Tenho a oportunidade de lidar com o Direito e com a Psicanálise. Tais ciências têm um ponto comum: o discurso, a linguagem.
A norma jurídica, como regra que é, colima circunscrever e direcionar a conduta do homem em sociedade. Já a psicanálise, avessa às normas, intenta buscar o que jaz escondido no imo do ser: o desejo.
Disso brotam duas angulações: o ordenamento jurídico, bastas vezes, se contenta com o acessável; enquanto que o sujeito psicanalítico se debate com acessível, porque perscruta o humano, aquela fatia que anela a felicidade.
Caio Mário da Silva Pereira, pranteado jurista, de há muito ensinava que a norma jurídica só é legítima se estiver afinada com a adequação social[1]. A real fala do Mestre é essa: “é o princípio de adequação do homem à vida social. Está na lei como exteriorização do comando do Estado; integra-se na consciência do indivíduo que pauta sua conduta pelo espiritualismo do seu elevado grau de moralidade; está no anseio de justiça, como ideal eterno do homem; está imanente na necessidade de contenção para coexistência”.
E, no mesmo quadrante, Lacan, como síntese, demonstra que se tem sempre significante (s) e significado (s)[2].
Debruçando o olhar sobre significante e significado, suficiente será este tosco exemplo: “Uma casa”, que isso quer dizer? Quiçá, um lar ou, de revés, uma mera edificação, a depender do que se tenha como significado extraído do significante (“casa”).
Foi assim que, convidado a compor a Comissão Permanente de Acessibilidade do Sistema Processo Judicial Eletrônico[3], ladeado por outros deficientes visuais como eu, pude dimensionar o abismo que pode existir entre uma regra jurídica e o significante significado da psicanálise. Explico-me: Para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o PJE, tal como formatado, é a oitava maravilha do mundo. Porém, para os leigos no campo da informática, os deficientes de todo jaez, é ele um mostro, um verdadeiro inferno de Dante.
Imaginemos: um deficiente visual tendo que trabalhar com o PJE, que só funciona com mouse! Ou o cego, magicamente passa a enxergar, ou, no plano da realidade, vê-se no vácuo da inacessibilidade. Calabouço contemporâneo?
Adiantemos: existem, segundo dados da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em torno de 1.800 advogados deficientes visuais inscritos, como ressai da fala do Presidente da Comissão em foco, Des. Ricardo Tadeu, in verbis:
“(...) Hoje, há 1,8 mil advogados com deficiência visual cadastrados na OAB. Precisamos dar a eles uma ferramenta que permita a eles que trabalhem (...)”.
( “sic” retirado do site: http://www.tst.jus.br/noticias/-/asset_publisher/89Dk/content/id/6326411, acessado em 10 de dezembro de 2013).
Terão eles de abandonar seus ofícios? Se assim o for, como restará a cláusula pétrea gravada no art. 5º, inciso XIII, da Carta Magna[4]?
É claro que a norma supra é de eficácia limitada ou contida, no tocante as qualificações para a profissão, apenas isso. Ora, o advogado já está inscrito na OAB, ou seja, tem o signo da legalidade de seu mister[5]. Contudo, por ser cego, diante do PJE, hostil a todos os leitores de tela, terá de abandonar a sua faina de causídico? O que de constitucional teria nessa abominável ferramenta, posta como está? Nada, a não ser o selo da desumanidade[6].
Contou-nos, um amigo Conselheiro Federal da OAB, Luiz Cláudio Silva Allemand[7], que em determinado estado da Federação, um septuagenário advogado, fazia acompanhado de seu neto, diante do treinamento do PJE. O causídico entendia de processo, o jovem nada sabia de procedimento, mas procurava avidamente compreender como operar o PJE. Cena patética, para dizer o mínimo, culminou em apelido para os dois: O advogado era o processo, o infante era o eletrônico!
O Brasil, que é signatário da Convenção Internacional da ONU para proteção da acessibilidade[8][9], deve se pautar em lídima inversão ótica: acessibilidade não está ligada ao subjetivo (qualidade do sujeito); entrementes, volta-se ao afastamento de todo e qualquer obstáculo – viés objetivo – que possa impedir quem quer que seja de fruir das situações jurídicas postas a disposição. Pensar de modo diverso, por curial, seria chancelar a discriminação, ainda que com o pseudotimbre da legalidade.
Quando se comenta, então, de acessibilidade, está-se no patamar de uma norma que ostenta o status de Emenda à Constituição, nos exatos termos do §3º, do art. 5º, da Lei das Leis[10]. Um PJE que apenas é acessável, terá tido, a mais mínima, preocupação com este cânone?
Esse PJE, com a iniquidade que o assinala, constitui-se o que eu chamaria de “apartheid digital”. Morreu o grande Mandela, entretanto, está vivo o inacessível PJE.
Cegos, surdos, idosos, não têm qualquer amigabilidade com essa ferramenta. Isso é republicano e democrático?
Foi por isto, que o Conselho Superior da Justiça do Trabalho, afeito a volver os olhos em direção dos mais desvalidos, preocupara-se com essa divisão, com essa exclusão, já mencionada, mormente, segundo o IBGE, onde se tem aproximadamente 45 milhões de deficientes[11] e, eles, ao contrário de certas tribos indígenas[12], são - e devem - ser tidos na conta de humanos.
A Comissão, composta por Desembargadores do Trabalho e Juízes do Trabalho, Servidores desta Justiça Especializada, se sente com a missão de formular um PJE acessível, que compreende em seu bojo toda a sorte de operadores, sem opor diques ou eclusas, mas límpido e corrente, como um rio, em direção ao mar de seus usuários.
A meu sentir, com todo respeito, o tema acessibilidade conflui-se em lídimo direito indisponível, não passível de patrimonialização, que deve ser guarnecido por uma só tônica: sua máxima garantia e efetividade em prol dos vértices da cidadania, da dignidade da pessoa humana e da não discriminação, açambarcados nos art. 1º, inciso II, III e art. 3º, inciso IV, todos da Carta Republicana. Direitos fundamentais, insculpido na Carta Política, de âmbito internacional, não se transigem, cumpri-se respeitosa e veneravelmente.
A cultura de um povo, evidentemente, está para além dos bens de consumo, mas centra-se no régio respeito às desigualdades de seus súditos, isto é, maior será o seu nível se menos impeços colocar para o desfrute dos princípios fundamentais, aqueles que sempre serão bandeiras ao longo dos tempos. A norma nem precisa mudar, como soi acontecer com a Constituição Americana, que, em uma exegese tacanha, acobertou a escravidão. No entanto, quando teleológica e humanisticamente interpretada, retirou os grilhões que dividiam os seres, rumou destemidamente para a abolição.
Assim sendo, indago-me perplexo: O significante é o PJE, todavia, qual o significado que ele dispõe hodiernamente? Ele é um lar ou um edifício de pedras toscas e inumanas? Brutaliza ou humaniza?
Basta o mero acesso ou a acessibilidade? Eis a grande questão emblemática, que toca os corações, e os corações propensos a consagrar o direito constitucional à felicidade. PJE sim, desgraça não, apropriando-se de uma paráfrase bíblica: (misericórdia quero, e não sacrifício[13]). Todos almejamos por um PJE, ninguém é tolo o suficiente para dar de ombros ao mundo globalizado da informática. Contudo, que isso se consiga sem sacrificar pessoas quanto à acessibilidade, pois é inadmissível um novo modelo nazista, uma eugenia para a operacionalização do PJE!
Esta é a dor desse humilde jurista e psicanalista, que de tanto ouvir as misérias de outrem, talvez tenha se tornado um pouco menos animal humano para desembocar no campo do apenas humano.
Referências:
[1] Instituições de Direito Civil. 11ª ed . Editora . Rio de Janeiro, 2006, p.7.
[2] Sujeito e linguagem. In: GONTIJO, Thais et al. (Org.). A escrita do analista. Belo Horizonte: Autêntica, 2003a. p. 89-98.
[3] Ato nº. 364/CSJT.GP.SG. de 01/10/2013, assinado pelo Presidente do Conselho Superior da Justiça do Trabalho.
[4] “XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;”.
[5] Lei nº. 8906/94: “Art. 3º O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).”.
[6] Relato de uma advogada cega sobre PJE, valendo a pena assistir o vídeo da Dra. Débora Prates in http://www.youtube.com/watch?v=2yoTKSMHNQQ
[7] Atual Presidente da Comissão Especial de Direito da Tecnologia da Informação da OAB, em nível de Conselho Federal.
[8] Convenção internacional sobre Direito das pessoas com deficiência, de lavra das Organizações das Nações Unidas (ONU): “Artigo 3: Princípios gerais Os princípios da presente Convenção são:b) A não-discriminação” e “Artigo 5: Igualdade e não-discriminação 1.Os Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante e sob a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei. .Os Estados Partes proibirão qualquer discriminação baseada na deficiência e garantirão às pessoas com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo. 3.A fim de promover a igualdade e eliminar a discriminação, os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas para garantir que a adaptação razoável seja oferecida.”.
[9] Decreto nº. 6.949/09: “Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007.”.
[10] “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”:
“§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.
[11] “(...) Chegando ao Censo 2010, a pesquisa investigou os seguintes tipos de deficiência visual, auditiva, motora e mental/intelectual e, para as três primeiras, também verificou o grau de severidade. Os resultados revelam que, no Brasil quase ¼ da população (23,9%) tinha algum tipo de deficiência, o que significa cerca de 45,6 milhões de pessoas.” - extraído do sítio: http://7a12.ibge.gov.br/voce-sabia/calendario-7a12/event/57-dia-internacional-da-pessoa-portadora-de-deficiencia, acessado em 10 de dezembro de 2013.
[12] “(...)Coragem da indígena Muwaji Suruwahá que lutou contra a tradição de seu povo que a ordenava matar sua filha Iganani portadora de deficiência cerebral hoje dá nome ao mencionado Projeto de Lei nº 1057/2007 que dispõe sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas, em tramitação no Congresso Nacional (...)”, com o ressuma da matéria “Infantício Indígena em Tribos Brasileiras”, escrita por Jonathas da Silva Simões, publicada no endereço eletrônico da OAB/PB “http://oabpb.org.br/artigos/infanticidio-indigena-em-tribos-brasileiras/”; acessado em 10 de dezembro de 2013.
[13] Versículo retirado do livro de Mateus, capítulo 9, verso 13, Bíblia Sagrada.