EMENTA: Quarta Turma - DIREITO DO CONSUMIDOR. VÍCIO OCULTO. DEFEITO MANIFESTADO APÓS O TÉRMINO DA GARANTIA CONTRATUAL. OBSERVÂNCIA DA VIDA ÚTIL DO PRODUTO.
O fornecedor responde por vício oculto de produto durável decorrente da própria fabricação e não do desgaste natural gerado pela fruição ordinária, desde que haja reclamação dentro do prazo decadencial de noventa dias após evidenciado o defeito, ainda que o vício se manifeste somente após o término do prazo de garantia contratual, devendo ser observado como limite temporal para o surgimento do defeito o critério de vida útil do bem. O fornecedor não é, ad aeternum, responsável pelos produtos colocados em circulação, mas sua responsabilidade não se limita, pura e simplesmente, ao prazo contratual de garantia, o qual é estipulado unilateralmente por ele próprio. Cumpre ressaltar que, mesmo na hipótese de existência de prazo legal de garantia, causaria estranheza afirmar que o fornecedor estaria sempre isento de responsabilidade em relação aos vícios que se tornaram evidentes depois desse interregno. Basta dizer, por exemplo, que, embora o construtor responda pela solidez e segurança da obra pelo prazo legal de cinco anos nos termos do art. 618 do CC, não seria admissível que o empreendimento pudesse desabar no sexto ano e por nada respondesse o construtor. Com mais razão, o mesmo raciocínio pode ser utilizado para a hipótese de garantia contratual. Deve ser considerada, para a aferição da responsabilidade do fornecedor, a natureza do vício que inquinou o produto, mesmo que tenha ele se manifestado somente ao término da garantia. Os prazos de garantia, sejam eles legais ou contratuais, visam a acautelar o adquirente de produtos contra defeitos relacionados ao desgaste natural da coisa, são um intervalo mínimo de tempo no qual não se espera que haja deterioração do objeto. Depois desse prazo, tolera-se que, em virtude do uso ordinário do produto, algum desgaste possa mesmo surgir. Coisa diversa é o vício intrínseco do produto, existente desde sempre, mas que somente vem a se manifestar depois de expirada a garantia. Nessa categoria de vício intrínseco, certamente se inserem os defeitos de fabricação relativos a projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros, os quais, em não raras vezes, somente se tornam conhecidos depois de algum tempo de uso, todavia não decorrem diretamente da fruição do bem, e sim de uma característica oculta que esteve latente até então. Cuidando-se de vício aparente, é certo que o consumidor deve exigir a reparação no prazo de noventa dias, em se tratando de produtos duráveis, iniciando a contagem a partir da entrega efetiva do bem e não fluindo o citado prazo durante a garantia contratual. Porém, em se tratando de vício oculto não decorrente do desgaste natural gerado pela fruição ordinária do produto, mas da própria fabricação, o prazo para reclamar a reparação se inicia no momento em que ficar evidenciado o defeito, mesmo depois de expirado o prazo contratual de garantia, devendo ter-se sempre em vista o critério da vida útil do bem, que se pretende "durável". A doutrina consumerista – sem desconsiderar a existência de entendimento contrário – tem entendido que o CDC, no § 3º do art. 26, no que concerne à disciplina do vício oculto, adotou o critério da vida útil do bem, e não o critério da garantia, podendo o fornecedor se responsabilizar pelo vício em um espaço largo de tempo, mesmo depois de expirada a garantia contratual. Assim, independentemente do prazo contratual de garantia, a venda de um bem tido por durável com vida útil inferior àquela que legitimamente se esperava, além de configurar um defeito de adequação (art. 18 do CDC), evidencia uma quebra da boa-fé objetiva, que deve nortear as relações contratuais, sejam elas de consumo, sejam elas regidas pelo direito comum. Constitui, em outras palavras, descumprimento do dever de informação e a não realização do próprio objeto do contrato, que era a compra de um bem cujo ciclo vital se esperava, de forma legítima e razoável, fosse mais longo. Os deveres anexos, como o de informação, revelam-se como uma das faces de atuação ou ‘operatividade’ do princípio da boa-fé objetiva, sendo quebrados com o perecimento ou a danificação de bem durável de forma prematura e causada por vício de fabricação. Precedente citado: REsp 1.123.004-DF, DJe 9/12/2011.
REsp 984.106-SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 4/10/2012.
COMENTÁRIOS
De regra, duas são as garantias disponibilizadas ao consumidor, a fim de assegurar-lhe a regular fruição dos produtos e serviços comercializados, a saber: a garantia legal e a contratual.
É recorrente, ao depararmo-nos com publicidades, ou mesmo no ato da aquisição de produtos e contratação de serviços, com dizeres do tipo: “1 ano de garantia”, “garantia até a Copa do ano tal”, e até mesmo produtos que, hodiernamente, e consoante os respectivos fabricantes, possui garantia vitalícia. Essa é a chamada garantia contratual, isto é, uma garantia facultativa, concedida deliberadamente pelos fornecedores aos consumidores, como instrumento de afirmação da qualidade dos bens colocados no mercado de consumo.
Todavia, em que pese a existência dessa garantia denominada contratual, é necessário esclarecer que o consumidor possui a seu favor a garantia legal, isto é, aquela decorrente das normas do Código de Defesa do Consumidor.
A garantia legal é obrigatória e inderrogável, sendo imposta aos fornecedores por força da sistemática do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei nº. 8.078/90). E dizemos sistemática porque a referida lei não contempla regra expressa e específica acerca da garantia legal.
Apesar disso, para solucionar a questão o legislador consumerista fixou como prazos de garantia legal aqueles etiquetados no art. 26 do referido código, que diz:
Art. 26 – O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em:
I – 30 (trinta) dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produto não duráveis;
II – 90 (noventa) dias, tratando-se de fornecimento de serviço e produto duráveis.
Exemplificando: se o consumidor adquire um televisor, e consta na embalagem e no termo de garantia – “01 ano de garantia” – na verdade esta será de 01 ano mais 90 dias, uma vez que deverão ser somados ao prazo da garantia contratual (01 ano) mais 90 dias, referentes à garantia legalmente estipulada, por se tratar de fornecimento de produto durável. Assim, equacionando temos:
Garantia total = garantia contratual (fornecedor) + garantia legal (CDC)
É dessa forma que o consumidor deverá exercitar seus direitos, e sempre observando a natureza dos produtos e serviços, pois é comum que os fornecedores neguem cumprimento à garantia após o decurso do prazo por eles oferecido, o que, registre-se, atenta veementemente contra os princípios da boa-fé e da transparência.
Imperioso lembrar que, no caso de garantia contratual, esta deverá constar expressamente, a teor da regra do art. 50 do CDC, in verbis:
Art. 50 – A garantia contratual é complementar à legal, e será conferida mediante termo escrito.
Parágrafo único – o termo de garantia ou equivalente deve ser padronizado e esclarecer, de maneira adequada, em que consiste a mesma garantia, bem como a forma, o prazo e o ligar em que pode ser exercitada e os ônus a cargo do consumidor, devendo ser-lhe entregue, devidamente preenchido pelo fornecedor, no ato do fornecimento, acompanhado de manual de instrução, de instalação e uso do produto em linguagem didática, com ilustrações.
Conclui-se, então, que a garantia concedida pelo fornecedor não pode ser conferida de forma verbal. A lei exige termo escrito e padronizado, a fim de que os consumidores sejam atingidos uniformemente, e com todas as informações indispensáveis à correta utilização do produto ou do serviço, uma vez que o consumo deve consistir em atividade refletida e racional. A esse respeito, registre-se que a informação sobre a garantia é direito básico do consumidor, consoante disposição do art. 6º, III, do respectivo diploma legal, valendo aqui sua transcrição:
Art. 6º – São direitos básicos do consumidor:
III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, preço e garantia, bem como sobre os riscos que apresentem.
Ultrapassadas essas noções preliminares sobre a garantia de produtos e serviços, o caso em estudo nos revela a ocorrência de vícios ocultos, os quais podem se revelar somente depois de expirado o prazo de garantia do produto. O que fazer nesses casos? O consumidor ficará desamparado, suportando o prejuízo? Obviamente, a resposta é negativa. No entanto, em homenagem aos princípios da boa-fé, da razoabilidade, e da vedação de enriquecimento ilícito, tudo dependerá de se averiguar o tempo médio de vida útil do produto para que o consumidor possa fazer uso das faculdades que lhe são conferidas pelo art. 18 do CDC.
Discorrendo sobre o vício oculto, José Carlos Maldonado de Carvalho possui excelente e didático estudo, em que destaca a existência de três posições doutrinárias sobre o tema. São suas palavras:
São três as posições doutrinárias a respeito do assunto. PAULO JORGE SCARTEZZINI GUIMARÃES propõe a aplicação subsidiária do Código Civil, que prevê o prazo de 180 dias durante o qual o vício oculto pode se manifestar (art. 445, caput e §1º), argumentando que este limite é suficiente para “descoberta de qualquer falta de qualidade ou quantidade no produto”. Já PAULO LUIZ NETTO LÔBO, por sua vez, doutrina que o prazo de garantia legal deve ser o mesmo prazo da garantia contratual concedido pelo fabricante, que “pressupõe a atribuição de vida útil pelo fornecedor que o lança no mercado e é o que melhor corresponde ao princípio da equivalência entre fornecedores e consumidores”. Por fim, ANTÔNIO HERMAN DE VASCONCELLOS E BENJAMIN defende o critério de vida útil do produto para definição do limite temporal da garantia legal. Sustenta o ministro-professor, em breve síntese, que o legislador evitou fixar “um prazo totalmente arbitrário para a garantia, abrangendo todo e qualquer produto”, prazo este que seria “pouco uniforme entre os incontáveis produtos oferecidos no mercado”.
A própria realidade do mercado de consumo mostra o inconveniente em colher-se qualquer uma das duas primeiras correntes doutrinárias, restando, assim, apenas o exame da terceira
(CARVALHO, José Carlos Maldonado. Garantia Legal e Garantia Contratual: Vício Oculto e Decadência no CDC).
Deve ser reforçado que o vício oculto, conforme afirmado no julgado, não é algo que decorre do uso do produto, mas, sim, uma anormalidade existente desde sempre, mas que somente se revela com o uso do bem. É a partir desse momento que nasce para o consumidor o direito de vindicar sua reparação, dentro do prazo de 90 dias (art. 26, II, do CDC). Ora, se o vício não era conhecido, o referido prazo jamais poderia começar a fluir, sob pena de esvaziamento da regra.
No entanto, como bem destacado pelo colegiado julgador, o direito conferido ao consumidor para reclamar pelos vícios ocultos não é permanente. Em homenagem aos princípios da boa-fé objetiva, da razoabilidade e da vedação de enriquecimento ilícito, para que a reclamação do consumidor seja legítima, deverá ser observado qual o tempo médio de vida útil do bem acometido pelo vício. Não fosse assim, como bem pontuado, o fornecedor seria eternamente responsável, correndo o risco até de responder pelas falhas decorrentes do desgaste natural do produto, o que redundaria em enriquecimento ilícito do consumidor, afigurando-se algo desarrazoado e contrário à boa-fé (recorde-se que a boa-fé é uma via de mão dupla, devendo ser observada também pelo consumidor nas relações de consumo).
A reforçar a adoção do critério do tempo de vida útil do produto, cite-se, ainda, o art. 32 do CDC, o qual impõe ao fornecedor o dever de assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto e, mesmo após cessadas a fabricação ou importação, o dever de manter a oferta daqueles bens por tempo razoável. Ora esse “tempo razoável” referido pela norma leva em consideração exatamente a vida útil do produto, ainda que expirado o seu prazo de garantia contratual.
Ilustrando: atualmente, a indústria automobilística comercializa carros com até 5 anos de garantia (contratual, já que é parte de uma liberalidade do fabricante). Imagine que, três anos após expirada a garantia, o consumidor descubra que o veículo não cumpria a média de consumo de combustível prometida pelo fabricante, em decorrência de um problema no motor, fazendo com que o automóvel consumisse bem mais do que o declarado no manual do proprietário. Note que, no exemplo, a anormalidade sempre existiu, mas nunca foi descoberta, somente aparecendo em momento posterior ao término da garantia. Nesse caso, é de se indagar: qual é o tempo de vida útil do motor de um carro? 10, 15, 20 anos?
No exemplo fornecido, há uma presunção relativa de que durante os 5 anos de garantia ofertada pelo fabricante, o veículo funcionará perfeitamente, sem maiores percalços para o consumidor. A propósito, uma das finalidades dessa garantia contratual é sedimentar no consumidor a ideia de que usufruirá do bem plenamente, sem ter que se preocupar com eventuais defeitos.
Mas, passados 3 anos do fim da garantia, é natural que um carro apresente problemas? Certamente, haverá alguns problemas decorrentes do desgaste natural do veículo, como a perda de rigidez dos amortecedores, ruídos, folga na direção etc. No entanto, esses são problemas ordinários, comuns, isto é, ocorrem naturalmente, sendo um dos efeitos do uso prolongado do veículo.
Mudando o exemplo, imagine, agora, que o consumidor, ao levar seu carro para a revisão, receba a notícia do mecânico de que o alto consumo de combustível que sempre acometeu o veículo, desde sua retirada da concessionária, se dá em decorrência de uma solda mal feita no motor, a qual sempre permitiu o escape de oxigênio da câmara de combustão, gerando a ineficiência da queima de combustível. Nesse caso, deve-se indagar: mesmo após três anos do fim do prazo de garantia, tendo o consumidor finalmente descoberto um vício que sempre acometeu seu veículo, terá perdido o prazo para reclamar? A resposta é negativa, já que não se mostra razoável que um veículo (bem de durabilidade relativamente extensa) com oito anos de uso tenha sua vida útil considerada efetivamente expirada.
Seguindo, reafirmamos nesta oportunidade a máxima que sempre defendemos em nossos comentários, no sentido de que a análise do caso concreto será o melhor caminho a ser adotado pelo juiz, pois não há como se determinar quanto tempo de vida útil certo produto terá. Nada obstante, citando um caso concreto, Flávio Tartuce menciona recente julgado do TJRS, em que o respectivo órgão julgador considerou que a vida útil de um aparelho de TV gira entre 10 e 20 anos (TJRS – Recurso Cível 71002661379, Caxias do Sul – Terceira Turma Recursal Cível – Rel. Ricardo Torres Hermann – j. 09.11.2010 – DJERS 19.11.2010).
Concluindo, a adoção do critério da vida útil do produto é o que mais se afina com a mentalidade e os objetivos do Código de Defesa do Consumidor, já que o que se objetiva, afinal, é o atendimento à sua legitima expectativa de utilizar o bem de consumo por tempo razoável. Com vistas nisso, os critérios da garantia e do prazo do art. 445, caput e §1º, do Código Civil não atendem aos objetivos das normas protetivas do consumidor, pois, na verdade, favoreceriam mais o fornecedor, sendo que o princípio a ser sempre observado é o da aplicação da norma mais favorável ao consumidor, em razão de sua vulnerabilidade na relação de consumo,