso dos Oficiais integrantes do escabinato, submetidos ao poder disciplinar de suas respectivas forças militares.

Ser juiz sem algumas importantes prerrogativas da função (inamovibilidade e independência) não confere segurança e imparcialidade aos julgadores militares, que posteriormente a sua atuação nessa justiça especializada, retornam ao ambiente dos quartéis, bem como ao eventual convívio com o autor da infração, em uma situação muito peculiar e constrangedora. Nestes termos, Raul Zaffaroni (2011, p. 182), renomado doutrinador e integrante da Suprema Corte Argentina, destaca que:

Un tribunal, sea ordinario o especializado, no necessariamente debe integrarse con jueces técnicos (la própria Constitución establece el juicio por jurados), pero inevitablemente debe conformarse con jueces independientes, lo que significa que no pueden integrarlos funcionarios sometidos al poder disciplinario del poder ejecutivo. Un juez no puede estar sometido a ningún poder disciplinario que no sea el de responsabilidad política, ni a outra coacción que la que por sus actos incumbe a cualquier ciudadano o habitante.

Para acentuar a distorção, note que o Tribunal de Justiça Militar dos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, como o Superior Tribunal Militar da União em Brasília têm, na sua formação, juízes militares vitalícios (Coronéis, Generais, Brigadeiros e Almirantes) os quais, embora pertençam ao poder judiciário, integram, inexplicavelmente, a ativa de suas Corporações. Lamentavelmente, muitos militares sustentam o indevido entendimento de que esses juízes militares detém vínculo funcional com as respectivas forças militares onde, na verdade, exercem jurisdição e nenhuma ação de comando.

As atribuições e competências de todos os magistrados, inclusive a dos juízes militares, não são estabelecidas por Estatutos Militares, mas encontram-se descritas na Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Com todo o respeito, mas a bem da palavra, falta-lhes uma melhor identidade, pois embora atuem uniformizados durante as sessões nos Tribunais, legalmente, não se submetem aos regulamentos militares e não detém poder hierárquico sobre nenhum militar da ativa. A regra a prevalecer nos Tribunais Militares deveria acompanhar a metodologia aplicada aos juízes do STF e STJ, com status exclusivo de magistrados. Pela importância e prerrogativas da função, torna-se impensável um representante do Poder Judiciário obter, simultaneamente, status funcional no poder executivo ou legislativo.

As instâncias existentes na Justiça Militar Estadual e Federal também são distintas e pouco uniformes. Nos Estados de MG, SP e RS, onde existe Tribunal de Justiça Militar, as ações militares correm em primeira e segunda instância castrense, depois, caso haja recurso, migram para o STJ e/ou STF. Nos demais estados da federação que não possuem Tribunal Militar, as ações iniciam em uma vara castrense especializada dentro da justiça comum e, caso haja recurso, seguem para o Tribunal de Justiça do Estado, STJ e/ou STF. Na esfera federal, as ações militares tramitam da primeira instância (auditorias) direto para o STM e, caso haja recurso, vão para o STJ e/ou STF.

Além de todos esses aspectos, cabe refletir sobre o fato da segunda instância no Tribunal de JME de MG possuir número superior de juízes aos da primeira instância castrense (sete a seis)[2], o do Rio Grande do Sul, número semelhante de juízes nas duas instâncias (seis a sete)[3] e de São Paulo, um pouco menor (sete a nove)[4]. Comparando-se a composição dos tribunais castrenses estaduais com o da JMU, verificamos que este possui 39 juízes em primeira instância e 14 na segunda[5] e o Tribunal de Justiça de MG possui cerca de 920 juízes para 127 desembargadores[6].

3.1 A competência distinta e incomparável do escabinato e do tribunal do júri

Embora não concordemos com a composição e funcionamento de nenhum dos dois institutos, pela morosidade e parcialidade que conferem ao processo, aqueles que se aventuram em tentar comparar a atuação dos oficiais membros do escabinato com a dos civis que atuam do Tribunal do Júri (TJ), praticam um grande e inescrupuloso equívoco. Diferente da atuação dos oficiais juízes militares integrantes dos Conselhos Especiais e Permanentes, que julgam seus pares e pertencem à mesma organização militar dos réus, os jurados do TJ, embora civis julgando civis, não pertencem à mesma empresa ou instituição dos réus. São cidadãos julgando cidadãos sem qualquer vínculo funcional ou profissional. Não se comparam coisas diferentes, pois nem semelhante é a constituição, a atuação, o tempo de duração, o processamento e o julgamento realizado por estes dois personagens jurídicos. Ainda, no tribunal do júri, o juiz de direito, determina o ritmo do processo e os jurados, ao final, exercem a soberania do voto.

Historicamente, o fundamento para os defensores do escabinato, embora sem nenhum cunho científico, é o fato de os militares, membros dos conselhos, conhecerem melhor que os juízes civis os dogmas militares e o âmbito da caserna, o que facilitaria entender a ação praticada pelo autor do fato. Nesse sentido, teriam, em tese, melhores condições de decidir por uma justa sentença. Creio sinceramente que se trata de um grande risco ideológico, haja vista a grande possibilidade de se julgar “o autor” e não “o fato”, e em direito penal, a busca da verdade real para uma justa sentença, deve estar focada na conduta humana praticada (fato típico), jamais no autor do fato. E convenhamos, quando se julga um par, ofusca-se o fato, evidencia-se o autor do fato.

Finalmente, para os ainda defensores do escabinato na Justiça Militar, além dos aspectos descritos, reforçamos nossa posição de contrariedade, destacando a maior complexidade e morosidade dos processos castrenses determinado pela atuação de cinco julgadores em todo o rito procedimental, ouvindo, perguntando, resolvendo incidentes e produzindo provas, os quais conversam e se debatem, em regra, somente durante as audiências. No júri, de modo diverso, os jurados acompanham integralmente o processo que é regulado pelo juiz de direito, estão sempre reunidos e deliberam sobre o fato ao final da ação.

Na justiça castrense, se há um julgador que conhece de todo o processo, este certamente é somente o juiz de direito militar (magistrado togado) e não os juízes militares (juízes eventuais e temporários). Para aqueles que possam dizer ser a justiça militar mais célere e eficiente em relação à justiça comum, atrevo a dizer que, se esse fenômeno ocorre, não é porque esta possui um rito processual mais célere ou melhores julgadores, mas, simplesmente, porque possui um número infinitamente menor de processos, basta ver os arquivos e as estatísticas nas páginas oficiais dos respectivos tribunais de justiça.

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Sobre o autor
Paulo Roberto de Medeiros

Oficial da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais Professor de Direito Penal e Processo Administrativo da Academia de Polícia Militar de Minas Gerais na Escola de Formação de Oficiais Bel em Direito e aluno do Curso de Doutorado em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires, Argentina Especialista em Segurança Pública pela Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte/MG Especialista em Educação Física pela Pontifícia Universidade Católica do PR Aluno do Curso de Gestão Estratégica da Academia de Polícia Militar.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Paulo Roberto. Justiça Militar brasileira em uma análise de fato e de direito:: renovar e atualizar é preciso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3808, 4 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25972. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Partindo dos estudos realizados no Curso de Doutorado em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires - UBA, analisamos o contexto em que está inserido o Direito Penal Militar brasileiro, haja vista as manifestações e entendimentos expressos pela CIDH e pelo STF, em face do atual estado democrático de direito.

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