No dia 23 de outubro de 2013, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça decidiu pela edição do Enunciado 501 (publicado no dia 28 de outubro), com o seguinte teor: “É cabível a aplicação retroativa da Lei nº. 11.343/2006, desde que o resultado da incidência das suas disposições, na íntegra, seja mais favorável ao réu do que o advindo da aplicação da Lei nº. 6368/1976, sendo vedada a combinação de leis.” (Grifo meu).
Plagiando Otávio Mangabeira, a sua frase poderia perfeitamente ser aplicada a este Enunciado: “Pense em um absurdo, na Bahia tem precedente.”[1] O precedente agora, além de jurisprudencial, é do Superior Tribunal de Justiça. Trata-se de uma verdadeira chacota à inteligência dos penalistas e constitucionalistas brasileiros (deixando logo claro que me considero um simples estudioso do Direito Processual Penal, o que não me desanimou enfrentar a questão, tal o seu fantástico disparate – desculpem a redundância, mas, neste caso, além de correta, ela é necessária).
Ora, a admissibilidade de combinação de lei penais é uma exigência do próprio legislador constituinte, quando impõe a aplicação da lei penal, retroativamente, para beneficiar o réu (art. 5º., XL). Evidentemente que não se pode confundir lei com norma jurídica, tampouco um parágrafo de um artigo de lei com norma jurídica, mesmo porque não se confundem espécie e gênero. Aliás, salvo engano, tais lições são aprendidas logo no início de um bom curso de Direito.
Outrossim, obviamente, que não quis o legislador constituinte reduzir a expressão “lei penal”, a um artigo “na íntegra” de uma lei. Claro que não! Qualquer dispositivo de caráter penal que seja mais benéfico para o réu ou indiciado deve ser aplicado retroativamente (ainda que se trate de um parágrafo de um artigo), levando-se em consideração a lei vigente na data da prática da infração penal (ação ou omissão – art. 4º., Código Penal).
Aqui devemos aplicar o princípio da máxima efetividade, ou da eficiência, também conhecido como princípio da interpretação efetiva, segundo o qual “a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê.”[2] Observa-se que não defendo, muito pelo contrário, uma invasão judicial frente ao legislador (tampouco uma elasticidade axiológica), mas apenas uma obediência a um princípio constitucional (a lei penal retroage para beneficiar), absolutamente compatível com o princípio da legalidade, pois, longe disso, ambos devem ser levados em consideração pelo Magistrado, atentando-se a um terceiro princípio: o do favor libertatis.
Tal princípio deve observado em toda e qualquer interpretação das normas penais. Lembro, com Giuseppe Bettiol, que em uma “determinada óptica, o princípio do favor rei é o princípio base de toda a legislação penal de um Estado inspirado, na sua vida política e no seu ordenamento jurídico, por um critério superior de liberdade.” (...) Não há, efetivamente, Estado autenticamente livre e democrático em que tal princípio não encontre acolhimento. É uma constante das articulações jurídicas de semelhante Estado, um empenho no reconhecimento da liberdade e autonomia da pessoa humana.” (...) No conflito entre o jus puniendi do Estado por um lado e o jus libertatis do arguido por outro, a balança deve inclinar-se a favor deste último se se quer assistir ao triunfo da liberdade.”[3]
Nada obstante não ser favorável a uma “suposta” incerteza jurídica ou retalhar leis, o certo é que o importante é observar a Constituição, custe o que custar!
A combinação de leis penais não fere o ordenamento jurídico, mas, muito pelo contrário, trata-se da observância de um princípio expressamente consagrado constitucionalmente, ressaltando que cada caso implica uma análise das variações abstratas de cada lei, ainda que para isso tenham que ser ouvidos os mais interessados, o acusado e o indiciado (aliás, algo nada mais natural, à luz do contraditório).
Para ilustrar, vejamos alguma doutrina a respeito:
Segundo José Frederico Marques, "dizer que o Juiz está fazendo lei nova, ultrapassando assim suas funções constitucionais, é argumento sem consistência, pois o julgador, em obediência a princípios de equidade consagrados pela própria Constituição, está apenas movimentando-se dentro dos quadros legais para uma tarefa de integração perfeitamente legítima. O órgão judiciário não está tirando ex nihilo a regulamentação eclética que deve imperar hic et nunc. A norma do caso concreto é construída em função de um princípio constitucional, com o próprio material fornecido pelo legislador. Se ele pode escolher, para aplicar o mandamento da Lei Magna, entre duas séries de disposições legais, a que lhe pareça mais benigna, não vemos porque se lhe vede a combinação de ambas, para assim aplicar, mais retamente, a Constituição. Se lhe está afeto escolher o "todo", para que o réu tenha o tratamento penal mais favorável e benigno, nada há que lhe obste selecionar parte de um todo e parte de outro, para cumprir uma regra constitucional que deve sobrepairar a pruridos de lógica formal. Primeiro a Constituição e depois o formalismo jurídico, mesmo porque a própria dogmática legal obriga a essa subordinação, pelo papel preponderante do texto constitucional. A verdade é que não estará retroagindo a lei mais benéfica, se, para evitar-se a transação e o ecletismo, a parcela benéfica da lei posterior não for aplicada pelo Juiz; e este tem a missão precípua de velar pela Constituição e tornar efetivos os postulados fundamentais com que ela garante e proclama dos direitos do homem" (Tratado de Direito Penal, Saraiva, São Paulo, 2ª edição, 1964, volume 1, páginas 210/211).
Francisco de Assis Toledo, comentando a questão, escreveu que "em matéria de direito transitório, não se pode estabelecer dogmas rígidos como esse da proibição da combinação de leis. Nessa área, a realidade é muito mais rica do que pode imaginar a nossa "vã filosofia"...parece-nos que uma questão de direito transitório - saber que normas devem prevalecer para regular determinado fato, quando várias apresentam-se como de aplicação possível - só pode ser convenientemente resolvida com a aplicação dos princípios de hermenêutica, sem exclusão de qualquer deles. E se, no caso concreto, a necessidade de prevalência de certos princípios superiores conduzir à combinação de leis, não se deve temer este resultado desde que juridicamente valioso. Estamos pois de acordo com os que profligam, como regra geral, a alquimia de preceitos de leis sucessivas, quando umas se destinam a substituir as outras" (Princípios Básicos de Direito Penal, Saraiva, São Paulo, 1991, 4ª edição, página 38). Que saudade...
Do mesmo modo, Cezar Roberto Bitencourt, cita Bustos Ramirez, para quem é admissível "a combinação de leis no campo penal, pois nunca há uma lei estritamente completa, enquanto há leis especialmente incompletas, como é o caso da norma penal em branco; consequentemente, o juiz sempre está configurando uma terceira lei, que, a rigor, não passa de simples interpretação integrativa, admissível na atividade judicial, favorável ao réu" (Tratado de Direito Penal, Saraiva, São Paulo, 2007, 11ª edição, Parte Geral 1, p. 168).
Luiz Flávio Gomes e Antônio García-Pablo de Molina, asseveram que "nada impede que ocorra a combinação dos aspectos favoráveis de várias leis penais, aproveitando-se em favor do réu os textos mais benéficos (ex.: a pena de prisão antiga com a pena de mula nova menos gravosa) (RT 710/330). Se a jurisprudência do STF admite a combinação de várias leis até para prejudicar o réu (cf. o art. 8º da Lei dos Crimes Hediondos - Lei 8.072/90 - e sua relação com o antigo art. 14 da Lei de Tóxicos - Lei 6.368/76: segundo o STF vigorava a descrição típica do art. 14 mas a pena era a do art. 8º da Lei dos Crimes Hediondos - JSTF 243/356), não há como não admitir a mesma combinação para beneficiá-lo. Note-se que na combinação de leis penais o juiz não está criando uma nova lei; apenas aplica as partes benéficas devidamente aprovadas pelo Parlamento. O juiz não cria nenhuma lei. Combinar aspectos favoráveis de duas leis não significa criar uma terceira. Esse ato (a criação de lei) é de atribuição exclusiva do Legislativo. Combinar leis devidamente aprovadas pelo Parlamento, entretanto, não significa criá-las. O juiz estaria criando lei nova se a decisão tivesse como fonte sua vontade. Aplicar aspectos favoráveis de duas leis significa aplicar a vontade da lei, resultando da mens legislatoris e da mens legis. Se o juiz não está impondo sua vontade, sim, apenas combinando aspectos favoráveis de duas leis aprovadas pelo Parlamento, não há que se falar em criação (sim, em aplicação de lei penal)" (Direito Penal, RT, São Paulo, 2007, V. 2, Parte Geral, páginas 97/98).
Rogério Greco leciona que "a combinação de leis levada a efeito pelo julgador, ao contrário de criar um terceiro gênero, atende aos princípios constitucionais da ultra-atividade e retroatividade benéficas. Se a lei anterior, já revogada, possui pontos que, de qualquer modo, beneficiam o agente, deverá ser ultra-ativa; se na lei posterior que revogou o diploma anterior também existem aspectos que o beneficiam, por respeito aos imperativos constitucionais, devem ser aplicados, a exemplo do que ocorreu com as Lei nºs 6.368/76 e 11.343/2006, onde a pena mínima cominada ao delito de tráfico de drogas era de 3 (três) anos (revogado art. 12), sendo que a novatio legis a aumentou para 5 (cinco) (atual art. 33). No entanto, a nova Lei previu, em seu art. 33, § 4º, uma causa especial de redução de pena que não constava da lei anterior...Assim, deverá o julgador, na hipótese de crime de tráfico ocorrido na vigência da Lei nº 6.368/76, além de partir, obrigatoriamente, da pena mínima de 3 (três) anos, aplicar, se o caso concreto permitir, a causa de redução prevista na Lei nº 11.343/2006, conjugando, assim, em benefício do agente, os dois diplomas legais, em estrita obediência ao disposto no inciso XL, do art. 5º da Constituição Federal, que prevendo os princípios da ultra e da retroatividade benéficas, determina que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu." (Curso de Direito Penal, Parte Geral, Volume 1, Ímpetus, Niterói/RJ, 9ª edição, 2007, páginas 116/117).
Aliás, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça diminuiu a pena de um homem condenado por crime de extorsão mediante sequestro, por entender que a qualificadora acrescida ao Código Penal pelo Estatuto do Idoso não deveria ser considerada no caso, pois ocorreria uma retroatividade de lei penal mais gravosa. (Disponível em: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=108324). Qual a diferença? Um parágrafo?
Na Corte constitucional, ao dar provimento a um recurso julgado pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, os Ministros reiteraram princípio segundo o qual uma lei penal não pode retroagir, salvo para beneficiar o réu. Neste caso, discutia-se a retroação da Lei 8.072/90 para efeito dos benefícios previstos no Decreto natalino nº 4011, de 2001. “Aplicou-se a Lei 8.072/90, em termos de natureza do crime, à situação concreta reveladora da prática criminosa em data anterior que a antecedeu”, afirmou o ministro Marco Aurélio, relator da matéria. Segundo ele, a corte de origem enquadrou como hediondo delito cometido em data anterior à Lei 8.072/90 “muito embora o tenha feito considerado o indulto previsto no Decreto 4011, de 2001”. O Ministro Marco Aurélio afirmou que o dispositivo constitucional estabelece que lei penal só pode retroagir se for benéfica: “se não é benéfica não pode retroagir”. “No caso, retroagir à lei de crime hediondo a crime praticado antes da sua vigência, evidentemente que não é benéfico”, enfatizou (Recurso Extraordinário nº. 452.991).
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus n.º 69.033-5, reconheceu a possibilidade de conjugação de leis. Transcrevo ementa do voto do relator, Ministro Marco Aurélio, acompanhado pelos demais Ministros: “Admite-se a retroatividade da lei penal, a ponto de alcançar fatos anteriores, no que se mostre mais favorável ao agente - artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal. Separáveis as partes das normas em conflito, possível e a aplicação do que nelas transpareça como mais benigno.” (DJ 13/03/1992, p. 02925 - RTJ Vol. 139-01, p. 229).
Sem querer utilizar argumentos de autoridade, o certo é que no dia 13 de outubro de 2011, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se favorável à combinação de leis penais, quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº. 596.152, oportunidade onde se discutia exatamente a possibilidade de aplicação da causa de diminuição da pena prevista no § 4.º do art. 33 da Lei nº. 11.343/2006 a um acusado de crime de tráfico de drogas cometido ainda sob a vigência da Lei 6.368/1976.
Feitas tais considerações, lembra-se que por lei mais benéfica não se deve entender apenas aquela que comine pena menor, pois “en principio, la retroactividad es de la ley penal e debe extenderse a toda disposición penal que desincrimine, que convierta un delito en contravención, que introduzca una nueva causa de justificación, una nueva causa de inculpabilidad o una causa que impida la operatividad de la punibilidad, es dicer, al todo el contenido que hace recaer sobre la conduta, sendo necessário que se tenha em conta uma série de outras circunstâncias, o que implica em admitir que “la individualización de la ley penal más benigna deba hacerse en cada caso concreto, tal como ensina Eugenio Raul Zaffaroni. (Grifo meu)[4].
Para Günther Jakobs: “La determinación de la ley mas favorable ha de llevarse a cabo por separado para cada clase de reacción y para cada fase de la determinación, de modo que puede haber que aplicar, en función de cada reacción penal o de la fase de cômputo em cuestión, distintas leyes como em cada caso más favorables. En el supuesto del ejemplo, habría que medir la pena en el marco de la comminación penal de la ley vigente em el momento del hecho (en esta medida, es más favorable la ley antigua), pero sin tener em cuenta la reincidencia (en esta medida, es más favorable la ley nueva)." (Parte General, Fundamentos y Teoria de la imputación, Marcial Pons, Madrid, 1997, 2ª edición, página 126).
Decididamente, estamos à mercê de analfabetos funcionais ou de ignorantes em Direito![5]
Notas
[1] O Engenheiro e Professor de Astronomia, Octavio Mangabeira, nascido em Salvador, foi Governador da Bahia (primeiro Governador eleito após os anos da Era Vargas) e membro da Academia Brasileira de Letras. Teve uma longa carreira política que lhe rendeu dois exílios. Em 1912 foi eleito Deputado Federal e, em 1926, no Governo Washington Luís, Ministro do Exterior. Após o fim do Estado Novo, elegeu-se Deputado Constituinte em1945. Elegeu-se Senador da República em 1958, falecendo durante o mandato. No seu secretariado, quando Governador da Bahia, aglutinou as maiores inteligências da Bahia, como o grande educador Anísio Teixeira (Secretário de educação). Aliás, foi nesta época que se projetou a construção do maior e mais revolucionário projeto educacional da História do Brasil: a Escola Parque, concebida por Anísio Teixeira, para uma educação em tempo integral, décadas depois resgatadas em projetos como CIAC e CIEPs.
[2] J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Almedina, 6ª. ed., 2002, p. 1.210.]
[3] Instituições de Direito e Processo Penal, Coimbra: Editora LDA, 1974, p. 295. Tradução para o português de Manuel da Costa Andrade.
[4] Tratado de Derecho Penal, Parte General, I, Buenos Aires: Editora Ediar, 1987, págs. 463 e 464.
[5] Na mesma oportunidade duas outras pérolas surgiram: Enunciado 500: “A configuração do crime do art. 244-B do ECA independe da prova da efetiva corrupção do menor, por se tratar de delito formal.” E se o menor não aceitar a proposta? E o Enunciado 502: “Presentes a materialidade e a autoria, afigura-se típica, em relação ao crime previsto no art. 184, § 2º, do CP, a conduta de expor à venda CDs e DVDs piratas.” Esta sim, uma redundância incorreta!