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O Uruguai legaliza a produção e comércio da maconha: podemos fazer o mesmo?

02/01/2014 às 13:14
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Nas poucas vezes em que o assunto chegou a ser discutido com seriedade no Brasil, o debate não foi aprofundado. Foi deixado pra depois, já que “a realidade brasileira é única, diferente”. Será mesmo?

O Uruguai abriu o jogo: “A luta contra o tráfico de drogas está perdida em nível mundial, temos que buscar alternativas", afirmou Mujica, o atual presidente.

José Alberto Mujica Cordano é agricultor, já foi deputado, Ministro da Pecuária, e durante a juventude militou em atividades de Guerrilha. É ateu, doa 90% de seu salário como Presidente da República para ONGs e pessoas carentes, tem um fusca ano 1987 como seu veículo e seu único bem declarado à Receita. Garantiu que, no próximo inverno, caso faltem vagas nos abrigos uruguaios, a residência oficial estará à disposição dos moradores de rua. É dele a iniciativa de apoiar novas alternativas no combate às drogas, assumindo a fragilidade dos métodos de combate atuais. Conseguiu recentemente legalizar oficialmente a maconha.

O parlamento da República do Uruguai aprovou uma lei que atribui ao Estado o monopólio da venda, cultivo, tratamento, exportação e importação dessa droga. A nova lei reforça a agenda progressista de seu governo, que também legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo e o aborto.

Mas o liberalismo uruguaio tem preocupado não apenas os países vizinhos, mas também a ONU, que considera a legalização da maconha no país sul americano uma “atitude de piratas”. O presidente da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (Jife), Raymond Yans sustentou que a aplicação da lei, aprovada pelo Senado uruguaio, viola a Convenção sobre Drogas de 1961, com adesão de 186 Estados, inclusive o Uruguai, e lamentou a falta de diálogo com as autoridades de Montevidéu. “Este é um tipo de visão própria de piratas, de um país que decide não se retirar da Convenção e também não respeitá-la", declarou Yans, presidente do organismo da ONU que vigia o cumprimento das normas internacionais sobre drogas. 

Estima-se que 60% dos uruguaios sejam contra a nova lei, recentemente aprovada. O país, de maioria católica, no entanto, não é um dos mais afetados pela produção, comércio e consumo de drogas, podendo assim decidir em um ambiente com menos pressão que um país onde o problema das drogas e violência a elas relacionada é maior.

Foi criado o Instituto de Regulação e Controle da Maconha (IRCCA), o órgão que controlará toda a cadeia – da produção à venda -  e distribuirá permissões para a venda, consumo pessoal e produção. Serão permitidas 4 formas de acesso à droga: autocultivo (até 6 plantas), compra em locais autorizados pelo Estado, uso medicinal mediante autorização do Ministério da Saúde e produção por clubes onde se poderá cultivar, em grupo, uma quantidade de plantas proporcional ao número de membros. O preço de venda nos estabelecimentos credenciados será em torno de $1 dólar por grama, preço similar ao que é praticado nas ruas, uma medida necessária para, de fato, enfraquecer o comércio ilegal. Inicialmente, a venda não será permitida para estrangeiros, medida que visa desestimular o “turismo da droga”, como ocorre em outros Estados.

O governo do Uruguai calcula que, com a lei, vai poder tirar do narcotráfico um valor aproximado de US$ 35 milhões por ano. De acordo com dados divulgados pelo governo, hoje 25 mil uruguaios usam a substância diariamente e entre 120 mil e 150 mil pessoas a consomem pelo menos uma vez no ano.

Relaciono, a seguir, algumas diferenças entre a realidade brasileira e a uruguaia, já sob as novas regras que entrarão em vigor nos próximos meses. Embora haja uma certa confusão, o consumo no Brasil é totalmente proibido, ainda que em espaço privado. Na prática, há um esforço no sentido de diferenciar o consumidor do traficante, e não impor o mesmo rigor ao primeiro, mas não há a liberação na forma da lei. Já no Uruguai o consumo seguirá as mesmas regras do tabaco, ou seja, será liberado em locais abertos, por exemplo.

Quanto ao plantio, a lei uruguaia autoriza o cultivo de até 40 hectares para a indústria ou pesquisa científica. Em casa, são permitidas até 6 mudas por pessoa. No Brasil, a acusação é de tráfico de drogas, mesmo para quem cultiva em casa para uso próprio. A pena pode chegar a 15 anos de reclusão.

Não se sabe, ainda, se a nova lei uruguaia terá o poder de diminuir o consumo da maconha, nem mesmo de coibir o tráfico ilegal. Há quem diga, inclusive, que a medida trará um grande aumento no consumo.

Nas poucas vezes em que o assunto chegou a ser discutido com seriedade no Brasil, o debate não foi aprofundado. Foi deixado pra depois, já que “a realidade brasileira é única, diferente”. Será mesmo? Estima-se que ¼ das prisões brasileiras tem relação com o tráfico de drogas, um contingente de aproximadamente 200 mil pessoas. O custo por detento em presídios federais chega a R$ 40.000,00 anuais, o triplo do que é gasto com um aluno no ensino superior, por exemplo. Já na comparação entre detentos de presídios estaduais, onde está a maior parte da população carcerária, e alunos do ensino médio (nível de ensino a cargo dos governos estaduais), a distância é ainda maior: o custo do detento é até 9 vezes superior ao do estudante.

O governo brasileiro não admite rever a legislação, mas fica claro que em eventual sucesso da política uruguaia, haverá pressão interna para mudança de nossos controles, o que envolve discutir a liberação da droga com setores mais conservadores e com a bancada religiosa. Mas como o resultado da política uruguaia ainda é incerto, e nossa vontade de discutir o assunto é pequena, vamos deixar isso para depois...

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Sobre o autor
Matheus Lini Segura

Advogado, especialista em Direito Internacional e Econômico pela Universidade Estadual de Londrina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEGURA, Matheus Lini. O Uruguai legaliza a produção e comércio da maconha: podemos fazer o mesmo?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3837, 2 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26312. Acesso em: 19 abr. 2024.

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