INTRODUÇÃO
Um dos problemas mais importantes com o qual se defronta o direito processual penal na atualidade é o da duração do processo penal. A duração do processo equivale à duração da neutralização do princípio da presunção de inocência que, como parece evidente, deveria ser breve, de modo que, em menor tempo possível, ou bem se afirme definitivamente o estado de inocência do imputado, pela extinção do processo a seu favor ou bem fique suprimido, também definitivamente, pela declaração firme da necessidade de impor uma condenação ao acusado.
O problema se apresenta sob duas facetas: por um lado, a duração excessiva do processo prejudica a efetividade do direito objetivo, impedindo que a paz jurídica se restabeleça com a sentença, seja ela condenatória ou absolutória; por outro, também o direito fundamental do imputado a ser julgado tão rapidamente quanto seja possível é violado pela excessiva duração do processo.
Este trabalho somente se ocupa do segundo aspecto, ou seja, da análise dogmática de um direito processual subjetivo do imputado, o direito fundamental a ser julgado dentro de um prazo razoável. Não se procura aqui fornecer soluções de política criminal, tendentes a evitar o problema da duração excessiva dos processos penais, embora, como se verá, a interpretação deste direito fundamental defendida no presente trabalho possa eventualmente servir de instrumento para resolver esse problema em casos individuais e melhorar as condições de trabalho da administração da justiça penal em geral.
Na Europa, o direito a ser julgado em prazo razoável encontrou intensa aplicação prática nos tribunais, havendo a jurisprudência, sob a égide do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, já a partir da década de sessenta, lançando as bases para a interpretação hoje prevalecente.
No Brasil, com o advento da Emenda Constitucional nº 45/2005, houve a inclusão do inciso LXXVIII no rol das garantias fundamentais do art. 5º da Constituição da República, o qual consagra, expressamente, esse direito fundamental do imputado em nosso ordenamento jurídico.
Diante de tal inovação, a grande preocupação da comunidade jurídica é obter resposta para os seguintes questionamentos: o que é duração razoável do processo? Quais os critérios para se aferir a razoabilidade do tempo? Quais as consequências jurídicas para o caso de violação desse direito?
A fim de consubstanciar explicações para os questionamentos ventilados, esta monografia pretende trazer à discussão a interpretação dogmática do direito fundamental a ser julgado em prazo razoável.
Para uma necessária ambientação do tema, afigura-se crucial trazer a lume algumas noções introdutórias. Assim, o Capítulo 1 aborda temas como natureza jurídica, conceito, fundamentos e sujeitos implicados na relação jurídica que nasce com esse direito.
Com essas explanações basilares, o Capítulo 2 aborda então a relação entre a duração do processo e os direitos fundamentais. Inicialmente, buscou-se traçar uma breve evolução histórica acerca da afirmação desse direito no plano do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do Direito Comparado. Em seguida, apresentou-se uma análise na perspectiva do direito positivo brasileiro, ressaltando-se a importância de o ordenamento constitucional agora tê-lo consagrado expressamente. Posteriormente, tratou-se do difícil equilíbrio entre a duração razoável do processo e a necessidade de se assegurar um processo penal justo. Por fim, abordou-se a relação entre o direito a ser julgado sem dilações indevidas e as demais garantias processuais penais.
No Capítulo 3, examinaram-se as doutrinas que divergem quanto aos critérios para se aferir a razoabilidade do tempo de duração do processo. Neste ponto, discorreu-se sobre a chamada doutrina do prazo fixo, que abriga aqueles que defendem a necessidade de o legislador estabelecer prazos fixos para a duração do processo. Mencionou-se também a chamada doutrina do não-prazo, que congrega aqueles que se colocam contra a fixação de prazos para aferição da razoabilidade do tempo, admitindo, porém, critérios objetivos para se aquilatar essa razoabilidade, como, por exemplo, a complexidade da causa, a conduta dos litigantes, a atuação das autoridades, dentre outros.
O Capítulo 4, por sua vez, trata da íntima relação entre duração razoável do processo e prisão provisória. De início, objetivou-se identificar pontos de contato e pontos de afastamento entre duração razoável do processo e prazo de prisão provisória. Depois, as preocupações da pesquisa voltaram-se para os prazos de prisão cautelar no sistema processual brasileiro.
Por fim, no Capitulo 5, cuidou-se da tutela do direito de ser julgado em prazo razoável, fazendo-se uma análise acerca das principais consequências jurídicas para o caso de violação desse direito fundamental do imputado, quando então se estudou as soluções compensatórias, processuais e sancionatórias.
Partindo da importante experiência oferecida pelo direito comparado, procurou-se alinhavar alguns caminhos e diretrizes para a efetivação, entre nós, deste recente, porém importante direito fundamental.
Acredita-se que alguns pontos aqui traçados serão importantes para auxiliar a aplicação desse direito na vida e na prática dos tribunais pátrios e que algumas ideias ao menos poderão alertar aqueles que ainda não refletiram sobre o tema, provocando o debate.
1. O DIREITO AO PROCESSO SEM DILAÇÕES INDEVIDAS: Noções Introdutórias.
1.1. Natureza jurídica
Definir a natureza jurídica de um instituto é procurar enquadrá-lo em alguma categoria da Teoria Geral do Direito. Não é mero capricho do jurista, ao contrário, é um saber indispensável para o bom manejo de qualquer instituto, pois sabendo a sua natureza jurídica, saberemos quais regras e princípios que o regem, dando, assim, tratamento mais científico à questão.
O Professor José Cretella Júnior faz um importante paralelo entre a natureza dos objetos e a natureza jurídica dos institutos. Afirma Cretella Júnior (1966, p.13):
Se cabe à filosofia indagar da natureza jurídica dos objetos (naturais, ideias, culturais, metafísicos), cumpre à filosofia do direito, com os elementos fornecidos pelos ramos particulares do direito, fixar a natureza jurídica dos institutos jurídicos (são atos? Contratos, pessoas de direito público ou privado? Ilícitos penais ou administrativo? Processo penais? Processos políticos?).
O direito a um processo com duração razoável, tal como concebido em várias constituições e instrumentos normativos internacionais, certamente está inserido na categoria dos chamados direitos fundamentais, pois o seu conteúdo está impregnado pela ideia de valorização da dignidade da pessoa humana.
Delmanto Junior (1998, p.18), referindo-se aos direitos fundamentais, afirma que são “direitos que se impõem perante o Estado, sendo muitos deles, inclusive, anteriores à sua própria criação, ou seja, supra-estatais, como ensina Pontes de Miranda.”
Ainda segundo Delmanto Junior (1998, p.19, grifo do autor), esses direitos podem ser divididos em duas classes: “direitos fundamentais assegurados e direitos fundamentais garantidos pela Magna Carta. Os primeiros advém de normas concernentes à liberdade, à igualdade, e à democracia; os segundos se originam da garantia de instituições jurídicas como a família, o casamento, a propriedade, ou, ainda, de órgãos estatais, ou paraestatais.”
E conclui afirmando que “o direito à vida, à liberdade e ao reconhecimento da dignidade da pessoa humana, por exemplo, são direitos fundamentais assegurados pela Constituição.” (DELMANTO JUNIOR, 1998, p.19).
Assim, com base nesses ensinamentos, pode-se dizer que o direito de ser julgado em um prazo razoável, por manter íntima conexão com o princípio da dignidade da pessoa humana, inclui-se na classe dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição.
André Luiz Nicolitt (2006, p. 38), na esteira de José Ramon Cosso Diaz, afirma que o direito ao processo em tempo razoável “tem cariz prestacional, pois o Estado tem o dever de possibilitar a todos os jurisdicionados um processo sem dilações indevidas.”
Por outro lado, tem-se que esse direito também tem natureza reacional “na medida em que permite ao lesado, no âmbito do processo em que ocorrem dilações indevidas, exigir a imediata conclusão do processo”, conforme já decidiu o Tribunal Constitucional da Espanha no julgamento 34/1994 (NICOLITT, 2006, p.39).
Em nosso ordenamento jurídico, a duração razoável do processo está inserida no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal, que traça o rol de direitos e garantias fundamentais. Trata-se, dessa forma, de verdadeiro direito público subjetivo, autônomo e de índole constitucional.
1.2. Conceito
Maria Helena Diniz (2002a, p. 346), baseando-se nos ensinamentos de Alexandre Caballero, afirma que é um fenômeno normal o da evolução dos conceitos. Segundo ela, quanto mais manuseada uma ideia, mais fica revestida de minuciosos acréscimos e, em razão da interferência das mais diversas teorias sobre o conceito, em lugar de esclarecer, complica frequentemente as ideias, pois o que antes era um conceito unívoco, converte-se em análogo e até mesmo em equívoco.
Compreende-se que assim seja, pois o conceito nada mais é do que um recorte da realidade, uma tentativa de reduzir a complexidade de uma realidade que é dinâmica, e o conceito a supõe estática. Assim, à medida que esse conceito vai sendo reformulado e revisitado, é natural que ele acompanhe a evolução dos processos sociais que lhe são subjacentes.
É nesse contexto que se pretende formular um conceito para o direito a um processo com duração razoável, não como algo pronto e acabado, mas como algo em construção, sempre aberto a novos acréscimos e adaptações.
Conceituar algo é procurar descobrir a sua essência; é ingressar na sua intimidade, desvendando os elementos que o compõem e revelando seus aspectos inteligíveis ou suas notas. (DINIZ, 2002a, p. 346).
Telles Jr. (1962, p.324) ensina que “um dos caminhos para a descoberta da essência das coisas é o que leva à intimidade das palavras que as simbolizam”. Nessa ordem de ideias, razão assiste a Maria Helena Diniz (2000b, p. 24) quando afirma que “Os conceitos refletem, no nosso entender a essência da coisa, e as palavras são veículos dos conceitos. Isto supõe a relação entre significados das expressões linguísticas e a realidade.”
Seguindo ainda os ensinamentos de Diniz (2000b, p. 24), “A operação de se revelar o que um objeto é, por meio da enunciação de seus aspectos inteligíveis, chama-se operação de definir; seu produto é a definição.”
Dessa forma, considerando o objeto que o trabalho se propõe a definir, verifica-se, em uma primeira análise, que se está diante de um direito ao qual corresponde um dever jurídico do Estado, consistente em prestar jurisdição em tempo razoável.
Sobre esse tema, José Gimeno Sendra, citado por André Luiz Nicolitt (2006, p. 22), escreveu:
En una primera aproximación el derecho a un proceso sin dilaciones indebidas puede concebirse como un derecho subjetivo constitucional, de caráter autônomo, aunque instrumental del derecho a la tutela, que asiste a todos los sujetos del Derecho Privado, que hayan sido parte en un procedimiento judicial que se dirige frente a los órganos del Poder Judicial, aun cuando em su ejercicio han de estar comprometidos todos los demás poderes del Estado, creando en él la obligación de satisfacer dentro de un plazo razonable las pretensiones y resistências de las partes o de realizar sin demora la ejecución de las sentencias.
Antes de adentrar no conceito que se pretende formular, é importante fazer aqui algumas considerações a respeito da abrangência do direito em questão.
Com efeito, embora a definição acima transcrita somente se refira ao processo jurisdicional, cremos que a duração razoável do processo não se restringe apenas ao âmbito judicial, devendo também abranger os procedimentos de natureza administrativa.
José Rogério Cruz e Tucci (1997, p. 76, grifo do autor), estribado em Gimeno Sendra e referindo-se ao dispositivo da Constituição espanhola que consagra esse direito fundamental (art.24.2), esclarece que “o termo processo, desse dispositivo constitucional, deve ser entendido como sinônimo de procedimento judicial, e, portanto, as dilações indevidas devem ser afastadas de qualquer gênero de procedimento de natureza penal ou civil, incluídos aqueles de jurisdição voluntária.”
O problema não se coloca em face do ordenamento jurídico brasileiro. O legislador constituinte derivado quis dar uma maior abrangência à referida garantia, e, no dispositivo que a consagra, faz expressa referencia ao âmbito “judicial e administrativo”. É o que se verifica no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal, não havendo dúvidas, portanto, de que esse direito também se estende aos procedimentos administrativos.
Feitas estas considerações, cumpre advertir, desde logo, que o direito a um processo com duração razoável não se confunde com o mero descumprimento de prazos processuais, havendo que se verificar se no caso concreto o processo se desenvolveu em condições de anormalidade.
O Tribunal Constitucional Espanhol, em várias decisões, tem adotado esse entendimento, conforme podemos notar do STC 43/1985, em que se afirma:
cualquiera que sea la tesis que se mantega en punto al... derecho a un proceso sin dilaciones indebidas y hay que entender por tal el proceso que se desenvouelve en condiciones de normalidad dentro del tiempo requerido y en el que los intereses litigiosos pueden recibir pronta satisfacción. ( NICOLITT, 2006, p. 22-23).
Em outro julgado (STC 133/1988), a referida Corte Constitucional, além de reafirmar esse posicionamento, agrega novos elementos ao referido conceito:
El mero incumplimiento de los plazos procesales no es constitutivo por sí mismo de violación de este derecho fundamental, pues el artículo 24.2 de la Constituición no ha constitucionalizado el derecho al respeto de esos plazos (STC5.1985) por lo que no toda dilación o retraso en el proceso puede identificarse con tal violación constitucional, sino que las dilaciones indebidas han sido entendidas por este Tribunal como un supuesto extremo de funcionamiento anormal de la Administración de Justicia. La razonabilidad de la duración del proceso debe tener em cuenta la especificidade del caso concreto y ponerse en relación con la correspondiente decisión del órgano jurisdiccional respecto a la cual se predica el excesivo retraso constitutito de una dilación indebida. (NICOLITT,2006, p. 23).
Convém mencionar que tanto os Tribunais Constitucionais dos países Europeus quanto o Tribunal Europeu de Direitos Humanos adotaram o entendimento de que o mero descumprimento de prazos processuais por si só não constitui violação à garantia fundamental do processo em tempo razoável. (NICOLITT, 2006, p. 23).
Outro aspecto que deve ser ressaltado em relação à duração razoável do processo é que se trata de um conceito que integra o rol dos chamados conceitos indeterminados e somente diante de um caso concreto é que se poderá determinar o conteúdo desse direito.
Sobre esse ponto, Cruz e Tucci (1997, p. 76) assevera:
É certo também que a “razoabilidade” em tela carece de limites precisos. Trata-se – como entende Plácido Fernandez –Viagas Bartolome – de uma noção de índole valorativa, portanto, notoriamente imprecisa, que depende das circunstancias do caso. ‘Ese es precisamente su sentido, desde luego, pero para su adecuada utilización sería necesario el establecimiento previo de un marco o contexto que impida la total discrecionalidad en la materia y, en consecuencia, la inseguridad...’.
O Tribunal Constitucional da Espanha, em famoso Julgamento realizado em 1985, após afirmar que a constituição espanhola não constitucionalizou o direito de prazos, mas sim um direito fundamental de toda pessoa a que sua causa seja resolvida dentro de um tempo razoável, assinalou que: “Este conceito (o do processo sem dilações indevidas, ou em tempo razoável) é indeterminado ou aberto, que deve ser dotado de um conteúdo em cada caso, atendendo a critérios objetivos congruentes com seu enunciado genérico, como já ficou deliberado na precedente sentença de 14 de março de 1984” (CRUZ E TUCCI, 1997, p. 76).
Trata-se, portanto, de um direito subjetivo Constitucional, autônomo, que assiste a toda pessoa que seja parte em um procedimento, judicial ou administrativo, que não se confunde com o mero descumprimento de prazo, cujo conteúdo somente se verifica diante de um caso concreto, e ao qual corresponde o dever jurídico do Estado de prestação jurisdicional sem dilações indevidas.
1.3. Fundamentos
Segundos Lopes Jr. (2005.p. 99), os principais fundamentos de uma célere tramitação do processo, sem atropelo de garantias fundamentais, são: o respeito à dignidade do acusado, o interesse probatório, o interesse coletivo e a confiança na capacidade da justiça.
Em relação ao primeiro aspecto, é importante anotar que o direito a um processo com duração razoável, como direito fundamental que é, tem por base, realmente, o respeito à dignidade da pessoa humana.
Roberto Delmanto Junior (1998, p. 50), acolhendo ensinamento de Luís Recaséns Siches, assevera que “foi o Cristianismo, com base no Antigo Testamento, onde se lê que o ‘homem foi criado à imagem e semelhança de Deus’, que a ideia da dignidade da pessoa humana adquiriu maior relevo, convertendo-se em ‘postulado básico da cultura ocidental’.”
Esse mesmo autor (1998, p. 49), após relacionar garantias fundamentais consagradas em vários instrumentos normativos, dentre as quais a de ser julgado em um prazo razoável, ressalta que
todos esses direitos fundamentais, que impõe limites ao Estado, têm como um dos principais fundamentos o próprio direito ao reconhecimento da dignidade da pessoa humana, o qual, como observa Pontes de Miranda, ‘se operou por lentas e dolorosas conquistas na história da humanidade’, resultante de avanços da sociedade em três dimensões : democracia, liberdade, e igualdade.
Nesse sentido, razão assiste a Lopes Jr.(2005, p. 99) quando pondera que “considerando os altíssimos custos (econômico, físicos, psíquicos, familiares e sociais) gerados pela estigmatização Jurídicas e social, bem como todo o conjunto de penas processuais (medidas cautelares reais, pessoais, etc.), que incidem sobre o acusado, o processo penal deve desenvolver-se sem dilações indevidas [...]”, porquanto admitir que o processo se prolongue demasiadamente significa ausência de respeito à dignidade do acusado.
O respeito à dignidade do imputado se afigura como o principal fundamento do direito ao processo com duração razoável, porquanto todos os demais aspectos indicados servem unicamente à otimização dos fins sociais e acusatórios do processo, e não propriamente aos interesses do acusado, enquanto titular de um direito subjetivo processual.
Em relação ao interesse probatório, Lopes Jr. (2005, p. 99) observa que:
[...] é inegável que o tempo que passa é a prova que se esvai, na medida em que os vestígios materiais e a própria memoria em torno do crime, enquanto acontecimento histórico, perdem sua eficácia com o passar do tempo. A atividade probatória como um todo se vê prejudicada pelo tempo, pois trata-se de juntar os resquícios do passado que estão no presente (na verdade, um presente do passado, que é memória), e que tendem naturalmente a desaparecer quando o presente do presente (intuição indireta) passa à presente do futuro.
De fato, com o passar do tempo, os indícios e os elementos de prova que demonstram a autoria e a materialidade do crime se debilitam, indicando que a excessiva demora do processo “conspira contra o vigor probatório” (CRUZ E TUCCI, 1997, p. 58). Aliás, essa preocupação com a celeridade já se faz presente desde a investigação criminal, pois nessa fase há uma necessidade inafastável de preservação da prova, evitando-se, assim, que a cena do crime sofra profundas alterações.
Por outro lado, não se pode negar que há um interesse coletivo na prestação jurisdicional tempestiva, sobretudo quando se tem em conta o “correto funcionamento das instituições, inerente à própria estrutura do Estado Democrático de Direito” (LOPES JR., 2005, p. 99).
Segundo Cruz e Tucci (1997, p.122), há “uma preocupação generalizada e universal com a constante falta de resultado do processo judicial, fator esse que propicia uma verdadeira crise de legitimidade e que, por isso, culmina repercutindo na esfera dos direito fundamentais”.
De outra face, é incontestável, também, que a confiança na capacidade da Justiça, de resolver os assuntos que lhe são submetidos, é fator que fundamenta a prestação jurisdicional célere. Com efeito, na esteira do pensamento de Cruz e Tucci (1997, p.64), “o pronunciamento judicial que cumpre com sua nobre missão de compor uma controvérsia intersubjetiva ou um conflito de alta relevância social (na esfera penal) no momento oportuno proporciona às partes, aos interessados e aos operadores do direito grande satisfação”.
Segundo esse mesmo autor (1997, p. 64-65), “Mesmo aquele que sai derrotado não deve lamentar-se da pronta resposta do Judiciário, uma vez, sob o prisma psicológico, o possível e natural inconformismo é, sem dúvida, mais tênue quando a luta processual não se prolonga durante muito tempo.”
Em conclusão, pode se afirmar que o direito a um processo sem dilações indevidas funda-se, principalmente, na necessidade de resguardar a dignidade do imputado, esteja ele preso ou solto. Contudo, não se pode olvidar dos fins sociais e acusatórios do processo penal, que também fundamentam a existência desse direito, embora em um plano secundário.
1.4. Titulares e obrigados
1.4.1 Titulares
De acordo com Cruz e Tucci (1997, p. 79), a Suprema Corte do Canadá, no julgamento do caso CIP Inc., debateu interessante questão sobre a abrangência subjetiva da garantia em tela. Discutiu-se então se a regra do art.11, b, da Carta Canadense, que consagra o direito a um processo com duração razoável, também se estendia às pessoas jurídicas.
Segundo Cruz e Tucci (1997, p. 79), referido Tribunal, respondendo afirmativamente, asseverou que
a expressão tout inculpé (toda pessoa demandada) compreende as pessoas morais, de sorte que estas podem se prevalecer da proteção do art.11, b, da Carta. A recorrente tem legitimo interesse em que sua pretensão seja julgada dentro de um prazo razoável. O direito a um processo equânime é fundamental em nosso sistema contraditório e inclusive consagrado na Constituição. Esta proteção deve incluir todos os litigantes. O interesse social que também fica protegido pelo art.11, b, estende-se às pessoas morais quando estiverem demandando. Qualquer outra conclusão significa que o sistema apresentaria menor preocupação quando a pessoa jurídica fosse parte em um processo judicial, e que, ainda, a qualidade de um litigante seria determinante para ter ou não um tratamento ‘equânime’.
André Luiz Nicolitt (2006, p. 59), ancorando no conceito de José Vicente Gimeno Sendra acima transcrito, destaca que
A capacidade para ser titular do direito à duração razoável do processo, na doutrina espanhola é tão-somente em relação às pessoas de direito privado, sejam elas físicas ou jurídicas. Nesta perspectiva, não podem os órgãos da Administração Pública que acabam em última análise sendo obrigados em relação ao direito, se investirem na qualidade de titulares.
Todavia, ousa-se discordar do posicionamento adotado pela doutrina espanhola, pois não há justificativa plausível para se excluir as pessoas jurídicas de direito público, ou mesmo órgãos públicos, da titularidade desse direito. Com efeito, não se concebe que a titularidade de um direito fundamental, que se constituiu numa verdadeira garantia processual, seja definida apenas pela qualidade do litigante. Entender de forma contrária, seria admitir que no processo alguns litigantes tem direito a uma tutela jurídica tempestiva enquanto outros estão relegados à espera interminável para a solução de sua demanda. Tal entendimento, de certo, conspira contra o princípio constitucional da isonomia, sem considerar que vai de encontro à natureza universalizastes dos direitos fundamentais.
Além disso, não se pode olvidar que o direito à duração razoável do processo é um direito correlato e inerente ao próprio devido processo legal. Dessa forma, todos, sem distinção, no âmbito processual, têm direito ao devido processo.
Ademais, a forma como foi consagrado esse direito fundamental no ordenamento jurídico é incompatível com a adoção dessa posição, pois a referência a “todos” constante do art. 5º, LXXXVIII, da Constituição Federal, não admite uma interpretação restritiva como a aludida.
Nessa perspectiva, vislumbra-se a possibilidade de o Ministério Público, como defensor da ordem publica e dos interesses sociais e individuais, exigir em juízo o cumprimento ou a restauração desse direito.
Contudo, como adverte Nicolitt (2006, p. 61) “nem todos, evidentemente, poderão pretender a totalidade dos aspectos que podem advir do direito à duração razoável do processo do processo”. Nada obstante, “o direito a exigir o restabelecimento normal da atividade jurisdicional, em nosso sentir, não está excluído de quem quer que esteja como parte na relação processual seja pessoal jurídica ou pessoa física, de direito, de direito privado. O mesmo não ocorre em relação a eventual direito à indenização” (NICOLITT, 2006, p. 62).
1.4.2. Obrigados
Questão importante a ser definida na análise desse direito é saber quem é o titular do dever de garantir um processo sem dilações indevidas. Analisando o conceito fornecido por Sendra, já referindo e transcrito neste trabalho, depreende-se que os destinatários imediatos são os órgãos do Poder Judiciário. Todavia, em razão do conceito abrangente de duração razoável aqui adotado, abarcando inclusive os processos no âmbito administrativo, vislumbramos a possibilidade desse dever também ser estendido a outros órgãos do Poder Público.
Sobre essa questão, Plácido Fernandez-Viagas Bartolome, citado por André Luiz Nicolitt (2006, p. 62), acentua que:
Em linha de princípio, um problema de paralisação ou dilação indevida no processo pode resultar tanto da deficiente direção das autoridades judiciais, como da carência de meios ou adequada organização da justiça. Nesse último caso, portanto, a responsabilidade se redirecionaria do judiciário ao executivo e inclusive legislativo que não foi capaz de adotar medidas legais necessárias para superar a crise.
De fato, embora a atividade jurisdicional seja atribuída preponderantemente ao Poder Judiciário, não há como negar que os outros Poderes também devem contribuir para a efetivação desse direito, até porque, como se sabe, a separação é apenas das funções do Estado, sendo os Poderes da Republica harmônicos e interdependentes.
Desse modo, tem razão André Luiz Nicolitt (2006, p. 62-63) ao afirmar que
[...] o Judiciário depende da boa qualidade das leis, notadamente as de cunho processual, para o bom desempenho de suas atribuições. Um bom regramento permite, sem dúvida, melhor funcionamento da atividade jurisdicional. Por outro lado, o comportamento do executivo, seja no agir com os outros, seja em sua relação com o Poder Judiciário, pode influenciar sobremaneira na boa qualidade da Justiça.
Em conclusão, seja pela conduta deficiente do processo pela autoridade judicial, seja pelo problema estrutural da administração da justiça, seja ainda pela má qualidade da legislação que inviabiliza a celeridade processual, a responsabilidade será sempre do Estado e este está obrigado por todos os seus órgãos a garantir a duração razoável do processo. (NICOLITT,2006, p.63).