4. Natureza Jurídica DO TRABALHO PRISIONAL
O trabalho do preso é modalidade de trabalho subjetivo. Ou seja, não constitui trabalho forçado ou obrigatório, logo, o preso pode exercê-lo ou não. Nestes termos, tem previsão na Convenção nº 29 da OIT, no Pacto de São José da Costa Rica, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do cidadão, e na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.
A Convenção nº 29 da OIT foi aprovada na 14ª reunião da Conferência internacional do trabalho, em Genebra, e entrou em vigor no plano internacional em maio de 1930, porém apenas foi ratificada pelo Brasil em 1957. Todos os países que ratificaram a referida Convenção se comprometeram a abolir todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório, salvo as hipóteses previstas pela própria Convenção.
O seu artigo 2º define trabalho forçado ou obrigatório como todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente. Ou seja, é aquele trabalho exigido do cidadão sem que haja o elemento volitivo. Além disso, não se pode permitir, em nenhuma hipótese, o trabalho forçado ou obrigatório em beneficio de particulares.
Já o Pacto de São José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil em 1992, inova ao prevê expressamente, em seu art. 6º, a proibição de trabalho forçado ou obrigatório por parte dos presos que cumprem pena privativa de liberdade. In verbis:
Artigo 6º - Proibição da escravidão e da servidão
1. Ninguém poderá ser submetido a escravidão ou servidão e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas.
2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Nos países em que se prescreve, para certos delitos, pena privativa de liberdade acompanhada de trabalhos forçados, esta disposição não pode ser interpretada no sentido de proibir o cumprimento da dita pena, imposta por um juiz ou tribunal competente. O trabalho forçado não deve afetar a dignidade, nem a capacidade física e intelectual do recluso.
3. Não constituem trabalhos forçados ou obrigatórios para os efeitos deste artigo:
4. Os trabalhos ou serviços normalmente exigidos de pessoa reclusa em cumprimento de sentença ou resolução formal expedida pela autoridade judiciária competente. Tais trabalhos ou serviços devem ser executados sob a vigilância e controle das autoridades públicas, e os indivíduos que os executarem não devem ser postos à disposição de particulares, companhias ou pessoas jurídicas de caráter privado; (...) (grifo nosso)
Prevê também a proibição de trabalho escravo e da servidão. Logo, deixa claro que o trabalho do preso não se trata de forma de trabalho escravo ou degradante, exaltando a condição humana do preso e a necessidade de resguardar a sua dignidade[25].
No trabalho degradante, embora exista, a priori, a aplicação do elemento volitivo, ou seja, a aceitação da atividade, como também a vontade do indivíduo e o seu direito de ir e vir, o mesmo é submetido a condições desumanas, insalubres, com jornadas excessivas, não havendo o respeito ao principio da dignidade da pessoa humana[26].
Já no trabalho escravo não há a expressão da vontade do trabalhador. É caracterizado pelo cerceamento à liberdade e pela coação moral, econômica, ou física. É considerado crime, pelo disposto do art. 197, CP[27].
A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada pelos representantes do povo francês em 1789, imbuídos dos ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade, determina que todos os homens são iguais perante a lei, tendo os mesmos direitos e deveres. Pela primeira vez são proclamadas as liberdades e os direitos fundamentais do Homem de forma ecumênica, para toda a humanidade. Ela serviu de inspiração para a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, que mais uma vez consagra a igualdade entre os homens e a dignidade da pessoa humana, como previsto no seu artigo II.
Por fim, a Magna Carta, que adota o Estado Democrático de Direito, aplica os princípios previstos nas declarações supracitadas. Em seu proclamado art. 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais, em seu inciso XLI, afirma que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais. Dispõe ainda, no seu inciso XLIX, que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral. Como se não bastasse, proclama nos seus arts. 6º e 7º, que tratam dos direitos sociais, o direito de todo homem ao trabalho e sob garantias mínimas de exercê-lo.
Diante o exposto, conclui-se que é amplamente previsto o direito subjetivo do preso ao trabalho. Seu trabalho não é punição, mas sim faculdade. Logo, ainda que a LEP preveja, no seu art. 31, o trabalho obrigatório do preso, percebe-se que a referida lei não está em consonância com os devidos diplomas legais, não sendo tal dispositivo recepcionado pela Constituição Federal. Caso o condenado não queira trabalhar, não poderá ser aumentada sua pena, tampouco sofrerá abusos ou castigos corporais. Apenas não gozará de certos benefícios, como a remição da pena, a progressão de regime, o livramento condicional, entre outros.
Assim sendo, se é licito e imperioso o trabalho ao homem livre, também o é em relação ao homem preso, pois afirmar que o individuo perde sua condição de cidadão e de Homem, perde a sua dignidade, por estar cumprindo pena, é violar o principio básico que rege todo o mundo jurídico: o principio da dignidade da pessoa humana.
Ademais, a LEP traz expressamente em seu art. 28º que a finalidade do trabalho do preso é educativa e produtiva. A finalidade educativa diz respeito à reintegração na sociedade através da qualificação pelo trabalho. Pois, ao saírem das prisões, os apenados que não tem nenhuma qualificação técnica, além de não se empregarem, ainda voltam a reincidir no crime. A educação pelo trabalho diz respeito ao ensino de alguma atividade laborativa para o efetivo exercício das atividades desempenhadas.
Isto posto, também leciona GamilFöppel que há limites para a ressocialização, uma vez que ela não pode ser forçada. Desse modo, em respeito à garantia constitucional da autonomia da vontade, é proibido o trabalho coercitivo ao recluso, ainda que tenha caráter ressocializante[28].
Além da modalidade subjetiva, o regime jurídico do trabalho carcerário é de direito público, pois, para que haja a contratação da mão-de-obra do preso, deve-se firmar contrato entre a Administração pública e o parceiro privado, sempre observando os princípios gerais que regem a Administração pública, quais sejam, a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência[29]. Inclusive, para o trabalho interno, os governos federais, estaduais ou municipais poderão celebrar convênio com a iniciativa privada, afim de implantação de oficinas de trabalho dentro dos presídios, conforme disposto no art. 34 da LEP.
Há, em verdade, hipótese de terceirização de serviços, haja vista que o Poder Público deve celebrar contrato com empresa particular para gerir e explorar a mão-de-obra carcerária. Segundo a lei nº 8.666/93, de licitações e contratos administrativos, em seu art. 2º, parágrafo único, considera-se contrato, para fins da referida lei, todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação do vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada. Dessa forma, é hipótese de contrato administrativo, que são regidos por cláusulas e pelos preceitos do direito público. Ilustra José dos Santos Carvalho Filho:
(...) de forma simples, porém, pode-se conceituar contrato administrativo como o ajuste firmado entre a Administração pública e um particular, regulado basicamente pelo direito público, e tendo por objeto uma atividade que, de alguma forma, traduza interesse público[30](...) (grifo nosso)
Ademais, cabe expor que a espécie de contrato administrativo celebrado deve ser o contrato de concessão, na modalidade de parcerias público-privadas. Nesse sentido, Zanella di Pietro entende como concessão o contrato administrativo pelo qual a Administração confere ao particular a execução remunerada de serviço público ou de obra pública, ou lhe cede o uso do bem público para que explore pelo prazo e nas condições regulamentares e contratuais[31]. Por seu turno, entende José Carvalho Filho que as parcerias público-privadas são concessões especiais, caracterizadas pela circunstância de que o concessionário recebe determinada contraprestação pecuniária do concedente[32]. Dessa forma, é vedado o contrato direto entre o preso e oparceiro particular, sendo que os contratos de trabalho firmados entre as empresas privadas e os encarcerados devem ser precedidos da interferência obrigatória da Administração Pública.
Ressalte-se que a terceirização deverá observar os requisitos constantes na Lei nº11.079/2004, que trata das parcerias público-privadas; deverá ainda observar o disposto no parágrafo 1º do artigo 34 da LEP, ou seja, o limite máximo do número de presos empregados na obra será de 10% (dez por cento), com a finalidade de se evitar a malfadada “terceirização selvagem”[33].
Assim sendo, a Administração pública exerce controle sobre a atuação do parceiro privado, de maneira que não deixa de cuidar dos interesses da comunidade carcerária e da sociedade.
5. Possibilidade real de reintegração pelo trabalho
Neste momento, faz-se imperioso demonstrar as vantagens do trabalho carcerário; vantagens para o tripé que compõe este instituto, qual seja, o encarcerado, o parceiro privado e o Estado, enquanto representante da sociedade.
As vantagens para o encarcerado são inúmeras, e estão previstas na própria LEP, quando esta atribui o caráter educador e produtor do trabalho do preso. Além de ter direito à remição da pena, ou seja, à diminuição dos dias a serem cumpridos na prisão, o trabalho pode ensejar também a progressão de regime e até o livramento condicional.
Além disso, o preso, ao aprender um ofício, se qualifica e encontra-se apto a reingressar na sociedade, uma vez que, ao sair da prisão terá maior chance de se empregar, não ficando à amargura dos desempregados. Como indivíduo produtivo, há chances de voltar a fazer parte do sistema econômico vigente, qual seja, o capitalismo.
Já as vantagens para o parceiro privado, na contratação da mão-de-obra carcerária, se fazem primeiro porque obtém mão-de-obra mais barata que a do trabalhador livre; segundo, porque fica isento de alguns encargos trabalhistas do qual o preso, pelo seu trabalho peculiar, diferenciado, não faz parte. Além disso, o Estado cede gratuitamente, sem pagamento em pecúnia, o espaço dentro dos presídios para que a empresa monte as oficinas de trabalho, por vezes não cobrando água e luz[34], a título de estimular a finalidade social deste instituto.
Atrela-se a esses fatores incentivos fiscais que poderiam ser ofertados pelo Estado, a exemplo do que já ocorre com as empresas que aderem ao PAT (Programa de Alimentação do trabalhador), quais sejam: isenção total dos encargos fiscais, dedução do imposto de renda referente ao valor correspondente ao PAT, ou seja, 4% de restituição no Imposto de Renda sobre o valor investido[35].
Por fim, as vantagens para o Estado se fazem por várias vertentes. Primeiro porque mantém o condenado ocupado, de modo a evitar rebeliões, e a acabar com a ociosidade dentro dos cárceres. Também no tocante a remição da pena, evitando a superlotação dos presídios. Além disso, o Estado poderia fornecer mais incentivos fiscais aos parceiros privados, no sentido de fomentar a contratação de presos pelas indústrias, para que o mercado de trabalho recepcione esta mão-de-obra, pois, em que pese não ter condições de arcar com isso sozinho, é obrigação do Estado fornecer trabalho ao apenado, nos termos das garantias constitucionais.
Dessa forma, o trabalho do preso também constitui vantagem para a sociedade, uma vez que reduz e muito os casos de reincidência, o que dá uma segurança jurídica maior á comunidade.
Ainda que a reintegração pelo trabalho seja uma solução em longo prazo, na atualidade já se podem ver projetos que, com sucesso, põem em prática esta modalidade de trabalho. Como exemplos se podem citar o sistema prisional de Guarabira, onde os sentenciados laboram em um projeto de ressocialização no qual são destinados a prestar serviços em obras públicas. O projeto já dura três anos, e durante este período não houve nenhum registro de fuga, o que demonstra o compromisso dos próprios sentenciados com a oportunidade que estão tendo. Outro exemplo é a penitenciária industrial de Guarapuava no Paraná, que conta com um índice de reincidência de apenas 6%, mostrando uma raridade no país, em que a maioria dos estabelecimentos prisionais apresenta índices elevadíssimos de reincidência. A penitenciária Dênio Moreira Carvalho de Ipaba, em Minas Gerais, é considerada um modelo a seguir, pois é a única do país que está há mais de seis anos sem rebeliões e fugas, e este resultado é fruto de um projeto de ressocialização que vem sendo desenvolvido com a participação das autoridades prisionais locais em parceria com a sociedade[36].
A penitenciária Lemos de Brito, em Salvador, no entanto, não teve a mesma sorte. Apesar de ainda manter contrato com empresas que oferecem trabalho aos presos, algumas oficinas montadas na penitenciaria estão paradas, tanto por falta de incentivos por parte do Estado, tanto por falta de interesse dos presos, que não retornavam às suas atividades laborativas[37]. Isto porque falta estrutura nas fábricas montadas, sendo que a maior parte dos presos que ali trabalham não fazem uso, sequer, do material de segurança. Outro fator que desestimula os condenados ao trabalho, é o fato de servir apenas como exploração da mão-de-obra carcerária, já que se pagam baixos salários por uma mão-de-obra desqualificada[38].
Também há o programa Começar de Novo, do Conselho Nacional de Justiça. O Projeto Começar de Novo é uma campanha para incentivar a reinserção social de presos e egressos. O Projeto tem duas ações principais. A primeira é uma campanha institucional voltada à sensibilização da sociedade civil e demais órgãos da Administração pública para que ofertem cursos e vagas de trabalho para presos e egressos. Outra atividade é a criação de um portal de oportunidades no qual as instituições podem fazer o cadastro de vagas para cursos e oportunidades de trabalho. Os interessados em dar oportunidade de trabalho aos egressos do sistema prisional podem cadastrar suas ofertas de emprego direto no portal do Conselho[39].