O contrato administrativo é a base para o funcionamento da máquina pública. Ao avistarmos um edifício público podemos vislumbrar, de plano, uma série de contratos administrativos em curso, tais como: o contrato de locação do imóvel sede da repartição; o contrato de recepcionistas; o contrato de vigilância patrimonial; o contrato de manutenção de elevadores; o contrato de manutenção de ar condicionado; e por aí seguimos adiante.
Observe-se a importância do contrato administrativo para o perfeito funcionamento da máquina pública e o consequente cumprimento da missão institucional do órgão em questão.
Para tanto, necessário se torna que a contratação pública seja devidamente planejada (para evitar a interrupção do serviço); que haja uma boa qualidade do Termo de Referência ou do Projeto Básico (onde se especificará aquilo que se espera do futuro contratado); que haja adequação do edital de licitação aos ditames legais e jurisprudenciais (a fim de se evitar eventuais impugnações que possam retardar o certame); e por fim que haja uma eficiente fiscalização do contrato, com o objetivo de evitar a má execução do serviço pelo contratado.
Em síntese, são estas as etapas para o que se convenciona chamar de uma “boa contratação pública”, visto que o perfeito cumprimento de todas estas etapas minimizará o risco da solução de continuidade dos serviços e da escolha de proposta não vantajosa para a Administração.
Contudo, situações existem no mundo real que surpreendem o gestor público, como uma calamidade pública ou, ainda, a interrupção abrupta e inesperada da prestação do serviço contratado pela Administração, a despeito do fiel cumprimento de todas as etapas acima descritas. Tais situações demandam uma ação rápida e eficaz por parte da Administração.
Neste ponto a Lei nº 8.666/93 traz dispositivo que permite ao gestor a contratação direta de bens e serviços sem a necessidade de prévio procedimento licitatório. Assim reza o seu artigo 24, inciso IV:
Art. 24. É dispensável a licitação:
(...)
IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;
Como se nota, a contratação emergencial é uma das hipóteses de dispensa de licitação taxativamente prevista no corpo da lei de licitações. O dispositivo começa com os vocábulos “emergência” e ”calamidade pública”.
Emergência aqui se entende como aquela situação decorrente de fatos imprevisíveis que exigem imediata providência sob pena de potenciais prejuízos para o cidadão (ex: falta de medicamentos na rede pública), para o patrimônio público (ex: desabamento de muro em escola pública) ou para interesses e valores protegidos pelo Direito (ex: ausência de contrato de limpeza em órgão público, que feriria o direito ao saudável ambiente de trabalho).
Já a calamidade pública seriam fatos provocados por desastres naturais que causam grandes prejuízos à região afetada (ex: inundações, secas, epidemias, etc).
Para fins de dispensa de licitação o importante é que a necessidade de contratação não possa aguardar os trâmites ordinários do procedimento licitatório. Ou seja, justifica-se a contratação direta (exceção) em razão da necessidade de resposta imediata por parte da Administração, que não pode aguardar o prazo ordinário da instrução processual do procedimento licitatório.
Segue o dispositivo legal informando que esta contratação é “somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade”.
Aqui se percebe o caráter provisório da contratação emergencial. Esta deve ocorre apenas para evitar o perecimento do interesse jurídico protegido e conceder prazo à Administração para concluir um regular procedimento licitatório.
Somente podem ser objeto da contratação emergencial os bens ou serviços necessários para atender a situação de emergência ou de calamidade. Podemos dar o exemplo da queda do muro de uma repartição pública. Neste caso, somente poderá ser contratada a reforma ou o escoramento, se for o caso, do muro, não podendo o gestor aproveitar o procedimento para contratar diretamente a reforma estrutural de toda a repartição.
Aspecto importante diz respeito ao prazo de conclusão das obras ou serviços a serem contratados. A lei fixa que as parcelas de obras e serviços devem ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da data da ocorrência da emergência ou calamidade. Importante a parte final deste dispositivo, pois não pode o gestor contar o prazo de conclusão da obra ou serviço da data da contratação, mas sim da data do fato que gerou a situação emergencial ou calamitosa.
Outra restrição constante do texto da norma guarda relação com a vedação à prorrogação do contrato firmado.
O fundamento da proibição de prorrogação contratual é o pressuposto de que o prazo de 180 (cento e oitenta) dias é suficiente para ultimar o procedimento licitatório que irá possibilitar a assinatura do contrato para substituir o contrato emergencial.
Alguns doutrinadores admitem a celebração de novo contrato emergencial (e não a prorrogação do anteriormente firmado), caso presentes os pressupostos do contrato emergencial original e desde que sejam cumpridas todas as formalidades exigidas (caracterização da situação emergencial; justificativa de preço e fornecedor; parecer jurídico, disponibilidade orçamentária, publicação no DOU, etc).
A Lei nº 8.666/93 traz ainda alguns requisitos para a celebração do contrato emergencial. Tais requisitos são os constantes no parágrafo único do art. 26, que também se aplicam nos casos de inexigibilidade de licitação:
Art. 26. As dispensas previstas nos §§ 2o e 4o do art. 17 e no inciso III e seguintes do art. 24, as situações de inexigibilidade referidas no art. 25, necessariamente justificadas, e o retardamento previsto no final do parágrafo único do art. 8o desta Lei deverão ser comunicados, dentro de 3 (três) dias, à autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de 5 (cinco) dias, como condição para a eficácia dos atos. (Redação dada pela Lei nº 11.107, de 2005)
Parágrafo único. O processo de dispensa, de inexigibilidade ou de retardamento, previsto neste artigo, será instruído, no que couber, com os seguintes elementos:
I - caracterização da situação emergencial ou calamitosa que justifique a dispensa, quando for o caso;
II - razão da escolha do fornecedor ou executante;
III - justificativa do preço; (grifo nosso)
Ponto relevante diz respeito à caracterização da situação emergencial ou calamitosa. No mais das vezes, a Administração instrui o procedimento de dispensa para contratação emergencial sem caracterizar a situação de emergência. Por vezes a situação de emergência ou de calamidade é tão óbvia que o gestor olvida-se de caracterizá-la nos autos do processo de contratação.
Deve, ainda, a Administração justificar o preço a ser pago e também as razões que levaram a escolha de um determinado fornecedor em detrimento de outro.
Para ilustrar, elaboramos abaixo uma lista de verificação para ser utilizada no caso da contratação emergencial:
Documentação e informações para instrução do processo:
- Requisição do setor interessado;
- Indicação dos recursos orçamentários;
- Projeto Básico ou Termo de Referência;
- Justificativa da contratação direta, com a caracterização da situação emergencial ou calamitosa e dos prejuízos;
- Análise das propostas;
- Justificativa da escolha do fornecedor e do preço;
- Minuta contratual;
- Documentos de Habilitação;
- Encaminhamento para o órgão jurídico para emissão de Parecer;
- Publicação da ratificação da contração direta;
- Celebração do contrato.
Chamamos a atenção para o disposto no parágrafo único do art. 38 da Lei nº 8.666/93, in verbis:
Art. 38. O procedimento da licitação será iniciado com a abertura de processo administrativo, devidamente autuado, protocolado e numerado, contendo a autorização respectiva, a indicação sucinta de seu objeto e do recurso próprio para a despesa, e ao qual serão juntados oportunamente:
(...)
Parágrafo único. As minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica da Administração. (grifo nosso)
Tal dispositivo representa importante papel desempenhado pela Advocacia Pública no controle da legalidade dos atos praticados pela Administração nos processos de contratação, devendo, necessariamente, ser a minuta do contrato emergencial submetido a exame e aprovação por parte do órgão jurídico.
Perscrutando a jurisprudência do Tribunal de Contas da União – TCU releva destacar a conhecida Decisão nº 347/94, Plenário, tendo como Relator o ex-Ministro Carlos Átila Álvares da Silva. Citada decisão, apesar de proferida em 1994, mantém-se como referência no que diz respeito ao tema da contratação emergencial:
O Tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo Relator, DECIDE:
(...)
2 responder ao ilustre Consulente, quanto à caracterização dos casos de emergência ou de calamidade pública, em tese:
a) que, além da adoção das formalidades previstas no art. 26 e seu parágrafo único da Lei nº 8.666/93, são pressupostos da aplicação do caso de dispensa preconizado no art. 24, inciso IV, da mesma Lei:
a.1) que a situação adversa, dada como de emergência ou de calamidade pública, não se tenha originado, total ou parcialmente, da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos disponíveis, ou seja, que ela não possa, em alguma medida, ser atribuída à culpa ou dolo do agente público que tinha o dever de agir para prevenir a ocorrência de tal situação;
a.2) que exista urgência concreta e efetiva do atendimento a situação decorrente do estado emergencial ou calamitoso, visando afastar risco de danos a bens ou à saúde ou à vida de pessoas;
a.3) que o risco, além de concreto e efetivamente provável, se mostre iminente e especialmente gravoso;
a.4) que a imediata efetivação, por meio de contratação com terceiro, de determinadas obras, serviços ou compras, segundo as especificações e quantitativos tecnicamente apurados, seja o meio adequado, efetivo e eficiente de afastar o risco iminente detectado;
(...)
(Decisão 347/1994 – Plenário, Ministro Relator CARLOS ÁTILA ÁLVARES DA SILVA, Sessão 01/06/1994, Dou 21/06/1994)”
A alínea “a.1” da Decisão nº 347/94 traz o que a doutrina chama de “proibição da emergência fabricada”. Aqui o intuito foi o de coibir aquelas situações em que o gestor, por desídia administrativa ou má gestão dos recursos, provoca, deliberadamente ou não, a situação fática que dá origem à contratação emergencial.
Todavia, ocorreu que este entendimento passou a levar à seguinte situação: o gestor desidioso deixava de realizar ou prorrogar uma contratação necessária, forçando a necessidade de uma contratação emergencial, face à impossibilidade de aguardar os trâmites necessários para finalizar o procedimento licitatório, e a Administração ou a sociedade restava sem a satisfação de determinada necessidade em razão da proibição de celebração do contrato emergencial em razão do Acórdão nº 347/94.
No entanto, a jurisprudência do TCU evoluiu no sentido de, mesmo nos casos de desídia ou má gestão de recursos, autorizar a contratação emergencial, se presentes seus pressupostos, e ato contínuo apurar a responsabilidade do agente público desidioso. Segue jurisprudência sobre o tema:
“13. No entanto, a jurisprudência desta Corte de Contas evoluiu, mediante Acórdão n. 46/2002 - Plenário, no sentido de que também seria possível a contratação direta quando a situação de emergência decorresse da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos públicos, devendo-se analisar, para fins de responsabilização, a conduta do agente público que não adotou tempestivamente as providências cabíveis.
(AC-3521-23/10-2 Sessão: 06/07/10 Relator: Ministro BENJAMIN ZYMLER)”
“1. Deve ser responsabilizado o gestor pela contratação emergencial indevida quando a situação adversa decorreu de sua omissão ou falta de planejamento. Acórdão 627/2009”
A alínea “a.2”[1]da Decisão nº 347/94 exige que não basta apenas a caracterização de uma urgência profilática e longínqua, em que o risco de dano à segurança de pessoas, serviços ou bens não esteja na iminência de acontecer, mas sim que a urgência deve revestir-se de concretude e atualidade.
Deve o dano que possa advir da não contratação ter significância, ser onero e “especialmente gravoso”, de modo a causar um sacrifício ou prejuízo relevante ao interesse público, caso se aguardasse a realização de um certame licitatório, nos termos da alínea “a.3”[2].
Por fim, a alínea “a.4” estabelece a necessidade de manifestação motivada do setor técnico competente no sentido de avalizar que as especificações e quantitativos apurados no plano de trabalho e no projeto básico sejam o meio adequado, efetivo e eficiente de afastar o risco iminente detectado[3].
Ainda enfrentando o tema, alguns questionamentos costumam surgir na aplicação do instituto da dispensa para a contratação emergencial.
Ponto que sempre gera dúvidas diz respeito à possibilidade de dispensar as formalidades para a contratação emergencial, em razão de sua natureza de urgência. Vimos acima que a contratação emergencial requer a formalização de processo administrativo próprio, com a necessidade de instrução processual e juntada de diversos documentos, fato que pode demandar tempo para que a Administração ultime o procedimento, comprometendo, a depender da natureza da situação, o pronto atendimento daquela necessidade.
Todavia, mesmo no caso de situação emergencial ou de calamidade, exige o TCU a formalização do respectivo processo de dispensa:
“3. Mesmo no caso de dispensa de licitação, é dever do contratante formalizar o respectivo processo, caracterizando a situação emergencial, a razão da escolha do prestador de serviço e a justificativa do preço, e publicar o ato de dispensa na imprensa oficial, conforme prevê o art. 26, caput, parágrafo único e incisos I, II e III, da Lei n. 8.666/1993, sendo vedada a prestação de serviços sem a cobertura de contrato devidamente formalizado, por expressa previsão do art. 60, parágrafo único, do Estatuto das Licitações. Acórdão 3083/2007 – Primeira Câmara”
O TCU também tem se manifestado sobre a possibilidade de contratação emergencial com empresa sem regularidade fiscal ou trabalhista, ou considerada inidônea. A posição do tribunal tem sido no sentido da indispensabilidade da exigência da comprovação da regularidade fiscal ou trabalhista, nos termos do Acórdão nº 1893/2006 – Plenário:
“2. A contratação de empresa por dispensa de licitação, ainda que em obras de natureza emergencial, não dispensa a exigência de comprovação de regularidade daquela junto à Seguridade Social.
Acórdão 1839/2006 – Plenário”
MARÇAL JUSTEN FILHO[4] entende que a “irregularidade perante a seguridade social deverá ser considerada como secundária quando a contratação daquele sujeito for indispensável para o Estado satisfazer seus deveres fundamentais”.
Este posicionamento pode ser defensável se imaginarmos a situação de um único fornecedor capaz de atender a determinada situação de emergência em um pequeno município, por exemplo. Aqui teríamos de sopesar os princípios para atender à necessidade premente, com o fim último de atenção ao interesse público.
Outra questão frequente diz respeito à possibilidade de prorrogar o prazo de execução do contrato emergencial. Lembramos que o permissivo legal para a contratação direta reza que o contrato emergencial pode ser firmado para as “parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos”.
Ou seja, as parcelas de obras e serviços contratados devem ser concluídas no prazo máximo de 180 dias, contados da ocorrência da emergência ou calamidade. Agora imaginemos que algum fato impeça o início da execução do contrato, restando impossível a conclusão das obras e serviços no prazo legal (por exemplo, a impossibilidade de ingresso ao local da obra em razão de interdição das vias de acesso).
Neste caso o TCU já se manifestou pela possibilidade de devolução da contagem do prazo de 180 (cento e oitenta) dias, desde que nem a Administração e nem o contratado tenham sido responsáveis pelo fato excepcional ou imprevisível que ocasionou o retardo do início da prestação do serviço:
“2. responder ao interessado que é possível, quando da dispensa de licitação nos casos de emergência ou calamidade, consoante o disposto no inciso IV do art. 24 da Lei nº 8.666/93, o retardamento do início e da devolução da contagem do prazo de 180 (cento e oitenta) dias, desde que as ações tomadas pela Administração tenham sido prejudicadas pela superveniência de fato excepcional ou imprevisível, estranho à vontade das partes, que altere fundamentalmente as condições de execução do contrato, a teor do disposto no art. 57, § 1º, da mencionada Lei, devendo ser adequadamente fundamentado, levando em conta, inclusive, as determinações contidas na Decisão nº 347/94 - TCU - Plenário ("in" D.O.U. de 21/06/94);” (grifo nosso)
Pelo aqui exposto, nota-se que a contratação emergencial é uma exceção, devendo ser utilizada sempre com cautela e com a observância dos seus requisitos legais em cotejo com a realidade fática.
Notas
[1]a.2) que exista urgência concreta e efetiva do atendimento a situação decorrente do estado emergencial ou calamitoso, visando afastar risco de danos a bens ou à saúde ou à vida de pessoas;
[2]a.3) que o risco, além de concreto e efetivamente provável, se mostre iminente e especialmente gravoso;
[3]a.4) que a imediata efetivação, por meio de contratação com terceiro, de determinadas obras, serviços ou compras, segundo as especificações e quantitativos tecnicamente apurados, seja o meio adequado, efetivo e eficiente de afastar o risco iminente detectado;
[4]In Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 14ª Ed., São Paulo: Dialética, 2010, p. 312.