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Supranacionalidade: realidade ou ficção?

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01/01/2014 às 15:03
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A vida humana e o direito de vivê-la com dignidade tornaram-se prioridade, refletindo nas relações internas e externas do Estado, ocasionando um incremento do relacionamento entre as Nações e mudanças no cenário jurídico internacional.

1. Introdução

O mundo vem passando por grandes transformações desde os meados do século XVIII, podendo-se arriscar o palpite de que as mais impactantes delas foram a Revolução Industrial, as duas Grandes Guerras Mundiais e a Globalização. A primeira alterou o processo produtivo em nível econômico e social, superando a era da agricultura e substituindo o trabalho humano pela máquina, estabelecendo uma nova relação entre capital e trabalho e entre nações, fazendo surgir, dentre outros eventos, a cultura de massa. As Guerras Mundiais, com os seus horrores impingidos aos soldados, as suas famílias e aos sucumbentes, somados ao grande número de mortos e à fome devastadora, fizeram (re)nascer no homem o sentido e a necessidade de cooperação, de solidariedade, de harmonização, de comunhão; enfim, de antiguerra. Já a globalização conectou o mundo, eliminando barreiras interestatais, provocando a difusão instantânea de todo e qualquer tipo de informação, trazendo à tona a necessidade de se repensar sobre o controle de fronteiras geográficas e o comportamento estatal em face de uma população mais militante.

A vida humana e o direito de vivê-la com dignidade tornaram-se prioridade, refletindo nas relações internas e externas do Estado, ocasionando um incremento do relacionamento entre as Nações e mudanças no cenário jurídico internacional, sendo relevante para o presente trabalho a atual “face” da soberania e sua implicância na supranacionalidade.

2. Soberania: generalidades

O conceito de soberania altera-se de acordo com o momento histórico-político, não podendo confundir-se as suas atuais acepções com as de sua época de origem.

O primeiro texto normativo intergovernamental que reconheceu o princípio da soberania nacional foi "Paz de Vestfália" (também conhecido como Tratado de Münster e Osnabrück), assegurando-lhe posto central na estrutura das relações internacionais. Por meio deste tratado, foi encerrada a Guerra dos Trinta Anos (conjunto de guerras travadas por diversas nações européias 2 durante o período de 1618 a 1648) e delimitaram-se as seguintes regras para as relações internacionais: a soberania igualitária entre os Estados; a prevalência do princípio territorial sobre o pessoal; o respeito aos limites internacionais e a não-intervenção em assuntos internos de outros Estados1.Soberania, etimologicamente, significa autoridade suprema; poder soberano; poder político de que dispõe o Estado de exercer o comando e o controle, sem submissão aos interesses de outro Estado.

Jean-Jacques Rosseau defendia ser a soberania o "exercício da vontade geral". Jean Bodin apontava ser "o poder absoluto e perpétuo de uma República; o soberano não reconhece nenhuma autoridade superior a si mesmo". Hans Kelsen notava-a como a "expressão da unidade de uma ordem" e Georg Jellinek qualificava-a como "nota essencial do poder do Estado"2. Nascia e se fortalecia o conceito de soberania ilimitada.

A Constituição francesa, nos idos de 1791, em seu título III, artigo 1°, tratou de suas características: unicidade, indivisibilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade3.

Pela concepção de unidade, é possível entender que a jurisdição de um determinado Estado é, dentro de seu território, exclusiva e absoluta não sendo concebível a convivência de mais de um poder superior no mesmo âmbito.

A indivisibilidade traduz a idéia de que o poder soberano não é seccionável, inexistindo várias partes de uma mesma soberania. Por ser a soberania elemento constitutivo do próprio Estado, é inalienável4, não havendo prazo de validade para ela, sendo, portanto, imprescritível.

Hodiernamente, se consideram ultrapassadas as concepções de imprescritibilidade e de impossibilidade de perda da soberania, ganhando relevo a característica da limitação.

A soberania configura-se como um dos elementos (ao lado da população, território, governo independente e ordenamento jurídico) pelo qual o Estado exerce autoridade absoluta em relação a qualquer outro poder, nos limites internos (summa potestas), e permanece no mesmo plano de poder de outros Estados, nas relações externas (igualdade). Assim, soberania é, internamente, o império que o Estado exerce sobre seu território e sua população, enquanto é, externamente, a autonomia e paridade perante outros Estados5.A limitação da soberania não é excludente da sua natureza absoluta. O Estado, por sua vontade e interesse pode limitar sua própria soberania em casos específicos. Sendo assim, é possível atestar que houve uma flexibilização ou relativização do seu conceito desde a sua adoção pelos filósofos e pelos juristas há quatro séculos.


3. Direito Interno, Direito Internacional, Direito da Integração e Direito Comunitário: apontamentos doutrinários

A doutrina é farta em definições quanto ao conteúdo deste item. O registro de todas elas é dispensável ao presente trabalho, razão pela qual foi feita uma seleção:

Direito Interno, ensina Bobbio, é aquele cuja “principal fonte é a lei editada pelo Estado, conforme procedimentos específicos que têm vigência e eficácia nos limites do território nacional e através do qual se busca um controle social”6. É interno porque se compõe de normas que cada país adota, voluntariamente, na qualidade de Estados soberanos. É o direito nacional de cada país.Direito Internacional, conforme Patrícia Ribeiro, “é aquele que estabelece relações entre Estados independentes e soberanos cujos órgãos produtores e aplicadores são os receptores da norma”7. É o conjunto de normas jurídicas que rege as relações entre todos os componentes da sociedade internacional, sejam eles Estados, organismos análogos ou indivíduos8, visando estabelecer a paz e a justiça e promover o desenvolvimento. O Direito Internacional não se aplica apenas no plano externo, mas também no interior dos Estados, nas relações com os particulares, sendo um equívoco pensar em Direito Interno e Direito Internacional de forma estanque. Eles são interdependentes. Os Estados, declarando-se soberanos, não reconhecem nenhuma autoridade sobre eles. Celebram acordos que estabelecem cooperação recíproca, sem depender de nenhuma autoridade de sobreposição.

Antes de definir Direito da Integração, é pertinente trazer à baila a elucidativa doutrina de Valério Mazzuoli no sentido da “inexistência, pelo menos por enquanto, de uma comunidade internacional, mas sim de uma sociedade internacional. Aquela transmitindo a idéia de convergência; esta, de divergência”9, a despeito do uso indiscriminado das expressões na redação de inúmeros documentos.

Os mestres Diego e Florisbal destacam o papel da integração como antidotal e inibidor de males do passado e do presente10:

(...) após 1945, o isolacionismo estatal e o individualismo deram lugar à integração, bem como à cooperação entre as nações com o fim de se alcançar desideratos comuns e pacíficos. A integração entre os Estados se mostra como recurso plausível para se garantir a paz mundial, combater crises econômicas e tantos outros assuntos relevantes, desde a miséria ao narcotráfico.

Maria Ferreira e Júlio Oliveira11 a definem como:

(...) um processo de mudança social voluntária, mediante o qual, a partir da existência de problemas, interesses e objetivos comuns, as nações se associam e adotam estratégia de ação conjunta para melhorar seu status, o de suas respectivas comunidades, e sua inserção no sistema estratificado internacional.

Sendo assim, os Estados podem se associar e formar blocos (Mercosul, Nafta, União Européia) com mecanismos próprios de regulamentação, denominados Direito da Integração. Enquanto o Direito Internacional regula toda e qualquer relação interestatal, o Direito da Integração e o Comunitário dizem respeito às relações interestatais estabelecidas num ambiente integracionista, havendo entendimento de que o diferencial entre os dois últimos é a existência de um órgão de caráter supranacional. Machado defende que o Direito Comunitário é um Direito de Integração aperfeiçoado, evoluído12 e que quanto maior a integração de um bloco, menor será a autonomia das partes que o integram13.

Os Estados, sejam eles pobres ou ricos, têm necessidade de participar, de se relacionar e eles assim o fazem por intermédio dos tratados, expressão aqui utilizada em sentido amplo. O desnível sócio-econômico e cultural dos protagonistas e a complexidade das relações avultam a boa vontade política dos Estados para fazer valer as obrigações a que se comprometeram perante a sociedade ou a comunidade internacional, com reflexos positivos ou negativos na vida dos seus cidadãos. O grande desafio é solucionar eventual conflito entre os “direitos” neste item discriminados, sem que o Estado perca soberania, prestígio e confiabilidade perante a ordem internacional.


4. Monismo X Dualismo

A aplicabilidade dos tratados internacionais depende do modo pelo qual eles são aceitos e incorporados ao sistema normativo nacional, resultando disto, sua posição no sistema da hierarquia das leis.

A doutrina se divide em dois posicionamentos no que se refere ao relacionamento entre o Direito Internacional Público e o Direito Interno: o monismo e o dualismo. O primeiro deles defende que existe a possibilidade de uma simplificação das ordens jurídicas concorrentes à unidade normativa14. É o DIP e o Direito Interno integrando uma ordem jurídica universal, coexistindo normas nacionais e internacionais num mesmo sistema jurídico. Os seus defensores não são homogêneos, abrindo uma fenda na doutrina em monismo com primazia do Direito Internacional e monismo com primazia do Direito Interno (o Direito Interno não pode ficar à mercê do sistema internacional, oferecendo risco à soberania estatal).

O monismo internacionalista radical de Kelsen sustenta que o conflito entre a norma interna e a internacional causa a nulidade daquela, ganhando destaque tal posicionamento com o teor do artigo 27 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (CVDT): uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado15.

Frente essas doutrinas extremas, há uma tese diferenciada, qualificada por Verdross de monismo moderado, defendida por inúmeros teóricos como a que melhor reflete a prática jurídica contemporânea. Tal proposição defende a possibilidade de conflitos entre o Direito Internacional e o Direito Interno, sendo que tais conflitos não têm caráter definitivo e encontram sua solução na unidade do sistema jurídico16. Desta forma, se busca harmonizar a necessidade de afirmação soberana do Estado com o universalismo do Direito Internacional17, inexistindo padronização.

O dualismo sustenta que o problema do monismo é a falta de homogeneidade entre o Direito Internacional e o Direito Nacional que possibilite a propalada redução normativa, uma vez que suas origens, seus institutos, suas instituição, seus meios de coação e de resolução de conflitos são distintos18. No dualismo, as ordens jurídicas nacional e internacional são autônomas, e cada uma delas fixa as condições para que uma norma pertencente à ordem externa possa ser integrada à própria ordem 19. A criação,modificação e extinção das normas internacionais dependem de vontades soberanas, enquanto as normas internas representam a manifestação singular da vontade soberana. Assim, não basta que um tratado seja ratificado. É preciso a aprovação de uma lei (dualismo radical) ou outro ato normativo de validação (dualismo moderado)20.

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A adoção pelo sistema radical ou moderado não tem grande conseqüências práticas. O que importa é a exigência constitucional da ingerência parlamentar para a validade de um tratado internacional. Constata-se que o dualismo pode inviabilizar iniciativas de cooperação e integração, tornando a supranacionalidade uma quimera.


5. Soberania Compartilhada

Soberania já foi objeto do presente trabalho no item dois, tendo-se concluído que houve uma flexibilização ou relativização do seu conceito com o passar do tempo.

Os Estados têm receio de compartilhar sua soberania, ou seja, de transferir competências, por entenderem que podem perdê-la total ou parcialmente, se assim o fizerem.

A eficácia das normas internacionais dependerá da maneira pela qual as normas nacionais lhes dêem efeito. Os Estados atuam por intermédio de seus Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) também sujeitos ao respectivo ordenamento jurídico interno. É de fundamental importância que este não crie barreiras para aplicação das normas internacionais e que preveja regras a serem adotadas em caso de conflito entre uma esfera e outra.

É inconteste a proliferação de tratados e normas internacionais fazendo pressão sobre os Estados no sentido de se adaptar o conceito de soberania à nova realidade dos processos integracionistas (blocos regionais), geradores de normas supranacionais; geradores do Direito Comunitário que se destina a reger as relações recíprocas dos cidadãos, das instituições comunitárias e dos Estados membros, que é integrado por um conjunto de normas constantes dos Tratados (convenções), denominado direito originário, epelas disposições decorrentes dos atos emanados das Instituições Comunitárias (regulamentos, diretivas), denominado direito derivado21.

Patrícia Ribeiro alerta para o fato de que22:

(...) a soberania internacional não anula a soberania nacional, sendo ambas poderes supremos em suas respectivas esferas. As entidades supranacionais não eliminam o caráter de sujeitos de Direito Internacional dos Estados-membros, mas somente limitam o exercício da prerrogativa de entes soberanos nos setores de atividades inerentes ao processo de integração em que os Estados se encontram inseridos.

É tendência o abandono da soberania absoluta - incompatível com qualquer processo de integração - por uma noção de soberania relativa ou de mitigação de soberania, em que os Estados exercendo os seus direitos soberanos, criam um corpo de direito aplicável tanto a eles próprios quanto aos seus cidadãos23. A regra comunitária, em se tratando do princípio da aplicabilidade imediata, dispensa recepção ou nacionalização para que produza efeito no território do respectivo Estado-membro. Quanto ao princípio do efeito direto, significa a criação de direitos e obrigações para os particulares, passíveis de invocação perante os Tribunais internos, seja de um particular frente ao Estado ou uma Autoridade Comunitária (efeito direto vertical), seja entre um particular e outro (efeito direto horizontal)24.

O Direito Comunitário não visa substituir o Direito Interno, tampouco o Internacional. Enquanto as autoridades comunitárias estão sujeitas unicamente ao disposto no Ordenamento Comunitário, as internas devem atender às exigências deste e do Direito Nacional. Não existe negativa da soberania, mas sim, o reconhecimento de um poder acima do soberano: o supranacional. Reis destaca o posicionamento do jurista argentino Roberto Dromi quanto a essa relação entre o processo de integração e a noção de supranacionalidade ao dispor que25:O processo de integração se caracteriza pela existência de organismos supranacionais que fixam, preparam ou coordenam normas que hão de reger a ação dos Estados integrados. A integração gera uma comunidade jurídica, um direito próprio comum que não é um direito estrangeiro nem exterior.

A supranacionalidade vem socorrer os Estados como meio de solucionar o conflito entre o conceito tradicional de soberania e as necessidades da integração, sejam elas sociais, econômicas, políticas, jurídicas ou culturais. Os membros negociam em quais áreas atuarão conjuntamente. Acordes com isso, atribuem competências aos órgãos comunitários, daí surgindo a idéia de soberania compartilhada, pois a comunidade passa a ser o espaço comum entre os países, do qual todos participam exercendo seu poder soberano26. Aceita-se que algumas das competências estatais sejam exercidas exclusivamente pelos órgãos comunitários. Assim, referentemente às áreas que extrapolem o acordo, o Estado não se submete a nenhum órgão, havendo cooperação internacional. Já no que se refere às competências delegadas, há de fato integração27, ressaltando que não é a comunidade quem define suas atribuições; ao contrário, elas são definidas pelos Estados (princípio da subsidiariedade).

Existem características que sobressaem na supranacionalidade: i) há instâncias de decisão independentes do poder estatal (sistema jurisdicional que tem a colaboração dos Tribunais internos dos Estados-membros, como fiscais da aplicação do ordenamento jurídico comunitário e viabilizadores do sistema de integração); ii) o modelo de resolução de conflitos tem por base a decisão majoritária, com a transferência de soberania à autoridade comum; iii) objetivos comuns aos membros interessados na formação da comunidade (por tratado), sobrepondo-se esses objetivos a qualquer outro interesse estatal individualmente considerado, sem abandonar a idéia de que os órgãos comunitários não são superiores aos Estados. As matérias ditadas pela comunidade, objeto da delegação de competências estatal é que são hierarquicamente superiores às normas nacionais sobre mesmo tema.


6. Brasil: recepção e eficácia da norma internacional no sistema jurídico interno

Antes de adentrarmos no conteúdo deste item, faz-se mister algumas observações quanto às noções de Tratado e de aplicabilidade direta da norma comunitária.

Tratado é definido por Rezek como o acordo formal concluído entre sujeitos de Direito Internacional Público, e destinado a produzir efeitos jurídicos28, contidos nesta definição as convenções, os acordos, os pactos e os ajustes internacionais que difere do Tratado instituidor da comunidade.

Para a primeira espécie (acordo formal entre sujeitos de Direito Internacional Público), surge o problema da incorporação ao direito interno, enfrentado pelo Direito dos Tratados, que trata de questões como monismo e dualismo (vide item quatro) e a prevalência do Direito Interno ou Internacional.

No estudo do Direito Internacional Público, costuma-se entender o processo de elaboração de um Tratado desdobrando-o em duas fases distintas. Na primeira, o Estado atua em conjunto com outras pessoas internacionais. É dividida também em duas etapas. Primeiro, tem-se a negociação, quando se credenciam os representantes de cada país signatário, define-se a sede de negociação, o tipo de acordo e ainda se nomeia o responsável pela troca ou depósito dos instrumentos de ratificação. Após essa fase, que se opera nos planos interno e externo e conclui-se pela apresentação do projeto, passa-se ao segundo ato, que é a assinatura, que pode se dar, inclusive, sob reservas, se não houver acordo sobre determinado ponto da negociação.

Firmado o projeto, o Tratado mostra-se perfeito, válido e exigível na ordem internacional. Passa-se, então, à segunda fase de seu processo de elaboração e validade, estabelecida dentro do território do Estado, que realiza os atos isoladamente. É a etapa facultativa, visto que depende da regulamentação constitucional dada por cada ordenamento jurídico e que o diferencia da teoria geral européia das normas comunitárias29.

Nos sistemas que dispensam a exigência da ratificação, o processo de elaboração e validade de um Tratado encerra-se com o ato da assinatura.

A sistemática adotada no direito brasileiro tem por imprescindível a ratificação, a promulgação, a publicação e o registro do Tratado. A ratificação é cumprida através da edição de um decreto legislativo pelo Congresso Nacional, seguindo-se a promulgação por um decreto do Poder Executivo, a publicação no Diário Oficial da União e nos Anais do Itamaraty e o registro, momento este em que o Estado ou o organismo internacional signatário consolida sua responsabilização completa pelo cumprimento das regras estatuídas no Tratado30.

A Constituição brasileira prevê em seu art. 5°, § 1°31:

Art. 5.° (...)

§ 1.º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

§ 2.º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

§ 3.º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

§ 4.º (...), grifo meu.

A Suprema Corte brasileira se pronunciou no sentido de que o Brasil adota a teoria dualista moderada (requer procedimento e não lei específica para a internalização das regras de Direito Internacional). Neste sentido é o seguinte julgado32:

(...) Relações entre o direito internacional, o direito comunitário e o direito nacional do Brasil - Princípios do efeito direto e da aplicabilidade imediata - Ausência de sua previsão no sistema constitucional brasileiro - Inexistência de cláusula geral de recepção plena e automática de atos internacionais, mesmo daqueles fundados em tratados de integração - Recurso de agravo improvido. A recepção dos tratados ou convenções internacionais em geral e dos acordos celebrados no âmbito do Mercosul está sujeita à disciplina fixada na Constituição da República, (grifo meu).

Defende Márcio Barbosa33 que a disciplina constitucional referida na ementa acima se faz necessária porque as regras (de direito externo e de direito interno) estão em planos diversos e separados, podendo ocorrer que uma regra estabelecida em um Tratado internacional incorporado ao direito brasileiro seja revogada por lei ordinária posterior, já que o próprio Supremo Tribunal Federal equipara o Tratado à lei federal ordinária e, mesmo assim, o Brasil continuar sendo parte desse Tratado na seara internacional, respondendo por seus atos perante a comunidade internacional. Entendemos que Márcio se contradiz ao continuar a defesa de seu argumento quando assevera que:

(...) a regra vigente de revogação de lei anterior pela lei posterior é princípio assente no nosso sistema jurídico e aplicável ao ordenamento como um todo. Com isso também fica claro que os dois sistemas – o interno e o internacional — são separados, pois ocorre, muitas vezes, do Brasil continuar obrigado internacionalmente por dispositivo de tratado (posto que seu "parceiro" não foi comunicado da modificação) enquanto a legislação interna já o modificou, (grifo meu).

Assim, discordamos de tal posicionamento, posto não haver como tratar o tema de forma estanque. Se a ciência da modificação legal pelo “parceiro” é fato gerador da desobrigação do pacto, os compromissos internacionais simplesmente não existem, tendo a lei interna o condão de revogar, ou como querem alguns estudiosos, tornar sem efeito os Tratados. A recepção pelo ordenamento jurídico brasileiro de um Tratado, se não for quanto a Direitos Humanos, é equiparado à lei ordinária, não tendo status de Emenda Constitucional.

Apesar de não ser o foco do presente trabalho, cabe enfatizar que há quatro correntes quanto à hierarquia dos Tratados de Direito Humanos: i) a vertente que reconhece a natureza supraconstitucional dos tratados e convenções em matéria de direitos humanos; ii) o posicionamento que atribui caráter constitucional a esses diplomas internacionais; iii) a tendência que reconhece o status de lei ordinária a esse tipo de documento internacional; iv) a interpretação que atribui caráter supralegal aos tratados e convenções sobre direitos humanos.

A Justiça brasileira adota o posicionamento de que em não sendo eles aprovados sob o quórum de emenda (3/5), estão submetidos à supremacia constitucional, gozando de privilégio frente à legislação ordinária. Denominando-se norma "supralegal", a que se põe abaixo da Constituição e acima da lei pátria (vide Recurso Extraordinário n° 466.343/SP)34.

Decidiu, recentemente, o Supremo Tribunal Federal quanto à internalização das normas de direito externo35:

Os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em conseqüência, entre estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa. No sistema jurídico brasileiro, os atos internacionais não dispõem de primazia hierárquica sobre as normas de direito interno, (grifo meu).

Conclui-se que o Brasil não está preparado constitucionalmente para integrar-se, inexistindo no ordenamento o princípio da primazia do Direito Comunitário, sendo importante destacar, no entanto, a existência de uma autoridade supranacional, o Tribunal Penal Internacional, em que houve transferência de competências soberanas, art. 5°, § 4º, da Constituição Federal brasileira, in verbis: “O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”.

Finalmente, respondendo a pergunta-tema do presente trabalho, a supranacionalidade é ficção na República Federativa do Brasil, havendo necessidade de amadurecer a idéia de efetivação do processo de integração, emendando a Constituição de forma a inserir o instituto da supranacionalidade, como ocorreu com a Argentina na Reforma Constitucional de 1.994.

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Sobre a autora
Sandra Regina Pires

Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (UMSA), com diploma em fase de reconhecimento. Especialista em Direito Processual Civil com Formação para o Magistério Superior. Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora no curso de Graduação em Direito da Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP, ministrando as disciplinas Direitos Reais, Direito Processual Civil (Recursos) e Introdução ao Estudo do Direito. Membro da Comissão de Arbitragem da Ordem dos Advogados do Brasil – Subseção Jabaquara/Saúde. Mediadora e Conciliadora capacitada pelo Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) para atuar nas iniciativas pública e privada, habilitada junto ao Núcleo de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e inscrita no Cadastro Nacional de Mediadores e Conciliadores do Conselho Nacional de Justiça. Integrante do painel de árbitros e mediadores da Câmara de Mediação e Arbitragem Especializada (CAMES/SP). Integrante do painel de conciliadores da Câmara de Mediação e Arbitragem de Joinville (CEMAJ). Advogada militante nas áreas cível e família há 26 anos. Atuação no Magistério Superior por 10 anos, ministrando as disciplinas: Prática Jurídica Civil I e II, Direitos Reais, Responsabilidade Civil e Direito Civil (Parte Geral). Integrante do Núcleo de Prática Jurídica. Atuação como Coordenadora de Monitoria e Estágios. Professora do Curso Preparatório para Magistrados na ESMA/PB (Escola Superior da Magistratura Estadual) nas disciplinas Ação Popular/Ação Civil Pública, Atualidades em Processo Civil, Direitos Reais e Direito Civil (Parte Geral). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9557919549020744.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIRES, Sandra Regina. Supranacionalidade: realidade ou ficção?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3836, 1 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26129. Acesso em: 20 abr. 2024.

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