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Direitos humanos e federalismo:

análise do incidente de deslocamento de competência

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5. ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À CONSTITUCIONALIDADE DO INCIDENTE

Os principais argumentos dos defensores da federalização residem justamente em sua função precípua: preservar os direitos consagrados como humanos, coibindo e punindo as graves violações que ensejem uma responsabilidade internacional do Brasil.

Por oportuno, faz-se necessário elucidar que o ato de interpretar o texto constitucional não se caracteriza por uma atividade anódina, sem importância, ou ainda de um ato mecânico. Interpretar implica a busca de um sentido, através da qual, serão resguardados uma série de princípios. Como bem aduz Eros Grau:

O intérprete produz a norma jurídica não por diletantismo, porem visando a sua aplicação a casos concretos. Interpretamos para aplicar o direito e, ao fazê-lo, não nos limitamos a interpretar os textos normativos, mas também, compreendemos os fatos. A norma jurídica é produzida para ser aplicada a um caso concreto. Essa aplicação se dá mediante a formulação de uma decisão judicial, uma sentença, que expressa a norma da decisão. Aí a distinção entre normas jurídicas e norma de decisão. Esta é definida a partir daquelas. [83]

De máxima importância para o correto entendimento dos argumentos favoráveis à constitucionalidade do incidente de deslocamento de competência, é de se destacar o pensamento de Luís Roberto Barroso:

[...] a distinção qualitativa entre regra e princípio é um dos pilares da moderna dogmática constitucional, indispensável para a superação do positivismo legalista, onde as normas se cingiam a regras jurídicas. A Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as ideias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central. A mudança de paradigma nessa matéria deve especial tributo à sistematização de Ronald Dworkin. Sua elaboração acerca dos diferentes papéis desempenhados por regras e princípios ganhou curso universal e passou a constituir o conhecimento convencional na matéria.[84]

Ainda, o referido autor discorre sobre a valoração dos princípios, vejamos:

Os princípios contêm, normalmente, uma maior carga valorativa, um fundamento ético, uma decisão política relevante, e indicam determinada direção a seguir. Ocorre que, em ordem pluralista, existem outros princípios que abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. A colisão de princípios, portanto, não só é possível como faz parte da lógica do sistema, que é dialético. Por isso a sua incidência não pode ser posta em termos de tudo ou nada, de validade ou invalidade. Deve-se reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou importância. À visa dos elementos do caso concreto, o intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com antagonismos inevitáveis, como os que existem entre a liberdade de expressão e o direito de privacidade, a livre iniciativa e a intervenção estatal, o direito de propriedade e a sua função social. A aplicação dos princípios se dá, predominantemente, mediante ponderação.[85]

Ainda, em se tratando de interpretação constitucional, José Jesus Cazetta Júnior (2004) afirma que a necessária ponderação é aplicável ao caráter constitucionalismo pós-guerra, onde o modelo tradicional de solucionar conflitos entre regras é inútil, tendo em vista que a Constituição não mais consagra valores homogêneos, mas um amplo conteúdo material de princípios de direitos fundamentais, até mesmo contraditórios. Apenas através da ponderação é possível manter a coexistência e a igualdade abstrata entre as normas ou direitos que refletem valores plurais, próprios de uma sociedade heterogênea, mas que pretende manter-se unida em torno da Constituição. [86]

Essa é a situação a qual se encontra a análise do incidente de deslocamento de competência, tendo em vista as supostas violações aos princípios constitucionais alhures mencionados, em contraposição a outros princípios de efetividade e proteção aos direitos humanos, como a consagração da dignidade da pessoa humana, por exemplo. Essa contradição aparente enriquece o debate e permite uma melhor compreensão dos interesses colocados em pauta, desempenhando papel eminentemente dialético.

Não obstante, é inegável que não existem direitos fundamentais ilimitados, como afirmou o Supremo Tribunal Federal, veja-se:

[...] os direitos e garantias individuais não tem caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revista de caráter absoluto, mesmo porque razoes de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerando o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros. [87]

Em se tratando de conflito entre princípios constitucionais, sobre os quais não se podem aplicar as regras da hierarquia das normas (lei superior prevalece sobre inferior); da cronologia (lei posterior revoga anterior) ou da especialização (lei específica prevalece sobre lei geral), Luís Roberto Barroso ensina:

[...] a denominada ponderação de valores ou ponderação de interesse é a técnica pela qual se procura estabelecer o peso relativo de cada um dos princípios contrapostos. Como não existe um critério abstrato que imponha a supremacia de um sobre o outro, deve-se, à vista do caso concreto, fazer concessões recíprocas, de modo a produzir um resultado socialmente desejável, sacrificando o mínimo de cada um dos princípios ou direitos fundamentais em oposição. O legislador não pode, arbitrariamente, escolher um dos interesses em jogo e anular o outro, sob pena de violar o texto constitucional. Seus balizamentos devem ser o princípio da razoabilidade e a preservação, tanto quanto possível, do núcleo mínimo do valor que esteja cedendo passo. Não há aqui, superioridade formal de nenhum dos princípios em tensão, mas a simples determinação da solução que melhor atende o ideário constitucional na situação apreciada.[88]

Para a análise da constitucionalidade da federalização em cotejo, interessa analisá-la sob a égide dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Nesta toada, explicitam Barcellos e Barroso:

O princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade [...] não está expresso na Constituição, mas tem seu fundamento nas ideias de devido processo legal substantivo e na de justiça Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida com que a norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema. Em resumo sumário, o princípio da razoabilidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação) b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação do excesso) e c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito). O princípio pode operar, também, no sentido de permitir que o juiz gradue o peso da norma, em uma determinada incidência, de modo a não permitir que ela produza um resultado indesejado pelo sistema, assim fazendo a justiça do caso concreto. [89]

É possível reconhecer que a compatibilidade do incidente de deslocamento de competência somente acontecerá se este instituto atender ao princípio da razoabilidade, passando pela adequação ao caso concreto, pela necessidade de utilização deste meio, pela vedação ao excesso e pela proporcionalidade em sentido estrito. Muito embora a comprovação destas adequações esteja diluída pelo trabalho, é possível justificá-los sucintamente adiante.

Para que se possa identificar a adequação, faz-se necessário aferir qual o fim perseguido e o instrumento que será empregado para tanto. O incidente de deslocamento de competência possui como objetivo a criação de um instrumento que permita uma ampliação qualitativa da proteção dos direitos humanos, agindo como meio eficaz para realizar diretamente a resposta judicial aos casos de grave violação dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

Para alcançar tal objetivo, criou-se um instrumento que, respeitando o modelo federal do Estado brasileiro, atribuiu a um tribunal superior, já responsável pela defesa e peã uniformização da ordem infraconstitucional, a missão de identificar os casos concretos em que haja efetiva necessidade de intervenção do ente federal. Concebeu-se, portanto, um mecanismo cuidadoso que envolve a manifestação fundamentada, em processo judicial, e que terá por resultado a redistribuição do feito a um juízo previamente reconhecível, dotado de todas as garantias institucionais típicas do Poder Judiciário e do Ministério Público. [90]

Não pairam dúvidas de que o fim almejado encontra abrigo em uma sociedade que preza pelo princípio da dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos e na prevalência dos direitos humanos. Outrossim, o referido instrumento preserva a entidade federativa, salvaguardando a noção de devido processo legal, garantindo a adequação da federalização.

Ademais, não parece restar questionamentos de que o incidente de deslocamento é uma medida exigível, uma vez que o Estado brasileiro poderá ser responsabilizado internacionalmente pelas obrigações assumidas. Afora outros casos de relevância, basta rememorar que o Brasil já fora condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo caso “Ximenes Lopes”, além de sofrer medidas provisionais adotadas no caso da Penitenciária “Urso Branco” [91] e do tratamento degradante nas unidades da FEBEM em São Paulo.

Nesta seara, a federalização é medida exigível diante da necessidade da concretização dos direitos humanos, em contraposição a uma realidade muito distante do ideal, com reiteradas situações de desrespeito aos direitos mais fundamentais do ser humano. Implica, por oportuno, averiguar se existe meio menos gravoso ou alternativo ao incidente de deslocamento de competência.

Neste diapasão, Ubiratan Cazzeta (2009) leciona que:

O IDC não é instrumento redentor, que trará, sozinho, a solução para o problema da violação dos direitos humanos. Todavia, não é, tampouco, um mecanismo autoritário ou abusivo, como se pretendeu configurá-lo nas críticas; aliado a um ampla teia de atuações estatais, poderá, sim, vir a ser um instrumento eficaz para romper situações concretas de desrespeito aos direitos humanos. [92]

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Comparando aos dois outros instrumentos de intervenção federal no âmbito estadual supramencionados, trata-se, portanto, de medida menos gravosa que a intervenção federal prevista no artigo 34, VII, a, da Constituição e mais eficaz do que a autorização de investigação a Policia Federal preconizada pela Lei nº 10.446/02, ao disponibilizar o aparato policial federal sem afastar a autonomia do Estado-membro, viabilizando a solução judicial que o desrespeito aos direitos humanos impõe. Reitera-se que a federalização é medida excepcional, de caráter subsidiário, como já determinado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Por derradeiro, no que se refere aos ganhos decorrentes da medida, é patente que se configuram como maiores do que as eventuais perdas de que se pode cogitar, pois o incidente preserva os contornos do federalismo, assegura o juízo natural, sem ofender o devido processo legal, garante a ampla defesa e se configura por importante aparato para manter alerta os estados-membros. Todavia, insta elencar os principais argumentos favoráveis ao instrumento em comento os quais serão pormenorizados adiante.

O primeiro argumento balizador da constitucionalidade do instituto reside no término da conjectura paradoxal onde o Estado brasileiro é responsabilizado pelo descumprimento das obrigações internacionais na pessoa jurídica da União, de forma única e exclusiva, sem que a mesma tivesse a possibilidade de chamar para si tal responsabilidade, investigando, processando ou julgando os crimes que ensejaram sua punição.

Pedro Lenza (2011) ressalta que a previsão estabelecida no artigo 109, V-A e no §5º do mesmo artigo da Constituição Federal fora muito bem vindo e acertado no sentido de adequar o funcionamento do Judiciário brasileiro ao sistema de proteção internacional dos direitos humanos, destacando ainda que a União é que será responsabilizada em nome do Estado brasileiro, por aquilo que fora acordado em tratados internacionais. Outrossim, havendo descumprimento ou afronta a direitos resguardados pelos referidos tratados, a União não poderá invocar a cláusula federativa para se eximir das responsabilidades assumidas perante os órgãos internacionais. [93]

Corroborando com tal posicionamento, diversas associações e organizações apóiam o instrumento da federalização, dentre as quais, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e a Associação dos Juízes Federais (AJUFE). Para esta última organização a grande importância da federalização é que ela introduz no ordenamento jurídico brasileiro a adoção de um sistema mais abrangente de responsabilização pelos Direitos Humanos, no qual, se uma esfera judicial não for capaz de dar adequada apuração e julgamento ao caso concreto, a responsabilidade passa para outra, no caso a União.

No mesmo sentido, Flávia Piovesan ressalta que a federalização será importante instrumento na concretização e realização dos direitos humanos, quando os mesmos padeçam de graves violações, primando por um Estado Democrático de Direito, consoante o disposto no artigo 1º da Constituição Federal, salientando ainda:

Se qualquer Estado Democrático pressupõe o respeito dos direitos humanos e requer a eficiente resposta estatal quando de sua violação, a proposta de federalização reflete sobretudo a esperança de que a justiça seja feita e os direitos humanos respeitados. [94]

Outro argumento que consolida a constitucionalidade do incidente de deslocamento reside na possibilidade de dotar o sistema jurisdicional de melhores instrumentos para enfrentar a impunidade e a afronta à ordem jurídica, em casos quem envolvam as já badaladas graves violações aos direitos humanos, fato que muitas vezes não ocorre nos órgãos estaduais.

Considerando o incidente como um mecanismo conservador da observância dos direitos humanos em nível nacional, Vladimir Aras leciona que:

Trata-se tão-somente de um instrumento vocacionado a preservar a responsabilidade internacional do Brasil perante cortes e organismos internacionais (como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Organização dos Estados Americanos e, por via indireta, o Tribunal Penal Internacional) e de efetiva proteção aos direitos humanos em nosso território, em virtude da internacionalização do direito humanitário e das obrigações derivadas de inúmeras convenções universais firmadas pelo País, como o Pacto de Direitos Civis e Políticos (Nova Iorque, 1966), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (São José, 1969), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e o recente Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, e as convenções da ONU contra a tortura e para a eliminação de todas as formas de discriminação racial, por exemplo. [95]

Coadunando com essa corrente doutrinária e trazendo à baila sua experiência defronte as Cortes Internacionais, Francisco Rezek aduz:

Em geral, nas federações os crimes dessa natureza, os crimes previstos por qualquer motivo em textos internacionais, são crimes federais e da competência do sistema federal de Justiça. Isso tem várias vantagens, como uma jurisprudência uniforme, uma jurisprudência unida, a não tomada de caminhos diversos segundo a unidade da federação em que se processe o crime. É vantajoso e é praticado em outras federações. [96]

Outrossim, pode-se citar outros casos de federalização através do estudo do direito comparado, como acontece com o crime de narcotráfico nos Estados Unidos da América. [97]

Ademais, é cediço que o estado brasileiro já se mostrou por vezes ineficaz e inoperante na persecução e julgamento de crimes de grande repercussão internacional, como no caso do massacre de Eldorado dos Carajás[98] e a chacina da Candelária[99]. Ressalta-se que ambos os casos foram marcados pela influencia negativa de agentes estatais, incluindo a presença de policiais no banco dos réus.

A então Relatora das Nações Unidas sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais, Asma Jahangir, identificou a Emenda Constitucional 45/2004 como “um passo bem-vindo para combater a impunidade” [100]. O Relator das Nações Unidas para Independência de Juizes e Advogados, Leandro Despouy, afirmou que a referida emenda se apresentava como instrumento adequado e necessário de combate à impunidade:

A aprovação da reforma é um passo importante na transformação da justiça, na medida em que representa o início de um processo de mudanças destinado a resolver problemas estruturais: morosidade, falta de acesso à justiça, impunidade em algumas áreas (...). Outra medida significante é a proposta de emenda ao artigo 109 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. (...). O Procurador Geral da República, para reforçar as obrigações em direitos humanos assumidas pelo Brasil, poderá buscar permissão no Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase da investigação, para transferir o caso para a competência da justiça federal.  É um passo louvável para o combate à impunidade.[101]

Após a efetiva emenda constitucional, Relatores das Nações Unidas que visitaram o país identificaram a federalização como uma ferramenta positiva, mas que, até o momento, não estaria surtindo o efeito desejado de reduzir a impunidade.

Esta é a avaliação feita pelo Relator Especial das Nações Unidas sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias ou Extrajudiciais, Philip Alston, que esteve no Brasil em 2007, preocupado com a persistência da impunidade, em especial de agentes do Estado, não obstante a previsão da federalização. No mesmo sentido reflete documento elaborado pelas Nações Unidas por ocasião da Revisão Periódica Universal do Brasil:

O relatório observou que existe a promessa de reformas para permitir que alguns casos que envolvem violações de direitos humanos sejam transferidos de tribunais estaduais para federais (e sejam investigados pela Polícia Federal). No entanto, a tendência geral tem sido de que os casos não sejam transferidos. Um pedido de federalização sobre o assassinato de Manoel Mattos estava ainda pendente de julgamento até a data deste relatório. [102]

Importante anotar que o referido pedido de julgamento, no caso Manoel Mattos, fora deferido, deslocando a competência para a seara Federal, consoante julgamento do IDC-2.

Um terceiro fundamento da constitucionalidade da federalização reside no interesse nacional na repercussão dos delitos que ensejem a propositura de tal incidente. É inegável que para maior e melhor compreensão do incidente supracitado, faz-se necessário analisá-lo sob a ótica do constitucionalismo moderno, o qual se encontra inserido no sistema internacional de proteção dos direitos humanos, primando pela internacionalização dos direitos humanos, resultando em uma abordagem constitucional humanística.

Não se pode olvidar, ainda, que a Constituição Federal preza pelos valores da dignidade da pessoa humana, enumerando em seu artigo 5º um extenso rol de direitos e garantias fundamentais que excluem outros decorrentes do regime e dos princípios adotados, mesmo que através de tratados internacionais devidamente ratificados.

Paulo Bonavides (2010) atesta que o incidente de deslocamento de competência visa preservar os mais altos valores protegidos pela Constituição Federal, sem que com isso as demais cláusulas pétreas sejam prejudicadas, pois inexiste direito absoluto, que não possa ser relativizado diante do choque com outro direito normatizado e de mesma força hierárquica. Para tanto, faz-se necessário o uso do princípio da proporcionalidade, mais elástico que os demais, protegendo o cidadão contra excessos do Estado e defendendo as liberdades constitucionais. [103]

Não obstante, em regra, tem-se que a Justiça Federal é mais isenta e imparcial, não sendo influenciada pelas injunções políticas ou coorporativas da localidade do crime. Flávia Piovesan e Renato Vieira (2005) corroboram com tal posicionamento, se referindo as vantagens da “competição saudável” entre as policias judiciárias e entre a Justiça Federal e a Estadual:

Com a federalização dos crimes contra os direitos humanos passa a existir uma salutar concorrência institucional para o combate à impunidade e para a garantia e justiça, expondo-se à sociedade civil os poderes e os limites estatais no cumprimento de seus compromissos internacionais e domésticos. De um lado, encoraja-se a atuação estatal sob o risco de deslocamento de competência em razão da matéria, e de outro se aumenta a responsabilidade das instancias federais para o efetivo combate à impunidade das violações aos direitos humanos.[104]

Insta ressaltar que a Polícia Federal e o Instituto Nacional de Criminalística são, em geral, mais bem equipados e preparados do que as Polícias Civil dos estados, sendo possível que se investigue melhor o crime em comento. Destarte, a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e a Justiça Federal estão distantes das influencias políticas e econômicas locais, possuindo mais condições de conduzir uma ação penal longe do corporativismo e das querelas locais. [105]

Nas sábias palavras de Flávia Piovesan e Renato Vieira (2005), é de vital importância o fato de os órgãos federais de persecução não serem beneficiados com verbas dos cofres públicos estaduais, conferindo-lhes maior independência na persecução dos crimes praticados, comandados ou acobertados por agentes públicos locais, uma vez que não estarão “subordinados” aos mesmos nem correrão riscos de restrições orçamentárias, por exemplo. [106] Nesta toada, infere-se que a impunidade também diminuirá, principalmente quando se tratar de investigado que ocupe cargo público estadual ou municipal.

O então Ministro da Justiça Nelson Jobim citado por Simone Schreiber e Flávio Dino Castro e Costa, quando da apresentação do Plano Nacional de Direitos Humanos em 1996 afirmou:

A fórmula consiste na inserção de dois novos incisos no art. 109 da Constituição. Sem dúvida, a Justiça Federal e o Ministério Público da União, no âmbito das suas atribuições, vêm se destacando no cenário nacional como exemplos de isenção e de dedicação no cumprimento dos seus deveres institucionais. Por outro lado, cumpre destacar que a própria natureza dessas duas Instituições, com atuação de abrangência nacional, as tornam mais imunes aos fatores locais de ordem política, social e econômica que, até agora, têm afetado um eficaz resguardo dos direitos humanos. [107]

Nesta esteira, é patente que os crimes graves contra os direitos humanos deveriam ser submetidos, desde logo, à competência da Justiça Federal, mais isenta de injunções político-corporativas, curiosamente, o oposto do que ocorria durante o regime militar. Segundo Júlio Ricardo de Paula Amaral (2006) “há quem imagine que o novo dispositivo coloca os juízes estaduais na berlinda, como se fossem incompetentes, tendenciosos e mal equipados para solucionar os complexos litígios envolvendo a violação aos direitos humanos” [108]. Todavia, Nelson Jobim rebate tal crítica aduzindo que:

Assisti, inclusive, em debates no interior do país, a um desembargador dizendo que isso seria uma ofensa brutal à Justiça Estadual. O fato é que ninguém tem direito a competências. Competência se define na perspectiva da eficácia. No caso específico da federalização de direitos humanos, não se falou em ineficácia da Justiça Estadual, mas em ineficácia dos órgãos investigadores dos delitos contra direitos humanos, se na Justiça Estadual se mantivesse. Com a federalização, desloca-se o poder investigatório para a Polícia Federal, que não tem um entravamento em relação às ações que se realizam no Estado. Essa é a razão específica. Outra questão básica é que grande parte desses ilícitos são praticados por órgãos vinculados às autonomias estaduais, ou seja, os estados federados. Além disso, os estados federados não são entidades de direito público internacional. Esqueçamos a disputa interna de competências, se é da Justiça Estadual ou Federal. Não é isso que está em jogo. Está em jogo a questão da eficiência do nosso sistema.[109]

Flávia Piovesan traz dados estatísticos que demonstram tal situação fática, tendo em vista o 3º Relatório Nacional de Direitos Humanos emitido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no ano de 2005:

Das setenta denúncias apresentadas contra o Brasil no Sistema Interamericano, apenas dois casos apontam a responsabilidade direta da União; nos demais, a responsabilidade direta é dos Estados. A União tem responsabilidade no plano internacional, mas não a tem no plano interno. A federalização fortalece a responsabilidade da União em matéria de direitos humanos.[110]

Assim, a intervenção federal no âmbito estadual, nos ditames da federalização ora estudada, pode ser justificada por três elementos: pertinência, necessidade e proporcionalidade. Para que haja pertinência é necessário que haja respeito ao meio adequado de proposição do incidente, respeitando a norma. A necessidade justifica-se ela proibição de utilização da federalização como primeira medida a ser tomada, suscitando-a apenas quando não restam mais alternativas ao Estado. A proporcionalidade leva à ponderação, ou seja, avaliação do conjunto de interesses envolvidos no caso concreto, servindo sempre como instrumento de efetivação e proteção da liberdade aos direitos fundamentais. [111]

A proporcionalidade em cotejo serve para que o instituto da federalização dos crimes contra os direitos humanos não se torne em medida banalizada, fugindo de seu escopo principal.

Segundo Gilmar Mendes tal proporcionalidade se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental em detrimento de outro. O ministro ainda leciona:

A proporcionalidade se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou a um conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da proporcionalidade. São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Há de perquirir-se na aplicação do princípio da proporcionalidade, se em face do conflito entre os dois bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto é, apto para produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou seja, se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto)[112].

Note-se que o incidente de deslocamento de competência não chega a subtrair nenhuma competência originária dos estados, tampouco se apresenta como uma violação ao pacto federativo, tendo em vista sua natureza subsidiária e mediante a comprovação da incapacidade do estado-membro em investigar, processar ou julgar o acontecido.  Neste mesmo sentido, assim se manifestou o Ministro Arnaldo Esteves Lima quando do julgamento do primeiro incidente de deslocamento de competência:

O deslocamento de competência – em que a existência de crime praticado com grave violação aos direitos humanos é pressuposto de admissibilidade do pedido – deve atender ao princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), compreendido na demonstração concreta de risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil, resultante da inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais do Estado-membro, por suas instituições, em proceder à devida persecução penal. [113]

Trata-se de uma garantia constitucional de eficácia plena, com caráter eminentemente instrumental, possibilitando o deslocamento da competência, de forma horizontal, da Justiça Estadual para a Justiça Federal, pois ambas compõe uma só Justiça, um só sistema judiciário brasileiro. Assim, embora não seja contemporâneo à Emenda Constitucional 45, o ilustre magistério de João Mendes Júnior, datado de 1916 ainda sobrevive ao tempo, servindo como base para o presente estudo:

O Poder Judiciário, delegação da soberania nacional, implica a idéia de unidade e totalidade da força, que são as notas características da idéia de soberania. O Poder Judiciário, em suma, quer pelos juízes da União, quer pelos juízes dos estados, aplica leis nacionais para garantir os direitos individuais; o Poder Judiciário não é federal, nem estadual, é eminentemente nacional, quer se manifestando nas jurisdições estaduais, quer se aplicando ao cível, quer se aplicando ao crime, quer decidindo em superior, quer decidindo em inferior instância.[114]

Ademais, antes mesmo do incidente estudado já era possível que a Justiça Federal julgasse, investigasse e processasse os crimes praticados em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, além dos previstos em tratados internacionais quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ocorrido no exterior ou reciprocamente. Assim, é patente o interesse da União a fim de firmar seus compromissos internacionais adquiridos.

Segundo Cançado Trindade (2006) a proteção dos direitos básicos da pessoa humana não se esgota e nem pode terminar na atuação do Estado, que deve ser entendido como expressão de um poder interno, de uma supremacia própria, visando a cooperação, onde todos os estados-membros são parcialmente independentes porém iguais juridicamente.[115]

A federalização dos crimes constitui regra de modificação de competência interna com base constitucional e subsidiária, no sentido de complementar a competência residual da justiça estadual e não de suprimi-la. Analisando as competências delimitadas pela Constituição de 1988 há, de modo geral, um favorecimento às competências concorrentes, no sentido de que exista um federalismo cooperativo, com os olhos voltados mais para a colaboração de seus estados-membros do que com a independência total. Segundo Alexandre de Moraes (2002) a intervenção consiste em medida excepcional de supressão temporária a autonomia de determinado ente federativo, fundada em hipóteses taxativamente previstas no texto constitucional e que visa à unidade e preservação da soberania do Estado Federal e das autonomias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. [116]

Não obstante, observa Flávia Piovesan (2005) que os pressupostos do desaforamento, já mencionado, acabam se assemelhando aos do incidente de deslocamento de competência, quais sejam: falta de isenção da Justiça Estadual ou negativa desta, além da excessiva demora no julgamento. Assim, os efeitos destas duas medidas são simétricos, sendo certo de que ambos são constitucionais.[117]

Por oportuno, ressalta-se que o desaforamento existe no Código de Processo Penal há mais de sessenta anos, sem estar revisto na Constituição Federal, e mesmo assim é considerado Constitucional. Ademais, o desaforamento não afasta a possibilidade do incidente de deslocamento de competência, porquanto o desaforamento se restringe aos casos do Tribunal do Júri e a federalização é ampla, com a posterior modificação da competência em razão da matéria.

Embasando a tese de constitucionalidade da federalização, pode-se citar o caso de conexão entre crimes de competência federal e estadual, o qual, encontra-se sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça através do enunciado nº 122: “Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, ‘a’, do Código de Processo Penal”.[118]  Neste diapasão, Vladimir Aras (2005) sustenta que a competência federal prepondera sobre a estadual, uma vez que a primeira está expressa na Constituição e a segunda é residual, mesmo que seja mais ampla.[119]

Ainda no tocante as competências, existem as corriqueiras exceções e os conflitos entre juízos diversos, defesas processuais que ocorrem no curso de processos cíveis e penais além dos casos de remoção por ofício dos magistrados, consoante o artigo 103-B, § 4º, III da Constituição Federal, sem que com isso houvesse violação aos princípios da segurança jurídica e do juiz natural. Vladimir Aras (2005) salienta ainda, que tais instrumentos processuais não são contestados pelos argumentos que balizam as teses de inconstitucionalidade do incidente de deslocamento de competências, fazendo uma analogia ao supramencionado juízo em potencial, dentro dos ditames constitucionais pátrios. [120]

Por derradeiro, insta salientar acerca da decisão do Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento do IDC-1, onde fora rejeitado as preliminares argüidas pela defesa de inépcia da inicial e de que o dispositivo seria uma norma de eficácia contida, carecendo de um rol definidor e exemplificativo dos crimes considerados graves. Após o julgamento, ficou patente que não há incompatibilidade do incidente de deslocamento de competência com qualquer outro principio constitucional ou com a sistemática processual em vigor[121], restando afastada a tese de inconstitucionalidade da federalização em escopo.

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Sobre o autor
José Gabriel Pontes Baeta da Costa

Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, campus Poços de Caldas. Pós-Graduando em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera/UNIDERP. Advogado inscrito na OAB/MG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, José Gabriel Pontes Baeta. Direitos humanos e federalismo:: análise do incidente de deslocamento de competência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3864, 29 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26543. Acesso em: 23 dez. 2024.

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