O art. 184 da Constituição Federal estabelece quais são os requesitos que autorizam a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Confira-se:
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.
O primeiro requisito diz respeito ao ente federado competente para desapropriar por interesse social para fins de reforma agrária que, no caso, é a União Federal. O Segundo requisito está relacionado com a hipótese legal em que tal procedimento expropriatório será permitido: imóvel rural não cumpridor de sua função social. Já o terceiro requisito diz respeito ao pagamento da prévia e justa indenização.
Da mera leitura do dispositivo em destaque, logo se percebe que se trata de uma desapropriação sanção, pois a percepção de uma indenização, a ser quitada ao longo de um prazo de até 20 anos decorre da ideia do descumprimento de uma obrigação imposta constitucionalmente, a saber, a função social da propriedade (CIRNE, 2010, p. 6392).
Assim, o caráter sancionador da desapropriação para fins de reforma agrária decorre da própria definição dessa espécie de desapropriação por interesse social. Sobre esse ponto, José Afonso da Silva (2002, p. 796) ensina que “A sanção para o imóvel rural que não está cumprindo a sua função social é a desapropriação por interesse social (...)”.
A Constituição Federal de 1988 traz várias referências à função social da propriedade. Além de estipulá-la como princípio da ordem econômica (art. 170, III, CF/88), a nossa Carta Política trouxe inovação importante em relação às anteriores ao insculpir esse princípio no rol dos direitos fundamentais do art. 5º (inciso XXIII). A nova ordem constitucional deixou claro que o princípio da função social passou a integrar o próprio conteúdo do direito de propriedade, como elemento dinâmico de sua estrutura que condiciona e confere legitimidade ao seu exercício.
Não goza a função social da propriedade de uma feição negativa; não tem o sentido de estabelecer limites ao direito de propriedade. Ao revés, assume uma feição do tipo promocional, típica dos princípios constitucionais impositivos, permitindo inclusive o reconhecimento da inconstitucionalidade de leis que o ignorem.
Na opinião de José Afonso da Silva (2002, p. 275), a função social da propriedade “constitui um princípio ordenador da propriedade privada e fundamento de atribuição desse direito, de seu reconhecimento e de sua garantia mesma, incidindo sobre seu próprio conteúdo”.
No que se refere à propriedade rural, o constituinte de 1988 também inovou ao trazer para a Carta Magna os requisitos da função social dos imóveis rurais, estabelecendo-os no art. 186. O referido dispositivo legal estruturou o conceito de função social, deixando claro que o seu aperfeiçoamento reclama o atendimento simultâneo não somente de valores ligados à mera produtividade econômica, mas também ao meio ambiente, ao trabalho e ao bem-estar social (BRASIL, 2011a, p. 106). Eis o teor do referido dispositivo:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Verifica-se, portanto, que esses quatro elementos operam como subfunções que compõem o núcleo da função social da propriedade, quais sejam: a subfunção socioeconômica (Art. 186, I), a subfunção socioambiental (Art. 186, II), a subfunção trabalhista (Art. 186, III) e a subfunção bem-estar (Art. 186, IV).
Ao qualificar a dimensão ambiental, o inciso II do art. 186 o desdobra em duas condicionantes: a) a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e; b) a preservação do meio ambiente. O primeiro aspecto da função ambiental está diretamente relacionado ao “aproveitamento” da terra, referido no inciso I. Na dimensão ambiental, o conceito de racionalidade vai além e trata também da utilização adequada dos recursos naturais disponíveis, uma vez que sua conservação também contribui para o cultivo da terra, sempre realçando que sua exploração deve observar a vocação natural da terra (BRASIL, 2011a, p. 106).
No que concerne ao segundo aspecto da dimensão ambiental, restou ratificada a preocupação do legislador constituinte com o meio ambiente equilibrado, direito fundamental das presentes e futuras gerações e que recebeu da Constituição Federal de 1988 um capítulo inteiro dedicado em seu favor (o Capítulo VI do Título VIII).
Assim, qualquer uso da propriedade que contrarie essa regra de conduta, configurará um ilícito passível de ser mensurado pelo órgão federal executor da reforma agrária e capaz de ensejar a desapropriação-sanção. Nesse sentido, é de se observar que o art. 225, § 3º da CF/88 estipula que as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores a sanções penais e administrativas.
Desse modo, considerando que a desapropriação para fins de reforma agrária tem natureza de sanção, resta patente que o dispositivo retratado está em sintonia com as disposições da função social da propriedade, autorizando não só a desapropriação de imóveis que promovam a degradação ambiental, mas também o abatimento do valor do dano ambiental provocado do justo preço a ser pago ao proprietário infrator.
Logo, inteira razão assiste a CIRNE (2010, p. 6393) quando afirma que “não há como negar que a própria Constituição clama por uma interpretação da propriedade que conjugue a produtividade com a preservação do meio ambiente”.
No entanto, alguns operadores do Direito, açodadamente, ao nosso ver, têm feito uma interpretação rasa do art. 185, II, da Constituição Federal, a eles parecendo que a função social da propriedade e produtividade seriam coisas distintas, e em razão disso, defendem que somente seriam passíveis de desapropriação-sanção as áreas improdutivas do ponto de vista economicista. Para nós, é clara a conclusão de que não pode haver produtividade sem função social, porquanto é a produtividade apenas uma das condicionantes da função social da propriedade.
Em nossa opinião, com bem observou Souza Filho (2002, p. 39), a primeira interpretação atira às traças a definição escrita em ouro da função social da propriedade. Separar a ideia de função social da ideia de produtividade significa desconsiderar toda a doutrina criada acerca da função social da propriedade, e, ainda mais grave que isso, significaria reduzir o art. 186 da Constituição Federal a retórica não escrita.
A nossa posição está calcada em interpretação sistemática da Constituição Federal. Uma interpretação que leve em conta a estrutura principiológica do texto constitucional. Em tal abordagem, quando a Constituição afirma ser insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária a propriedade produtiva (art. 185, II, CF/88), está elevando o conceito de produtividade à ideia de razão humana e social. Daí que não pode ser considerada produtiva uma propriedade que, ainda que gere lucros imediatos e imensos, não aproveite racional e adequadamente o solo e os recursos naturais, não proteja o meio ambiente, não observe as disposições que regulam as relações de trabalho, nem favoreça o bem estar dos trabalhadores e proprietários (PINTO JÚNIOR; FARIAS, 2005, p. 15).
Em verdade, trata-se de um conflito aparente entre a norma contida no art. 185, II, e a norma contida no art. 186, ambos da Constituição Federal, que só pode ser resolvido com recurso à interpretação sistemática e ao conjunto de princípios que estão na base da Constituição, não se podendo olvidar que a moderna hermenêutica constitucional ensina que, na interpretação do Direito, o ordenamento jurídico seja considerado como um todo complexo, composto por regras e princípios e que a interpretação isolada de um norma pode deturpar seu verdadeiro significado, até mesmo podendo resultar num sentido que possa ir contra os fins da ordem jurídica.
Em primeiro lugar, deve-se ter em conta as normas contidas no art. 7º da Constituição Federal, com todos os seus 34 incisos, que tratam dos direitos dos trabalhadores rurais, cuja observação é requisito da função social da propriedade (art. 186, III, CF/88). Também, deve-se ter em conta todo o Capítulo VI da Constituição Federal, que trata do meio ambiente e alça a preservação do meio ambiente como um direito fundamental de todos em seu art. 225, caput (elementar da função social da propriedade, art. 186, II, CF/88). Da mesma forma, deve-se ter em mente o disposto no art. 193 da Constituição Federal, que elege o bem estar social como objetivo da ordem social, que, por sua vez, é subfunção da função social da propriedade (art. 186, IV).
Ademais, é importante notar que o art. 186 da Constituição Federal estrutura o conceito de função social da propriedade a partir de um quadripé, para cujo aperfeiçoamento reclama simultaneamente não só valores ligados à produtividade, mas um componente referido à produtividade (inciso I), um referido ao meio ambiente (inciso II), um referido ao trabalho (inciso III) e um referido ao bem estar (inciso IV), operando todos nos moldes de sub-funções sociais da propriedade, sem a presença de cada qual a função social não se aperfeiçoa como conceito harmônico (PINTO JÚNIOR; FARIAS, 2005, p. 23).
Dessa forma, na linha dos ensinamentos de PINTO JÚNIOR e FARIAS (2005, p. 17), a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária de imóveis rurais que não estejam cumprindo a função social da propriedade é imperativo constitucional, decorrente do art. 184 da CF/88. Em outras palavras, de acordo com o art. 186 da própria Constituição Federal, o imóvel que deverá ser desapropriado e destinado para a reforma agrária será aquele que, em conjunto ou separadamente, não tenha aproveitamento racional e adequado, não apresente utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e nem preserve o meio ambiente, não observe as regulamentações trabalhistas, e cuja exploração não favoreça o bem estar dos proprietários, ainda que seja produtivo do ponto de vista econômico.
Nesse contexto, é de se perguntar: como poderia, então, o art. 185 da CF/88 ignorar tais disposições e autorizar a proteção de uma propriedade rural que, embora sendo produtiva do ponto de vista economicista, desconsidere a legislação ambiental, a legislação trabalhista e esteja em desacordo com o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores?
Portanto, a interpretação sistemática do texto constitucional e a consideração do Direito como integridade, na linha da teoria principiológica de Dworkin, levam à conclusão de que deve necessariamente sofrer desapropriação a propriedade cuja exploração não respeite a vocação natural da terra, degradando o seu potencial produtivo, que não mantenha as características próprias do meio natural, que agrida a qualidade dos recursos ambientais, não contribuindo para a manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade, que desrespeite as relações de trabalho, que não seja adequada à saúde e à qualidade de vida dos que nela laboram e das comunidades vizinhas, ainda que seja produtiva do ponto de vista estrito da economia.
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