Introdução
“Um rei deve reinar ou morrer, mas nunca ser julgado”[1]. Essa frase famosa dita por Morrison, advogado de defesa de Rei Luis XVI, representa o fundamento do poder absoluto do soberano. Segundo o dístico de Morrison, não seria possível julgar o rei (ou o Papa), pois a lei positiva previa uma exceção a seu favor, de modo que seus atos jamais poderiam ser considerados crimes. Enrique E. Marí sustenta que “a lei de exceção mencionada não era outra que aquela que considerava o rei in solutus, não limitado pelo direito”.[2] Em outras palavras: o rei derramava sangue sem culpa.
Todavia, a consolidação e o desenvolvimento do Direito Internacional Penal no pós-Segunda Guerra Mundial obrigam a revisão da teoria clássica de soberania ao impor aos Estados e seus governantes o respeito aos direitos humanos.
Em 2011, completaram-se 50 anos do histórico e polêmico julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann. O julgamento de Eichmann pela Corte Distrital de Jerusalém, em 1961, representou, ao lado dos julgamentos de Nuremberg e Tóquio, uma ruptura com a tradição jurídica que garantia a impunidade de agentes estatais violadores dos direitos humanos. Eichmann foi julgado por fazer parte da engrenagem nazista que arquitetou a “Solução Final”, o plano para o extermínio da população judaica na Alemanha e territórios ocupados. Com o término da Segunda Guerra Mundial, emergiu o Direito Internacional dos Direitos Humanos, baseado em valores universais inerentes à dignidade humana. A comunidade internacional, chocada com as barbáries indizíveis cometidas, sobretudo nas quatro primeiras décadas do século XX, impulsionou a criação do Direito Internacional das Gentes, colocando o homem sob a proteção jurídica de tratados internacionais e o elevando à condição de sujeito de Direito Internacional.
Essa ideia levou à criação de Tribunais Penais Internacionais com a finalidade de julgar os mais graves crimes cometidos contra o status humano. Foram criados, assim, os Tribunais de Nuremberg e Tóquio destinados ao julgamento de nazistas e oficiais japoneses responsáveis pelos crimes cometidos contra a Humanidade e a paz internacional durante a Segunda Grande Guerra. Foram esses tribunais que determinaram de maneira definitivas o locus standi do homem no Direito Internacional.[3]
Inspirados por esses tribunais do pós-guerra e pelo ideal da universalidade dos direitos humanos, alguns Estados passaram a realizar seus próprios julgamentos penais de criminosos nazistas, como é o caso de Israel (o já mencionado caso Adolf Eichmann), Alemanha (caso Klaus Barbie) e Itália (caso Erich Priebke).[4]
Apesar das críticas à legitimidade do julgamento dos nazistas em Nuremberg e de Eichmann em Jerusalém (apenas para citar esses dois casos), o seu processo criminal representa a consolidação do novo paradigma instaurado pelo Direito Internacional Penal: o da accountability dos agentes estatais responsáveis por violações aos direitos humanos. Isso, claro, vai de encontro ao dístico formulado por Morrison e à ideia que o direito nacional não pode ser limitado pelo ordenamento jurídico internacional. Contudo, o novo paradigma determina que o poder do soberano não é ilimitado. O limite do poder estatal são os direitos humanos.
Responsabilidade penal individual internacional: o soberano no banco dos réus
Pela arquitetura internacional de proteção aos Direitos Humanos erigida sobre os escombros das duas Grandes Guerras Mundiais ocorridas no século XX, o indivíduo passa a ser sujeito de direitos no plano internacional, mas também de deveres perante a comunidade internacional. Essa nova realidade significa uma revolução copernicana na teoria do Direito Internacional preconizada desde Hugo Grocius, segundo a qual apenas os entes estatais poderiam ser considerados como sujeitos de Direito Internacional. Ao violar as normas internacionais protetivas dos direitos humanos, o indivíduo pode ser levado a Tribunais Internacionais ou até mesmo a Cortes nacionais (através da jurisdição universal) para ser responsabilizado por seus atos atentatórios à paz e a segurança da Humanidade.
Baseado no princípio do direito costumeiro chamado de aut dedere aut judicare, o sistema jurídico-penal internacional impõe a obrigação a toda comunidade internacional de julgar ou extraditar quem seja acusado de cometer os mais graves crimes contra os direitos humanos, como genocídio, crimes contra a Humanidade, crimes de guerra e crime de agressão (os chamados core crimes ou crimes essenciais).
Segundo M. Cherif Bassiouni, jus cogens, como valor de construção histórica e filosófica, é uma obrigação erga omnes ou norma inderrogável de cumprimento obrigatório (imperativa) por todos os sujeitos de Direito Internacional, independentemente da existência de tratado. É, em suma, direito costumeiro internacional e, como tal, deve ser respeitado por todos os membros da comunidade internacional.[5]
Veja-se que a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, em seu art. 26, estabelece o costume como fonte do Direito Internacional e, inclusive, determina que em caso de conflito entre tratado e norma imperativa de Direito Internacional geral (jus cogens), aquele deve ceder em favor deste (art. 53).
Ao se considerar os crimes essenciais contra os direitos humanos como parte do jus cogens internacional, visto que a comunidade internacional assim os compreendeu em inúmeros tratados acerca da matéria (sobretudo, o Estatuto de Roma)[6], entende-se, por conseguinte, que os Estados têm o dever de processar e julgar esses crimes que ofendem toda a Humanidade.
Consoante o primado do aut dedere aut judicare[7], o Estado tem o dever de processar ou extraditar quem tenha praticado crime contra os direitos humanos, bem como o dever de não conceder asilo ou refúgio a quem tenha praticado crimes dessa espécie. Esse princípio foi inclusive confirmado pela Resolução 3074/1973 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), que estabeleceu princípios aplicáveis ao processo dos crimes de guerra e dos crimes contra a Humanidade. Do mesmo modo, a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas de 1994 veda a edição de leis de anistia referentes a crimes dessa natureza. Outros tratados invocam esse princípio, como, por exemplo, a Convenção para a Prevenção e a Repressão ao Genocídio de 1948, as Convenções de Genebra de 1949 e a Convenção contra a Tortura de 1984.
Diante dessa obrigação decorrente do jus cogens internacional, as Cortes nacionais podem, ou melhor, devem julgar os perpetradores de crimes de lesa-humanidade, de acordo com suas próprias leis e tratados internacionais, ainda que o crime não tenha ocorrido no território do Estado que exerce a jurisdição e ainda que o acusado ou a vítima não seja dele nacional. A isso a doutrina denomina de “competência repressiva universal” ou de “jurisdição universal”, cujo objetivo é evitar o chamado “paraíso de impunidade” (safe heaven) para esses criminosos.[8] Foi esse mecanismo que permitiu o julgamento de Eichmann pela Corte israelense, embora os crimes tivessem sido cometidos em território europeu e muito antes da criação do próprio Estado de Israel.[9]
O anseio pela criação de uma Corte internacional que pudesse julgar os crimes praticados contra a paz e a segurança da Humanidade remonta ao século XV. No ano de 1474, foi criado um Tribunal ad hoc para julgar os crimes de guerra cometidos por Peter von Hagenbach durante sua administração da cidade de Breisach. Ao ser deposto, von Hagenbach foi levado a julgamento pelo Tribunal criado por uma coalizão de Estados independentes, como Áustria e França, e cidades do Sacro Império Romano-Germânico, pelo qual foi considerado culpado e condenado à morte.
Não obstante esse evento histórico notável, a comunidade internacional apenas voltou a defender a criação de uma Corte dessa mesma natureza após a Primeira Guerra Mundial. O Tratado de Versalhes de 1919 estabeleceu a possibilidade da criação pelas potências vencedoras de um Tribunal Internacional ad hoc para julgar os crimes de guerra e contra a Humanidade cometidos sob o comando do soberano alemão Kaiser Guilherme II. Todavia, esse Tribunal nunca chegou a ser instalado ante a recusa da Holanda em entregar o Kaiser às potências aliadas.[10]
No entanto, por pressão das potências vencedoras, a Alemanha julgou, a partir de 1921, suas autoridades perante a Corte Suprema de Leipzig, porém, de 900 suspeitos, somente 12 foram submetidos a julgamento por crimes de guerra e desses apenas 6 foram condenados.[11]
Outras tentativas infrutíferas foram encetadas pela comunidade internacional no anseio de criar um Tribunal Penal Internacional, como o Tratado de Sèvres de 1920, que pretendia o julgamento das autoridades turco-otomanas pelo genocídio dos armênios (em 1927, adveio o Tratado de Lausanne, que anistiou os turcos), e a Convenção contra o Terrorismo de 1937 (que nunca entrou em vigor), que determinava a criação de uma Corte Internacional para o julgamento de acusados de atos terroristas.[12]
Em 1990, à Assembleia Geral das Nações Unidas foi apresentado, pela Comissão de Direito Internacional da ONU, após mais de 40 anos de discussões, um projeto de um tribunal para processar os Crimes contra Paz e Segurança da Humanidade. No entanto, a criação dessa Corte permanente ficou adiada.
Na mesma época, a comunidade internacional se viu confrontada com os crimes bárbaros cometidos contra a população civil nos conflitos dos Bálcãs e de Ruanda. Para permitir a punição dos envolvidos nos massacres, a ONU criou, via resolução do Conselho de Segurança e baseada na interpretação do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, o Tribunal Internacional para a ex-Iugoslávia (Resolução 808 de 1993) e o Tribunal Internacional para Ruanda (Resolução 955 de 1994).[13] Ambos os Tribunais foram criados com jurisdição retroativa, suscitando, por isso, as mesmas críticas destinadas aos Tribunais do pós-guerra e ao julgamento de Eichmann.[14]
Apenas em 1998, o ideal da criação de uma Corte internacional de caráter permanente para o julgamento de crimes contra a paz e a segurança da Humanidade se tornou realidade. Foi criado o Tribunal Penal Internacional (TPI) pelo Estatuto de Roma. Com a 60ª ratificação, o tratado entra em vigor, sendo então definitivamente instituído o TPI em 1º de julho de 2002.
O novo paradigma ganha força
Animado pelo espírito dos Tribunais que o antecederam, o Tribunal Penal Internacional consolida o paradigma da responsabilidade penal individual internacional, o qual está expresso no art. 25 do Estatuto de Roma.
Segundo o art. 27 do Estatuto de Roma, nenhuma imunidade, seja ela funcional ou pessoal, pode ser invocada perante o TPI, razão pela qual o Tribunal pode julgar chefes de Estado, ainda que estejam no poder.[15]
À luz do Direito Internacional Penal, não se sustenta a imunidade funcional do chefe de Estado que, valendo-se da sua capacidade oficial, comete atos que configuram crimes de guerra, genocídio, crimes contra a Humanidade ou crime de agressão. Consoante defende Salvatore Zappalà, o afastamento da imunidade funcional de chefes de Estado quando se tratar de core crimes já faz parte do jus cogens internacional.[16]
Nos estatutos dos Tribunais ad hoc que o antecederam, a exclusão da imunidade do chefe de Estado já era prevista.[17] Tal princípio foi referendado posteriormente pela Resolução 1/95 (1946) da Assembleia Geral da ONU, bem como pelo artigo IV da Convenção do Genocídio de 1948 e pelo artigo 7º do projeto de Código de Crimes contra a Paz e a Segurança da Humanidade, da Comissão de Direito Internacional da ONU (1996).
O princípio da não admissão da imunidade funcional dos chefes de Estado quanto aos crimes essenciais tem sido consagrado também pela prática dos Tribunais Internacionais, por Tribunais híbridos (criados através de acordo entre o Estado interessado e a ONU), e pelas Cortes nacionais no exercício da competência repressiva universal.
No Tribunal Penal para a ex-Iugoslávia, o ex-presidente da Sérvia foi acusado de ter cometido genocídio, crimes contra a Humanidade e crimes de guerra enquanto era chefe de Estado.[18] Em 1998, Jean Kambanda, Primeiro-Ministro da Ruanda à época do massacre dos tutsis em 1994, foi condenado à pena de prisão perpétua por crime de genocídio e crimes contra a Humanidade pelo Tribunal Penal Internacional para Ruanda.
No TPI, O atual Presidente do Sudão, Omar al-Bashir, é acusado de genocídio, crimes contra a Humanidade e crimes de guerra. Contra ele, inclusive, foi expedida uma ordem de prisão pelo TPI, ainda pendente de cumprimento. O mesmo ocorreu com o ex-presidente da Líbia, Muammar al-Gaddafi, procurado pelo TPI, enquanto ainda estava no poder, em razão de crimes contra a Humanidade e crimes de guerra.[19]
Também no TPI, o ex-presidente da Costa do Marfim, Laurent Gbagbo, aguarda desde 2011 seu julgamento por crimes contra Humanidade cometidos contra oponentes políticos. Do mesmo modo, Uhuru Muigai Kenyatta, atual presidente em exercício do Quênia, foi indiciado perante o TPI por crimes contra a Humanidade cometidos em 2007-2008 contra oponentes políticos. À época dos fatos, Kenyatta era Vice Primeiro-Ministro do país, tendo sido eleito presidente em 2013.
No Tribunal Especial para Serra Leoa, um tribunal híbrido criado em 2003 sob os auspícios da ONU, Charles Taylor, ex-presidente da Libéria, foi condenado, em abril de 2012, a 50 anos de prisão por ter perpetrado crimes contra a Humanidade e crimes de guerra durante a guerra civil que assolou o país vizinho desde 1996.
Khieu Samphan, ex-presidente do Camboja durante o regime tirânico do Khmer Rouge nos anos 1970, aguarda detido seu julgamento perante o Tribunal Extraordinário para o Camboja, criado em 2003 por tratado entre a ONU e o governo cambojano. As acusações são de crimes contra a Humanidade, genocídio e crimes de guerra.
No plano nacional, estimuladas pelo desenvolvimento do Direito Internacional Penal, houve tentativas de accountability do soberano por crimes contra a Humanidade a partir do exercício da jurisdição universal: são exemplos o caso Augusto Pinochet, ex-presidente do Chile, e o caso Hissene Habré, ex-presidente do Chade.
Pinochet teve sua prisão decretada, em 1998, pelo Poder Judiciário espanhol sob a acusação de ter ordenado crimes de lesa-humanidade cometidos durante a ditadura militar chilena. Todavia, o general não foi julgado, pois sua extradição foi recusada pela Inglaterra, onde foi detido durante a sua estadia para realizar tratamento de saúde. De volta ao Chile, Pinochet foi levado à prisão domiciliar em 2005 para responder pelos crimes contra a Humanidade, mas faleceu antes do seu julgamento.
Em 2005, Hissene Habré teve sua prisão decretada pela Bélgica em razão dos crimes de lesa-humanidade ordenados por ele enquanto era presidente do Chade, entre 1982 e 1990. Após deixar o governo, Habré se exilou no Senegal, país ao qual foi enviado o pedido de extradição pelo Poder Judiciário belga. Em 2012, Senegal rejeitou a extradição de Habré, porém decidiu julgá-lo no país e o indiciou por crimes contra a Humanidade e crimes de guerra cometidos no Chade. Seu julgamento será realizado por uma corte híbrida, criada através de tratado entre a União Africana e Senegal.
Ante a obrigatoriedade de proteção dos direitos humanos, os Estados também passaram a julgar crimes de lesa-humanidade cometidos por seus próprios chefes de Estado contra seus cidadãos, após invalidarem leis de anistia que impediam o julgamento de oficiais por atos dessa natureza perpetrados no passado. Tais julgamentos cumprem com a obrigação internacional do Estado de processar quem pratique crimes contra os direitos humanos, ainda que tenha cometido os atos com capacidade oficial.
Na Etiópia, o ex-ditador Mengistu Haile Mariam foi condenado, em 2006, à prisão perpétua pelo Office of the Special Prosecutor: The Special Prosecution Process of War Criminals and Human Rights Violators in Ethiopia, por crime de genocídio e crimes contra a Humanidade cometidos durante o regime do “Terror Vermelho” (de 1974 a 1991). Ele se encontra exilado no Zimbábue há quase 20 anos.
No Peru, o ex-presidente Alberto Fujimori foi levado a julgamento e condenado a 25 anos de prisão em 2009 por crimes contra a Humanidade (o massacre de Barrios Altos, em 1991).
Na Argentina, os ex-ditadores Jorge Rafael Videla, Emílio Eduardo Massera e Reynaldo Bignone tiveram, em 2010, suas condenações à prisão perpétua confirmadas pela Suprema Corte por crimes contra a Humanidade cometidos durante a ditadura militar.[20] E, no Uruguai, a Justiça condenou a 30 anos de prisão o ex-ditador Juan María Bordaberry por crimes contra a Humanidade cometidos durante o regime militar.
Na Guatemala, o ex-ditador José Efraín Ríos Montt foi condenado, em 2013, a 80 anos de prisão por ter cometido genocídio e crimes contra a Humanidade durante os anos em que governou o país (1982-1983). Contudo, o veredito foi anulado pela Corte Constitucional guatemalteca e Montt deve ser submetido a novo julgamento provavelmente em 2014.
Esses são alguns exemplos que levam à conclusão de que o “rei in solutus” diante do Direito Internacional Penal não mais existe. O poder soberano é limitado pelos direitos humanos. A partir dessa perspectiva, é preciso recriar o conceito de soberania, a qual deve ser vista pela lente ex parte populi, e não pela lente ex parte principis.[21] Com o novo paradigma surgido no pós-Segunda Guerra, o Estado serve para garantir a dignidade dos homens, e não o contrário.[22]
Tendo em vista que o objetivo do Direito Internacional Penal é a responsabilização penal individual de quem viola a ordem jurídica internacional, incluindo o soberano, a tensão entre a força do direito e a luta pelo poder é um componente importante para a análise da eficácia desse sistema jurídico.
O Direito Internacional Penal em xeque: a luta pelo poder
Ao mesmo tempo que ganha força, o Direito Internacional Penal se vê acuado pela crítica de duas correntes ideológicas antagônicas. Elas serão denominadas neste artigo de “pensamento de direita” e “pensamento de esquerda”.
Para o “pensamento de direita”, o Direito Internacional Penal seria um indevido cerceamento da soberania estatal (na visão westfaliana do século XVII) e uma subversão do Direito Internacional, pois, para essa corrente, apenas os Estados podem ser considerados sujeitos de Direito Internacional (teoria grociana) e, portanto, apenas eles poderiam prestar contas de suas ações (por exemplo, em caso de ataque de um Estado contra a soberania de outro Estado). Responsabilizar os seus cidadãos por “atos de Estado” seria violar a ordem jurídica nacional, a qual muitas vezes autoriza o ato considerado ilegal pelo Direito Internacional. Além disso, seria uma invasão indevida no poder soberano do Estado, que, para proteger seus súditos, precisa neutralizar seus “inimigos” da maneira que entender mais adequada e eficaz. Para isso, a “razão de Estado” não poderia encontrar limites externos.
De outro lado, o “pensamento de esquerda” enxerga no Direito Internacional Penal um viés neocolonialista, visto que pretende impor a todos os Estados (do Ocidente ao Oriente) um ideal de justiça “universal”, o qual, na verdade, está impregnado pela ideia ocidental de justiça (universalismo versus relativismo). Para essa corrente, o Direito Internacional Penal preconiza a chamada “justiça seletiva” ou “justiça dos vencedores”, em que os vencedores da guerra julgam os perdedores (ou também em que os vencedores do jogo econômico julgam os “subdesenvolvidos”; ou o Ocidente julga o Oriente). Para os pensadores da corrente de esquerda, as potências mundiais usam o Direito Internacional Penal como lhes convêm: ora negam a legitimidade dele, ora o invocam contra os Estados não alinhados. Podemos citar como exemplo dessa crítica a posição dos Estados Unidos da América (EUA) frente o TPI. Os EUA não ratificaram o Tratado de Roma, mas, por intermédio do Conselho de Segurança da ONU, conseguem proteger seus interesses dentro do próprio TPI (a partir do que preveem os art. 13 e 16 do Estatuto de Roma).
Nesse fogo-cruzado caminha o Direito Internacional Penal. Sua proposição é a prevalência da força do direito sobre o direito da força. Diante da anarquia que é a sociedade internacional (ausência de um poder soberano global) e tendo em vista que o Direito Internacional se constrói por cooperação (autossubordinação do Estado ao direito por ele mesmo criado), para fazer valer seu objetivo ele necessita do comprometimento dos Estados, os quais, muitas vezes agem ainda impulsionados pelo realpolitik. É a eterna disputa entre o ser e o dever ser. Essa tensão é colocada às claras com os últimos acontecimentos da chamada “guerra ao terror” promovida pelos Estados Unidos e seus aliados contra os “terroristas islâmicos”, após os atentados de 11 de setembro de 2001, e que culminou com o assassinato de Osama Bin Laden e do clérigo Anwar al-Awlaki.[23]
Como já foi dito, os EUA não ratificaram o Estatuto de Roma e, portanto, não se submetem à jurisdição do Tribunal. Além disso, os EUA fazem parte do Conselho de Segurança da ONU e, por essa razão, têm poder de vetar qualquer resolução que seja contrária aos seus interesses (conforme o artigo 27 da Carta da ONU). Assim, é bem provável que atos cometidos na prisão de Guantánamo, os ataques com drones (aviões não tripulados armados com mísseis) contra não combatentes, as torturas contra os “terroristas islâmicos” e as suas detenções arbitrárias em prisões secretas (chamadas de black sites) mantidas em outros países pela Central Intelligence Agency (CIA), os crimes de guerra e contra a Humanidade no Iraque e Afeganistão, cometidos a partir da “guerra ao terror” promovida pelos EUA, fiquem impunes.[24]
Inobstante a defesa chauvinista das autoridades americanas de que tais atos seriam necessários à segurança dos cidadãos estadunidenses, não se pode contemporizar com medidas de exceção adotadas pelos EUA que constituem, por sua natureza, atos atentatórios aos direitos humanos e que não são consideradas legítimas pelo Direito Internacional.
Diante disso tudo, como resposta aos desafios do Direito Internacional Penal colocados pela luta pelo poder, invoca-se a lição de Hans Kelsen, para quem a civitas maxima só será alcançada a partir de uma nova concepção de soberania baseada na primazia do Direito Internacional sobre a lei nacional.[25] De novo: os direitos humanos são o fundamento legitimador e limitador do poder soberano.
Por que defender a existência do Direito Internacional Penal, afinal? Diante de todos os argumentos desfavoráveis a ele, ainda podemos investir no seu futuro? Segundo Michael Scharf, o processamento e a punição dos violadores dos direitos humanos reforça a força do direito, desestimulando atitudes vingativas por parte vítimas e desencoraja o cinismo quanto à validade da lei e idoneidade do sistema político.[26]
Se a “razão de Estado” preponderar sobre o Direito, a vingança será a regra. E vingança não é justiça. Que alternativa sobra para as vítimas da guerra ou de um regime tirânico se o Direito não dá a opção a elas de buscar a reparação moral e de ver a verdade revelada? A vingança será a única saída possível. Para Zaffaroni, as vítimas dão o direito ao criminoso a um julgamento justo porque a mera vingança transformaria os criminosos em “sacros”.[27]
Segundo o autor argentino, o Direito Internacional Penal visa evitar um ato de barbárie degradante para as vítimas do massacre ao se lhe impor a vingança como único caminho possível, bem como impede que o criminoso seja declarado inimigo da Humanidade a fim de lhe retirar qualquer proteção jurídica, regatando a sua qualidade de sujeito de direitos e membro da comunidade política.[28]
Por essa razão mesma razão, Hans Kelsen, em que pese ser crítico da legitimidade dos tribunais do pós-guerra, mas inspirado pelo ideal kantiano de um “direito cosmopolita” para a consecução da paz perpétua, defendeu a criação de uma Corte Internacional Penal de caráter permanente, que fosse destinada a julgar crimes de guerra e contra a Humanidade e que respeitasse os princípios da irretroatividade da lei penal e da imparcialidade do julgador, garantindo-se o direito do acusado a um julgamento justo.[29]
Com efeito, o ideal da justiça cosmopolita preconizado pelo TPI, caso respeitado por todas as nações, evitaria que Osama Bin Laden fosse declarado homo sacer[30] e executado sem direito à defesa ou que Saddam Hussein fosse julgado por um Tribunal parcial[31], ilegítimo, criado em plena ocupação estrangeira, tudo para justificar a neutralização do “Inimigo da Humanidade” (hosti humani generis) a partir da negação de seu status humano. Não só foi subtraído o direito de Saddam e Osama à dignidade humana e ao devido processo legal, como também o direito das vítimas e, de modo geral, da Humanidade à reparação moral e à revelação da verdade. Negando a condição humana de Saddam e Osama, a Humanidade se igualou a eles no seu padrão aético de se relacionar com o mundo.[32]
O discurso que pretende a deslegitimação do Direito Internacional Penal, seja aquele propagado pelo pensamento de direita ou aquele defendido pela corrente de esquerda, está contaminado por um perigoso realismo político ultrapassado ante o paradigma dos direitos humanos instaurado após a Segunda Guerra Mundial. O retorno ao voluntarismo estatal, baseado na ideia antiquada de “razão de Estado”, é um ataque ao paradigma consolidado pela comunidade internacional no pós-Segunda Guerra, segundo o qual os direitos humanos devem ser protegidos em qualquer lugar do planeta.
Sem o Direito Internacional Penal, o direito nacional seria a lei absoluta, inafastável, ainda que estivesse em contradição com a ideia de justiça? A História humana demonstra que atrocidades indizíveis foram perpetradas contra o status humanos a partir do direito nacional (com sua autorização ou tolerância). O que restaria às vítimas, caso a soberania nacional fosse a medida única e suprema da justiça?
Pela perspectiva do Direito Internacional dos Direitos Humanos, é possível considerar que os atos atrozes cometidos contra a dignidade humana a partir de um aparato organizado de poder (como ocorre nos chamados crimes essenciais) são mala in se (em contraposição ao formalismo do mala prohibita) , isto é, ainda que o direito nacional os permita, os tolere ou não os recrimine, são contrários à justiça e, por essa razão, merecem punição pelo Direito Internacional. [33]
Esse é o argumento que deu ensejo à criação dos Tribunais do pós-guerra, dos Tribunais ad hoc para a Ex-Iugoslávia e para Ruanda, para o julgamento de Eichmann em Jerusalém, para o julgamento dos ex-ditadores na Argentina e Uruguai, e a criação do TPI, apenas para citar alguns exemplos em que a busca pela justiça prevaleceu sobre o discurso seiscentista da razão de Estado.