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Promessas não cumpridas da democracia:

uma breve leitura da teoria de Norberto Bobbio à luz da Constituição Federal e da realidade da democracia no Brasil

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10/12/2013 às 16:07
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3. Obstáculos à Concretização da Democracia

Ainda em Bobbio, extrai-se a ideia das circunstâncias fáticas decorrentes das transformações da sociedade civil que não foram previstas pelos formuladores do ideário democrático e que, segundo ele, são os responsáveis pelo não cumprimento das promessas da democracia moderna.

Dentre tais obstáculos, em primeiro lugar temos a complexificação da sociedade quando da passagem de uma economia familiar para uma economia de mercado e desta para uma economia protegida. A partir daí, há a necessidade de constituição de um quadro profissional habilitado tecnicamente a lidar com a crescente complexidade social e a pergunta: quem estaria legitimado a tomar decisões? (BOBBIO, 1986, p. 34)

Tendo por base a ideia de que a tecnocracia é a antítese da democracia, de que a democracia assenta-se em um poder disperso, onde todos devem decidir sobre tudo e de que na tecnocracia apenas os técnicos envolvidos podem tomar decisões, com quem deve permanecer o poder de tomar as decisões, com aqueles que representam a realidade do povo ou com aqueles que detém a técnica? Daí a contraposição da decisão política frente a decisão técnica, o poder disperso frente ao poder concentrado. (BOBBIO, 1986, p. 34)

Frente a problemas tais como o controle da inflação, o enfrentamento de uma crise econômica mundial, o desemprego e uma má distribuição de renda fica a pergunta: “Não são eles de tal envergadura que requerem conhecimentos científicos e técnicos para serem resolvidos?” Notadamente, a resposta é sim (BOBBIO, 1986, p. 36).

O segundo obstáculo não previsto e que sobreveio de maneira inesperada foi o crescimento do aparato burocrático. A burocracia, como bem nota Streck, surge em consequência do próprio processo de democratização da sociedade que, na medida em que alargava as possibilidades de participação social, permitia que novas demandas fossem propostas ao Estado. É aí que se constitui um aparato burocrático responsável por responder às pretensões sociais cuja característica é a de ser um “poder que se organiza verticalmente do alto para baixo, contrapondo-se, assim, ao modelo democrático de um poder que se estabelece na base e se eleva para o topo” (STRECK E MORAIS, 2004, p. 107).

“Todos os Estados que se tornaram mais democráticos tornaram-se ao mesmo tempo mais burocráticos, pois o processo de burocratização foi em boa parte uma consequência do processo de democratização” (BOBBIO, 1986, p. 35).

Quando os proprietários eram os únicos que tinham direito de voto, era natural que pedissem ao poder público o exercício de apenas uma função primária: a proteção da propriedade, nasce daí a doutrina do Estado mínimo, do intuito de defender aquele direito natural supremo que era exatamente, para Locke, o direito da propriedade. Quando o direito de voto foi estendido também aos não-proprietários, aos que nada tinham, aos que tinham somente a força de trabalho, a consequência foi que se passou a exigir do Estado a proteção contra o desemprego, seguros sociais contra as doenças e a velhice, casas a preços populares. (BOBBIO,1986, p. 35 – 6)

“Assim sendo, aconteceu que o Estado social foi a resposta a uma demanda vinda de baixo, a uma demanda democrática no sentido pleno da palavra” (BOBBIO, 1986, p. 37-8).

O terceiro obstáculo também se refere ao alargamento da participação e ao acúmulo de demandas, estando ligado ao tema do rendimento do sistema burocrático como um todo: a questão da ingovernabilidade democrática.

Nota-se que o Estado liberal, ao se transformar em Estado democrático emancipou a sociedade civil do sistema político. Tal processo de emancipação fez com que a sociedade civil se tornasse cada vez mais uma inesgotável fonte de demandas dirigidas ao governo, ficando este, para bem desenvolver sua função, obrigado a dar respostas sempre adequadas. No entanto, é tarefa das mais difíceis responder a demandas cada vez mais numerosas e urgentes. “A quantidade e a rapidez destas demandas são de tal ordem que nenhum sistema político, por mais eficiente que seja, pode a elas atender adequadamente” (BOBBIO, 2006, p. 38).

Ademais, diante da rapidez com que as demandas chegam ao governo, torna-se contrastante a lentidão que os complexos sistemas político-democráticos impõem à classe política no momento de tomada das decisões. Há portanto uma verdadeira defasagem entre os mecanismos, um cada vez mais acelerado e outro cada vez mais lento.

Em síntese, a sobrecarga de demandas viabilizou a defasagem quantitativa e qualitativa das soluções propostas pelos métodos adotados para essa finalidade.

Sabidamente o ideário democrático partiu de um modelo de sociedade muito menos complexo e com um número bem menor de demandas, motivo pelo qual os obstáculos levaram às chamadas falsas promessas.

À guisa de conclusão, valemo-nos das ideias de Guillermo O`Donnell, para quem a existência de cidadãos pobres e desiguais é inerente à dimensão burocrática do Estado, sendo certo que este problema “é mais severo e sistemático quando o “sujeito dessas relações está em situação de pobreza e desigualdade ampla e severa. Esses males cultivam o autoritarismo social, amplamente praticado na América Latina por ricos e poderosos, e repercutem na maneira em que as burocracias do Estado tratam muitos indivíduos. Essa é, acredito, outra dimensão crucial da qualidade da democracia; na América Latina, com suas profundas e persistentes desigualdades, essa dimensão é uma das mais deficientes” (O`DONNELL, 2002).[7]


4. Conclusões Articuladas

Por todo o exposto no presente trabalho, apresentamos as seguintes conclusões articuladas:

1. A democracia moderna não cumpre a todas as aspirações da sociedade, de modo que Norberto Bobbio veio a desenvolver o que chamou de Promessas não cumpridas da Democracia Moderna, denunciando o nascimento de uma sociedade pluralista com vários centros de poder, a sobreposição da representação de interesses sobre a representação política (visando os interesses da nação), a persistência das oligarquias, o espaço limitado em que a democracia é praticada, a permanência do poder invisível e a figura do cidadão não educado para a democracia, de modo que aqueles a que se destina a democracia não estão aptos a praticá-la;

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2. A tecnocracia e o crescimento do aparato burocrático são  frutos naturais do processo de democratização da sociedade que não foram previstos pelos pensadores da democracia moderna e que culminaram nas ditas falsas promessas da democracia. Ainda, a democracia enfrenta a realidade de pobreza política, de modo que o povo participa do jogo democrático somente pela obrigação, desconhece as regras e não tem consciência do significado do voto;

3. Sem a educação básica para o cidadão, possibilitadora da formação de cidadãos cientes de seu papel na democracia, do aprimoramento da participação popular, de melhores níveis de organização da sociedade civil, dificilmente estaremos avançando no processo democrático;

4. A Democracia tem como pressuposto a igualdade, de modo que em uma sociedade marcada pela pobreza e desigualdade ampla e severa não há democracia real.

5. Por fim, forte nas lições de Guillermo O’Donnell, sem justiça social não há democracia e, sendo esta um processo permanente de construção, somente superaremos os obstáculos à concretização da democracia e realizaremos as suas promessas não cumpridas na medida em que a República Federativa do Brasil se aproximar de seu objetivo constitucional de erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais, como previsto no inciso III, do artigo 3º, da Constituição Federal.


5. Referências Bibliográficas

BOBBIO, Norberto.  O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo; tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

_______, Norberto. Verbete Absolutismo em Dicionário de Política. Brasília: UnB, 1986

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. Rio de Janeiro. FORENSE. 1986.

_______, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa, 2ª ed. 2003, Malheiros.

_______, Paulo. Reflexões. Política e Direito. 3ª ed. Malheiros.

BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. Educação Para a Democracia. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ln/n38/a11n38.pdf - acesso em 05/11/2013.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 1995, São Paulo, Ática.

DEMO, Pedro. Pobreza Política. 6ª ed. 2001.

O´DONNEL, Guillermo. Democracia Delegativa? Em: Novos Estudos Cebrap nº 31 – out. 91. São Paulo, Ed. Brasileira de Ciências.

_________, Guillermo. Em, A Democracia na América Latina: Rumo a uma democracia de cidadãs e cidadãos, disponível em http://www.pnud.org.br/pdf/TextoProddal.pdf - acesso em 05/11/2013).

SILVA, José Afonso, Curso de Direito Constitucional Positivo, 30 ed., 2008, Malheiros.

STRECK, Lenio Luiz e BOLZAN DE MORAIS, José Luiz. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre, 4 ed., 2004, Editora do Advogado.


Notas

[2] Contrapondo o Estado despótico ao Estado democrático Bobbio afirma que aquele é o tipo ideal de Estado de quem se coloca do ponto de vista do poder; no extremo oposto encontra-se o  Estado democrático, que é o tipo ideal de Estado de quem se coloca do ponto de vista do direito

[3] Quando se refere à relação ente Estado liberal e Estado democrático, Bobbio afirma que a concessão dos direitos políticos foi uma consequência natural da concessão dos direitos de liberdade, pois a única garantia de respeito aos direitos de liberdade está no direito de controlar o poder ao qual compete esta garantia. Para Bobbio o Estado liberal é o pressuposto não só histórico como jurídico do Estado democrático. Ambos são interdependentes em dois modos: na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são necessárias certas liberdades para o exercício correto do poder democrático, e na direção oposta que vai da democracia ao liberalismo, no sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a existência e a persistência das liberdades fundamentais. A prova histórica desta interdependência está no fato de que Estado liberal e Estado democrático, quando caem, caem juntos. Em BOBBIO, Norberto, op. cit. p. 33

[4] Como forma de ilustrar os efeitos da participação popular funcionando apenas como cumprimento de dever social podemos mencionar o exponencial crescimento da apatia política, ou seja, a prática democrática pressuposta na base da cidadania foi submetida à apatia política.

[5] Notícia em http://noticiasriobrasil.com.br/?p=9924. - acesso em 05/11/2013.

[6] Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ln/n38/a11n38.pdf - acesso em 05/11/2013.

[7] Texto elaborado para o PRODDAL, em A Democracia na América Latina: Rumo a uma democracia de cidadãs e cidadãos, disponível em http://www.pnud.org.br/pdf/TextoProddal.pdf - acesso em 05/11/2013).

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Bruno Malta. Promessas não cumpridas da democracia:: uma breve leitura da teoria de Norberto Bobbio à luz da Constituição Federal e da realidade da democracia no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3814, 10 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26106. Acesso em: 25 abr. 2024.

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