Somos pródigos em nos comover com os flagelos alheios e em ignorar a existência dos mesmos males que nos assolam em nosso seio.
Faz pouco mais de um mês que o mundo chorou copiosamente a morte de Nelson Mandela, o Madiba. Em nosso país, os meios de comunicação veicularam, à exaustão, embora merecidamente, a sua aguerrida biografia e a comoção do povo sul-africano. Do mesmo modo, as redes sociais foram inundadas com imagens e manifestações reverenciais, compartilhadas aos milhões, propagando a memória do estadista símbolo de resistência e luta contra a segregação racial.
O seu passamento significou a oportunidade de difundir entre as novas gerações a história de vida do grande líder africano, o qual permaneceu preso ao longo de mais de duas décadas e cuja perseverança alcançou a queda do odioso apartheid, regime legal que separava a população em raças.
O que sempre causou espécie às sociedades, em especial, das nações democráticas, foi a segregação de pessoas com esteio legal, ou seja, distinção e, sobretudo, restrição de direitos conforme a cor da pele, tudo positivado no ordenamento jurídico. O assombro, embora acentuado, era refletido à distância, porquanto vivido pelas comunidades dos estados sulistas norte-americanos e, com maior gravidade, pela ampla maioria negra sul-africana.
Desta feita, para nós brasileiros, na aparência, em pleno século XXI, reveste-se de contornos surrealistas a reserva imperativa, sob o pálio da lei, de assentos na parte dianteira de transportes públicos conforme a raça, bem como segregação em determinados locais mediante a proibição de ingresso.
No entanto, aparente é a ilusão que nos esforçamos a cultivar e que não é capaz de nos distanciar da nossa identidade miscigenada, gerada pelo cruel e sangrento traslado escravocrata (não muito diferente, na essência, do espoliamento e subjugo voraz da nossa outra gênese, a indígena).
Aparências são diuturnamente reproduzidas nos discursos oficiais e assimiladas como uma convenção social, a justificar a razão daquelas infinitas homenagens aclamatórias rendidas ao mártir da igualdade racial nos perfis das redes sociais dos brasileiros. Em que pesem os esforços empreendidos com as ações afirmativas, tais medidas reparadoras são incapazes de apagar da nossa origem a matiz segregacionista racial subjacente.
A bem da verdade, esforçamo-nos para não enxergar o segregacionismo latente de nossa sociedade, evidenciado, por exemplo, nas elevadas taxas de homicídios dos quais são vítimas os jovens negros e pobres (e que deveriam causar não só o maior dos assombros, como, também, uma efetiva mudança de postura estatal), não restando outra alternativa senão o recurso ao exemplos acima citados, talvez capazes de nos causar uma mínima comoção, ainda que por identidade.
Atualmente, existe a reserva de assentos em transportes coletivos, por da Lei Federal n. 10.048/2000, para idosos, gestantes, gestantes, portadores de deficiência e pessoas acompanhadas por crianças de colo. A segregação social, porém, encarrega-se de reservar não só os assentos, como também os poucos, espremidos e disputados centímetros quadrados de assoalho dos transportes públicos de péssima qualidade aos seus verdadeiros usuários.
Embora a geração brasileira de Rosa Parks tenha sido tapeada com a entrega de quase a totalidade dos assentos nos transportes públicos, a verdade é que a segregação se acentuou. Os que se sentavam nos bancos dianteiros não mais se misturam com os demais usuários dos transportes coletivos, porque agora se isolam definitivamente em seus carros de passeio.
E já que falamos em ilusão, oportuna a referência ao símbolo máximo das aspirações sociais, os shoppings centers, os quais recentemente terminaram sendo imaculados pela presença indesejável no seu interior da turba que integra os “rolezinhos”.
Ora, se agora não mais havia o compartilhamento dos transportes coletivos, após a autonomia isolacionista derivada da aquisição dos carros de passeio, por que haveriam de conviver nos corredores cleans dos shoppings centers, onde os sonhos de consumo e realização estão estampados nas vitrines e ao seu alcance. E dentre aqueles sonhos expostos com toda publicidade, certamente não figuram - e tampouco desejam como tal - a convivência diversificada e plural.
A reunião de jovens de classe baixa nos corredores dos templos do consumo, previamente agendada nas redes sociais, não só desagradou, como também causou espécie aos integrantes daqueles habitats naturais. Não pelo ímpeto e vivacidade das algazarras típicas da puberdade, mas sim pela simples presença naqueles locais. Nenhum alvoroço teria causado a lojistas e frequentadores se o “rolezinho” fosse de estudantes de escolas tradicionais bilíngues.
Nenhuma surpresa, portanto, que o restabelecimento da ordem natural das coisas tenha sido obtido não através da força, mas sim, à semelhança daquelas sociedades segregacionistas, através de uma ordem judicial, sob o albergue da lei.
Haverá quem diga, todavia, que a Constituição Federal assegura o direito à reunião de forma clarividente, em seu artigo 5º, XVI: “ todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.
Contudo, de uma simples leitura da decisão liminar proferida pelo Estado-juiz, observa-se um suposto desiderato de se impor limites ao direito de reunião, como forma de salvaguardar o direito à propriedade privada e ao exercício da profissão alheia, adotando uma solução que, ao fim e ao cabo, simplesmente tolheu, em absoluto, o seu próprio exercício, ao proibir manifestações nos limites da parte interior e exterior dos estabelecimentos.
Decerto, não fomos arrebatados por uma comoção grave de repercussão nacional, mas a solução encontrada para obstar o “rolezinho” foi, em pleno tempo de paz, a adoção de medida drástica digna de estado de sítio. Basta ler o art. 139, IV, da Constituição da República, para dissipar qualquer tentativa de atribuição de sensacionalismo a esta afirmação.
O direito à reunião, a toda evidência, não pertence a todos, trata-se de uma ilusão semeada também em outros verbetes como “democracia”, “liberdade”, “igualdade” e no extenso rol dos demais direitos e garantias previstos em um documento solene, outrora proclamado efusivamente por uma Assembleia Constituinte subsequente a duas décadas de regime autoritário.
Afinal, de longa data já lecionava Ferdinand Lassale que “os fatores reais de poder que atuam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal e qual elas são”.
Em outros termos, embora tenhamos um texto constitucional escrito com pretensão democrática, de pouca valia terá essa folha de papel, haja vista que a outorga de direitos fundamentais é meramente diplomática. A concretização de seu conteúdo nunca interessou, porque jamais foi o propósito das forças políticas vigentes.
Isto explica o fato de a nossa Magna Carta proclamar a igualdade perante a lei, embora alguns espaços de convivência e lazer não sejam acessíveis a todos. Do mesmo modo, prosseguimos enaltecendo a história de Madiba, sem prestigiar a sua causa. Curtimos a sua luta, sem compartilhar dos seus ideais.