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Perfil constitucional da aposentadoria especial

30/12/2013 às 11:10
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Delineamos os atuais contornos da aposentadoria especial, verificando a conformação ou não da atual legislação previdenciária ao perfil conferido ao benefício pela Constituição Federal.

1. Introdução

Das espécies de aposentadoria hoje existentes no âmbito do Regime Geral da Previdência Social, a aposentadoria especial é aquela que, nos últimos anos, tem ensejado crescente número de ações e, por conseguinte, inúmeras controvérsias tanto na doutrina como na jurisprudência.

A denominação “especial” sempre deixou evidente seu caráter excepcional, e o status constitucional conferido ao benefício a partir da Constituição de 1988 atestou sua relevância. No entanto, a vagueza da adjetivação e a profusão de diplomas legais que trataram da matéria ao longo do tempo ainda suscitam dúvidas não apenas quanto à sua finalidade, mas também quanto ao seu alcance.

Na doutrina, persiste a dúvida quanto aos objetivos almejados com a existência de um benefício afeto a condições adversas de labor. Na jurisprudência, as discussões hoje existentes decorrem, em parte, do substancial incremento de requerimentos administrativos de concessão de aposentadoria especial, os quais se pode atribuir à extinção da aposentadoria proporcional e, ainda, à não-incidência do fator previdenciário em seu cálculo. Em parte, porém, derivam da própria complexidade da regulamentação das formas de enquadramento de uma atividade como especial ao longo do tempo.

O objetivo deste breve artigo é delinear, a partir da Constituição Federal, os atuais contornos da aposentadoria especial.


2. O status constitucional da aposentadoria especial

A aposentadoria especial é benefício previdenciário de prestação continuada que surgiu com a Lei n.º 3.807, de 28 de agosto de 1960 (LOPS). Na origem, sua conceituação englobava os conceitos trabalhistas de insalubridade, periculosidade e penosidade, permitindo, em síntese, duas hipóteses de concessão: pela categoria profissional e pela submissão a agentes nocivos. Assim, ou o enquadramento de uma atividade como especial se dava conforme a categoria profissional a que pertencia o segurado, quando presumia a lei, de forma absoluta, a sujeição a condições insalubres, penosas ou perigosas, ou o caráter especial do trabalho decorria da efetiva exposição aos agentes nocivos arrolados na legislação, independentemente da atividade ou profissão exercida pelo segurado.[1]

Com a Constituição Federal de 1988, à aposentadoria especial foi conferido status constitucional, primeiro na redação original do art. 202, inc. II, e depois da EC n.º 20/98, no parágrafo primeiro do art. 201, onde atualmente permanece, mas com a redação da EC nº 47/2005, segundo a qual “é vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social, ressalvados os casos de atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física e quando se tratar de segurados portadores de deficiência, nos termos definidos em lei complementar.”

Independentemente do dispositivo no qual previsto, certo é que a Constituição de 1988 sempre fez menção ao benefício como uma aposentadoria específica, excepcional, devida tão-somente ao segurado sujeito a trabalho sob condições especiais, que prejudiquem a saúde ou a integridade física, nos termos de lei complementar, e, enquanto ausente esta – o que se verifica até hoje, aliás –, na forma dos art. 57 e 58 da Lei n.º 8.213/91.

Nessa linha, a aposentadoria especial atualmente se vincula ao trabalho exercido em condições adversas ou, consoante o texto constitucional, ao labor prestado sob condições prejudiciais à saúde ou à integridade física do obreiro. À vista disso, pode-se afirmar que ela objetiva estabelecer a correta proporção entre a perda da capacidade laborativa decorrente do exercício de labor em condições normais com aquela perda da capacidade laborativa havida sob condições ditas “especiais”, ou seja, aquelas que, segundo critérios médico-estatísticos, são tidas como prejudiciais, ainda que potencialmente, à saúde ou à integridade física do trabalhador. Nesses casos, por autorização expressa da Constituição, permite-se a aposentação com base em requisitos diferenciados.


3. A controvérsia quanto à razão de ser da aposentadoria especial

Partindo do atual conceito de aposentadoria especial, pode-se afirmar que há razoável consenso, ao menos na doutrina, quanto à sua classificação como espécie do gênero aposentadoria por tempo de contribuição[2], porque, como tal, sua premissa está assentada no tempo mínimo de contribuição, ainda que, como lembram Fortes e Paulsen, seu fato gerador seja complexo, exigindo, além do tempo de serviço, também a exposição do segurado a agentes nocivos.[3]

Em razão das substanciais alterações de seu conteúdo ao longo do tempo, porém, persiste a controvérsia quanto à sua finalidade.

Parcela considerável da doutrina especializada entende que a aposentadoria especial teria finalidade compensatória. Para Vieira Marcelo, ela serviria de indenização social ao segurado pelos danos sofridos em razão do tempo de serviço prestado em ambientes insalubres, penosos ou perigosos.[4] Nessa mesma linha, Ribeiro, embora a autora associe a compensação ao desgaste resultante do labor havido sob condições adversas[5]; Martins, para quem o benefício tem por objetivo compensar o exercício de trabalho em condições adversas à saúde ou com riscos superiores aos normais[6]; Castro e Lazzari, que conceituam o benefício como reparação financeira ao trabalhador sujeito a condições de trabalho inadequadas[7]; e Leiria, para quem a finalidade do benefício de aposentadoria especial é amparar o trabalhador que laborou em condições nocivas e perigosas à sua saúde.[8]

Por igual, mas com viés crítico, Kertzman entende que o benefício não atende à lógica da Previdência Social, ao argumento de que “ocorre aqui uma verdadeira troca de saúde por dinheiro, em que o trabalhador desgasta a sua saúde e, como forma de recompensa, o Estado e toda a sociedade o ‘premia’ com um benefício até o final da vida”.[9] Idêntico é o pensamento de Donadon, para quem mais eficaz seria a imposição e incentivo à prevenção e melhoria dos ambientes de trabalho.[10]

Há, ainda, quem encontre o fundamento da aposentadoria especial na possibilidade de incapacitação. Segundo Aragonés Vianna, o risco social coberto pelo benefício seria a incapacidade laboral decorrente de atividades que prejudicam a saúde ou a integridade física do segurado.[11] Martinez, a seu turno, aproxima-o da aposentadoria por invalidez, não por exigir incapacitação permanente, mas porque a benesse pressuporia certo perigo de dano ao organismo, seja à saúde, seja à integridade física.[12]

Por outro prisma, alguns autores sustentam que a aposentadoria especial não constitui compensação ou recompensa pelo desgaste, mas medida antecipatória para que o risco a que se submeteu o segurado ao longo da vida laboral não se transforme em efetivo sinistro. O fundamento da aposentadoria especial, portanto, residiria na necessidade de se retirar o trabalhador do ambiente de trabalho nocivo antes de ter a saúde comprometida. Nesse sentido, Tsutiya defende que a aposentadoria especial foi instituída para afastar o segurado das condições de trabalho que podem lhe trazer prejuízo à saúde ou à integridade física.[13] O tempo de contribuição seria diminuído para quinze, vinte ou vinte e cinco anos, a depender da atividade exercida, porque seria o tempo máximo a que o segurado pode ficar exposto sem vivenciar doenças ou, ainda, porque o ser humano submetido a certos esforços físicos ou riscos não tem condições de suportar o mesmo tempo de serviço exigido do trabalhador comum.

Por sua vez, Rocha e Baltazar Jr. entendem que a aposentadoria especial implica redução no tempo de serviço por presumir a lei que o desempenho de algumas atividades profissionais não poderia ser efetivado pelo mesmo período das demais.[14] No mesmo sentido, Berbel sustenta que, suposta a perda substancial da capacidade laborativa a partir de certa idade e de determinado tempo de serviço, independentemente da invalidez, é possível, igualmente, prever que tal condição se implemente diante do trabalho em condições desgastantes em menor tempo de serviço.[15] O argumento, que nos parece correto, vem complementado pela afirmação de Vianna, para quem o tratamento diferenciado residiria no princípio da igualdade, na medida em que o segurado submetido a condições especiais de trabalho não poderia receber da Previdência Social o mesmo tratamento de quem trabalha sob condições normais.[16]


4. O conteúdo da aposentadoria especial à vista de seu perfil constitucional

Partindo da previsão contida no art. 201, §1º, da Constituição, e levando em conta as discussões doutrinárias antes expostas, a aposentadoria especial pode ser tomada  como prestação previdenciária vinculada à perda da capacidade laborativa em ritmo mais acelerado que o normal, considerando esse último como aquele que enseja, em linhas gerais, a aposentadoria por tempo de contribuição ou a aposentadoria por idade.

À vista disso, quer parecer que a restrição do alcance do benefício trazida pela Constituição de 1988 legitima, por si só, a exigência da atual legislação infraconstitucional para sua concessão, ou seja, a comprovação da efetiva sujeição a agentes nocivos que ensejam perda da capacidade laborativa mais rapidamente. Dito de outro modo, o perfil constitucional da aposentadoria especial embasa o fato de que sua concessão hoje se vincula, no plano legal, à ideia de nocividade.

Agentes nocivos, para fins previdenciários, são fatores de risco reconhecidos como tais em razão de estudos médicos sobre seus efeitos deletérios. Quando presentes no ambiente de trabalho, são capazes de trazer danos à saúde ou à integridade física do trabalhador, como exige a Constituição Federal. Assim, é quando comprovada a submissão a agentes nocivos ao longo da vida laboral do segurado que se dá a consequente redução proporcional do tempo total necessário para aposentadoria para quinze, vinte ou vinte e cinco anos de trabalho, a depender do nível de exposição e do desgaste correspondente.

Não há, contudo, consenso quanto ao que ora se afirma.

Ocorre que, a despeito de a noção de condições prejudiciais à saúde ou à integridade física do trabalhador ter sido inserida no ordenamento jurídico brasileiro em 1988, fato é que até o advento da Lei n.º 9.032/95 a legislação previdenciária brasileira seguia prevendo a concessão de aposentadoria especial não apenas quando o trabalhador se submetia a agentes nocivos, mas também em razão de ocupações que, por si só, ensejavam a jubilação precoce. Foi somente quando referida lei promoveu alterações substanciais na Lei n.º 8.213/91, extinguindo o direito de categoria, que a aposentadoria especial passou a ser devida tão-só àquele que efetivamente laborou submetido a agentes químicos, físicos e biológicos potencialmente danosos ao trabalhador.

A partir daí, enfim, passou-se a um único determinante para a classificação da atividade como especial: a submissão a agentes com potencial de ocasionar danos à saúde ou à integridade física do trabalhador. Daí porque, pouco depois, alguns agentes até então previstos como especiais, mas não vinculados à noção de nocividade, tais como frio, umidade e eletricidade, também foram excluídos, pelo Decreto n.º 2.172, de 05.03.1997, das situações que ensejavam aposentadoria especial. É que essas situações, afetas a atividades penosas ou perigosas e, portanto, embasadas na noção de risco potencial, não se enquadram no conceito de prejuízo à saúde ou à integridade física do trabalhador.

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Em realidade, portanto, a aposentadoria especial, da sua criação, em 1960, até 1995, era devida não só àqueles segurados que efetivamente se submetiam a agentes nocivos, mas também quando o trabalhador pertencia a uma determinada categoria profissional contemplada com esse benefício ou, ainda, quando laborava com submissão a agentes vinculados aos conceitos de penosidade e periculosidade. Somente a partir de 1995 é que as sucessivas alterações legislativas quanto à matéria passaram a adotar noção de aposentadoria especial mais consentânea com o texto constitucional, ou seja, um benefício excepcional, destinado ao segurado que efetivamente exerceu suas atividades laborativas em situação especial, o que, nos dizeres da Constituição, é o trabalho havido sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física do trabalhador.


5. Considerações finais

À vista do seu perfil constitucional, pode-se afirmar que hoje a aposentadoria especial pode ser tida como técnica legislativa diferenciada de proteção à saúde e à integridade física do segurado. O benefício, no entanto, não exige efetiva afetação da capacidade laborativa e, por isso, não pode ser tomado como reparação financeira por conta das condições especiais do ambiente de trabalho. Tampouco se prontifica a evitar que a exposição aos agentes nocivos ao longo da vida laboral cause qualquer prejuízo ao segurado, na medida em que o risco é ínsito ao exercício de qualquer trabalho. Quer parecer, pois, que a aposentadoria especial objetiva tão-só estabelecer a proporção entre a perda da capacidade laborativa decorrente do exercício de labor em condições normais com aquele havido sob condições ditas “especiais”, o que exigirá, por consequência, tempo de labor inferior.

Isso não significa, evidentemente, que se tenha como aceitável a exposição do trabalhador a condições agressivas à saúde nos limites de tempo de serviço previstos na legislação previdenciária. Nos termos da Constituição de 1988, é direito do trabalhador tanto o exercício de sua função em ambiente saudável e seguro como a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. Não há dúvida, portanto, que esses são objetivos a serem alcançados mediante adoção de políticas públicas regulamentadas e fiscalizadas pelo Estado. Na seara previdenciária, porém, o desgaste progressivo pelo decurso do tempo é tomado como inerente ao exercício do trabalho, de modo que a aposentadoria especial não pode ser vista como compensação pela prestação de serviço em condições potencialmente adversas, e sim como prestação vinculada à perda da capacidade laborativa em ritmo mais acelerado que o normal.

Nessa linha, quando a legislação previdenciária caminhou no sentido de cingir a concessão da aposentadoria especial às hipóteses em que o segurado tenha laborado em condições que comprovadamente impliquem desgaste superior ao do trabalho comum, o que ocorreu, em última análise, foi sua conformação ao perfil conferido ao benefício pela Constituição Federal.

Por certo, essa nova conformação não atinge situações pretéritas, porque em matéria previdenciária se atenta para a legislação vigente ao tempo do efetivo labor. Ainda assim, o atual perfil constitucional da aposentadoria especial justifica e legitima a exclusão, das hipóteses de sua concessão, das situações que não ensejam erosão cumulativa da saúde ou integridade física do trabalhador.


Notas

[1] LAZZARI, João Batista. Aposentadoria Especial: Estudo Técnico e Apreciação Judicial. Porto Alegre: TRF – 4ª Região, 2007. p. 638.

[2] Assim, p. ex., DUARTE, Marina Vasques. Direito Previdenciário. 5. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007. p. 211, e TAVARES, Marcelo Leonardo. Direito Previdenciário: regime geral de previdência social e regras constitucionais dos regimes próprios de previdência social. 12. ed. Niterói: Impetus, 2010. p. 153.

[3] FORTES, Simone Barbisan e PAULSEN, Leandro. Direito da Seguridade Social: prestações e custeio da previdência, assistência e saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 200.

[4] MARCELO, Fernando Vieira. Aposentadoria Especial. Leme: Mizuno, 2011. p. 32.

[5] RIBEIRO, Maria Helena Carreira Alvim. Aposentadoria Especial. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 237.

[6] MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 373.

[7] CASTRO, Carlos Alberto Pereira de e LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 12. ed. Florianópolis: Conceito, 2010. p. 637.

[8] LEIRIA, Maria Lúcia Luz. Direito previdenciário e estado democrático de direito: uma (re)discussão à luz da hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 164.

[9] KERTZMAN, Ivan. Curso Prático de Direito Previdenciário. 3. ed. Salvador: Jus Podium, 2007. p. 303.

[10] DONADON, João. O benefício de aposentadoria especial aos segurados do regime geral de previdência social que trabalham sujeitos a agentes nocivos: origem, evolução e perspectivas. 2003. 94f. Monografia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003. p. 46.

[11] VIANNA, João Ernesto Aragonés. Curso de Direito Previdenciário. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 516.

[12] MARTINEZ, Wladimir Novaes. Aposentadoria Especial. 5. ed. São Paulo: LTr, 2010. p. 47.

[13] TSUTIYA, Augusto Massayuki. Curso de Direito da Seguridade Social. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 229.

[14] ROCHA, Daniel Machado da e BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 217.

[15] BERBEL, F. L. V. Teoria Geral da Previdência Social. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 203.

[16] VIANNA, João Ernesto Aragonés. Op. cit., p. 515.

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Sobre a autora
Aline Machado Weber

Procuradora Federal. Especialista em Direito Público pela UnB. Especialista em Direito Ambiental pela UFRGS. Especialista em Direito Previdenciário pela PUC-Minas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WEBER, Aline Machado. Perfil constitucional da aposentadoria especial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3834, 30 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26235. Acesso em: 26 abr. 2024.

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