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A inefetividade das normas jurídicas que tutelam a propriedade intelectual no Brasil:

uma abordagem crítica do problema segundo as teorias de Norberto Bobbio e Marcos Bernardes de Mello

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5. A Análise das Normas Jurídicas que Tutelam a Propriedade intelectual a Partir dos Critérios de Valoração

A análise integrativa dos três critérios valorativos das normas jurídicas (justiça, validade e eficácia), ou como defende Marcos Bernardes de Mello, a compreensão das três diferentes dimensões da norma jurídica (política, normativa e sociológica), permite compreender se essas regras de conduta estão plenamente aptas à sua realização no meio social. Nas palavras de Marcos Bernardes de Mello[29]:

Desse modo, é imperioso que o direito seja sempre analisado sob o tríplice aspecto dos valores, da norma e do fato, para que assim se possa ter um direito que, efetivamente, se realize no meio social por que consubstancia seus valores.

5.1 A Justiça das Normas Jurídicas (O Problema Deontológico do Direito em sua Dimensão Política)

Na concepção de Norberto Bobbio, todo ordenamento jurídico persegue determinados fins, determinados valores que pretende sejam obedecidos e concretizados. Diz-se, portanto, que a regra é justa quanto está apta à produção desses efeitos[30].

Ao valorar os fatos da vida, na precisa definição de Marcos Bernardes de Mello, é que a comunidade jurídica atribui àqueles que considera de maior relevância para a harmonização das relações intersubjetivas a adjetivação de “jurídicos”; são reveladas, neste instante, as normas jurídicas.[31]

No caso em análise neste escrito – normas jurídicas que tutelam a propriedade intelectual no Brasil – é certo que o legislador acolheu o secular entendimento de que conhecimento é poder e é riqueza para, adjetivando o fato da vida da criação de obras intelectuais, fruto do saber criativo e da genialidade do ser humano, tutelar essas obras do pensamento através da criação de um sistema jurídico protetivo dos interesses patrimoniais e/ou morais de seu criador.

A partir da experiência inglesa da primeira metade do século XVII, quando, criou-se naquele país o Statute of Monopolies, uma codificação que concedia privilégios àqueles que desenvolviam ou aprimoravam técnicas, utensílios ou ferramentas de produção, rompia-se, pela primeira vez, com o modelo feudal de concessão de privilégios de monopólio para dar lugar a um sistema que recompensava aquele que contribuísse para o desenvolvimento da sociedade e do Estado[32].

Desde então, com o desenvolvimento industrial experimentado na Inglaterra a partir daquela iniciativa pioneira, todos os demais estados soberanos se apressaram em assegurar às pessoas o privilégio de exclusividade na exploração de seus inventos. Lucrava o inventor com a vantagem de não enfrentar concorrência durante determinado tempo, o que lhe garantia bons rendimentos financeiros, mas também ganhava o próprio Estado, com a modernização de seu sistema produtivo e a consequente melhoria na qualidade de vida de seus cidadãos.

Esse interesse coletivo de que haja uma constante evolução nos meios econômicos de produção, de que haja uma melhoria crescente na qualidade dos produtos ofertados à sociedade, e de que haja uma crescente produção cultural para a instrução do saber coletivo, foram os fatos históricos que motivaram o legislador a valorá-los como fatos jurídicos, disciplinando a proteção conferida aos seus titulares a partir de uma norma fundamental e, depois, em legislação infraconstitucional esparsa.

A importância econômica e social de que o Estado proteja os direitos dos autores de obras autorais e de inventos industriais, além de outros frutos do saber humano, pode ser explicada na doutrina intelectualista:

O desenvolvimento econômico das nações baseia-se no processo em desenvolvimento tecnológico, que tem no direito da propriedade intelectual um mecanismo eficaz de proteção. O Direito da Propriedade Intelectual, no milênio que ora se inicia, certamente, ocupará um lugar de destaque, em face da nova revolução tecnológica, movida agora pelo conhecimento virtual; a era do saber se pauta pelo uso da informática e o domínio das informações.

(...)

O domínio do conhecimento tecnológico, de sua formação, não somente de sua utilização, constitui-se, nos tempos hodiernos, grande diferenciador entre as nações. Cada vez mais se torna imperioso ter-se o controle sobre esse procedimento, na medida em que, ter tecnologia, significa deter plena soberania, isto é não depender da vontade de terceiros, no estabelecimento de metas de desenvolvimento capazes de formação de riqueza e, inclusive, de geração de empregos. [33]

Sob a dimensão axiológica dessas normas jurídicas, em que pese um crescente movimento que tenta negar a existência de um direito de propriedade sobre obras autorais, o fato é que não há que se negar o critério valorativo de justiça às leis que regulam os diferentes direitos sobre a propriedade intelectual no Brasil, uma vez que se constituem em eficiente instrumento de afirmação da soberania nacional através da promoção de riqueza, desenvolvimento e bem-estar da sociedade.

5.2 A Validade das Normas Jurídicas (O Problema Ontológico do Direito em sua Dimensão Normativa)

Superada a discussão acerca da justiça ou injustiça das normas jurídicas que tutelam a propriedade intelectual no Brasil, é imperioso analisar, sob o aspecto valorativo, a validade destas regras. Para que seja considerada válida, a norma jurídica deve ter sido emanada de autoridade competente, estar em vigor depois de emanada, e não conflitar com nenhuma outra norma do sistema (antinomia), especialmente de hierarquia superior.

Em uma definição precisa, Marcos Bernardes de Mello assevera que a dimensão normativa da regra jurídica importa em constatar “se existe uma norma regularmente posta e vigente que, só por isso, é obrigatória, independentemente da circunstância de sua efetivação no meio social pela conduta humana coincidente com suas determinações[34]”.

Num primeiro momento, cumpre analisar se as normas que tutelam a propriedade intelectual no País foram emanadas de autoridade competente. A Constituição Federal brasileira, como já dito anteriormente, consagrou como direito fundamental do indivíduo o direito à propriedade intelectual. Contudo, delegou à legislação infraconstitucional a regulamentação da matéria. A partir de então, as duas leis que versavam sobre direitos autorais e sobre propriedade industrial, anteriores ao texto constitucional de 1988 e, em certos aspectos, com ele conflitantes, foram revogadas para dar lugar àquelas acima mencionadas.

Como proposições legislativas com tramitação regular no Congresso Nacional, sujeitando-se a todas as etapas necessárias do processo legislativo, não há que se questionar acerca da legitimidade da fonte de emanação das referidas normas jurídicas.

Também não há que se falar em revogação das citadas normas infraconstitucionais. Desde que passaram a vigorar, as normas que tutelam a propriedade intelectual no Brasil sofreram pequenas alterações, entretanto, nenhuma delas sofre redução substancial em seu texto, nem mesmo por outra norma que lhe tenha revogado.

Por último, o sistema jurídico de proteção à propriedade intelectual é perfeitamente harmônico, não existindo qualquer antinomia entre as diferentes regras jurídicas. Todas as três leis ordinárias que regulamentam os diferentes bens da propriedade intelectual no Brasil delimitam com muita precisão a sua abrangência, não havendo colisão entre suas disposições, aplicáveis apenas a situações distintas. Sob outro aspecto, tais normas compatibilizam-se integralmente com as disposições constitucionais vigentes, sendo essa a razão pela qual jamais houve suscitação de inconstitucionalidade de qualquer de seus dispositivos.

Analisada a integridade do sistema jurídico de proteção à propriedade intelectual, pode-se concluir que essas normas jurídicas são plenamente válidas.

5.3 A Eficácia das Normas Jurídicas (O Problema Fenomenológico do Direito em sua Dimensão Sociológica)

O último critério de valoração da norma jurídica, a última dimensão em que deve ser analisada, diz respeito à sua eficácia, ou como melhor deve ser compreendida, a sua efetividade. O fato de uma norma jurídica existir validamente não implica necessariamente dizer que é seguida constantemente[35]. Norberto Bobbio assevera que:

A investigação para averiguar a eficácia ou a ineficiência de uma norma é de caráter histórico-sociológico, se volta para o estudo do comportamento dos membros de um determinado grupo social e se diferencia, seja da investigação tipicamente filosófica em torno da justiça, seja da tipicamente jurídica em torno da validade[36].

Definindo os contornos da dimensão sociológica da norma jurídica, Marcos Bernardes de Mello afirma que:

Se há descompasso entre a incidência – que se dá no mundo de nossos pensamentos, portanto, impossível de ser modificada em sua veracidade – e a aplicação – que é ato humano exteriorizado, isto é, vida humana objetivada -, demonstra-se que, ou a realidade social é diferente das normas prescritas, e então elas não representam com fidelidade os valores do grupo, ou o aparelhamento encarregado de realizar o direito é insatisfatório[37].

De todas as espécies de ineficácia da norma jurídica, Norberto Bobbio diz que as mais ineficazes são aquelas que são violadas sem que nem sequer seja aplicada a coação. Parece ser este o caso das normas jurídicas de proteção à propriedade intelectual no Brasil.

Como já discutido anteriormente, a valoração dos fatos da vida fez com que o legislador reconhecesse como valor digno de tutela jurídica a importância de se conservar, em favor do autor/inventor de obra intelectual, um conjunto de garantias que o permita explorar o bem de sua atividade intelectual-criativa durante determinado período de tempo. Dentre essas garantias, a que traz maior repercussão no campo do direito é a de exploração econômica de sua obra/invento com exclusividade.

Viu-se, também, que sob a dimensão normativa, essas mesmas regras jurídicas são válidas, não havendo qualquer mácula que as impeça de produzir seus efeitos.

Portanto, diante de normas justas e válidas, há de se observar que os destinatários, segundo a compreensão dos dados estatísticos apurados em pesquisa realizada para esse fim, descumprem reiteradamente as regras jurídicas de proteção aos direitos da propriedade intelectual ao adquirir produtos pirateados.

As justificativas para a aquisição de produtos falsificados são as mais variadas possíveis. Ainda de acordo com a pesquisa da FECOMERCIO/RJ[38], 97% das pessoas argumentaram que adquiriram produtos pirateados em razão do menor preço destes produtos; outros 7% afirmaram que esses produtos podem ser mais facilmente encontrados, enquanto 6% dizem que esses produtos chegam ao mercado antes mesmo que os originais.

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A rejeição dos destinatários dessas normas jurídicas ao seu mandamento é patente. Basta uma simples caminhada nos centros urbanos para que se perceba que os produtos piratas são vendidos em todos os lugares, não sendo incomum encontrar pessoas dos mais variados níveis de escolaridade e classes sociais adquirindo-os sem qualquer constrangimento, mesmo diante da consciência da ilicitude daquela conduta.

Nesta mesma esteira de pensamento, há de se observar que os órgãos públicos brasileiros que se encarregam da coibição dessa prática criminosa têm investido maciçamente em publicidade, num claro reconhecimento de que é preciso difundir entre as pessoas a consciência dos prejuízos acarretados com a reiteração desse costume.


6. Conclusões

A contrafação de obras artísticas, literárias ou científicas, além de outras, como as audiovisuais e fonográficas, além de produtos manufaturados que ostentam marca consagrada no mercado, tornou-se uma prática tão comum que já se incorporou à cena cotidiana dos centros urbanos brasileiros.

Por se tratar de um fenômeno relativamente recente, que ganhou corpo na esteira do desenvolvimento tecnológico e da facilitação dos meios de produção na sociedade contemporânea, somente agora o Estado tem envidado os esforços necessários à repressão a esta modalidade criminosa que, em números absolutos, já gera faturamento superior ao do tráfico de substâncias entorpecentes.

Partindo da premissa de que o sistema jurídico de proteção à propriedade intelectual já dispõe de normas jurídicas suficientes à coibição desta prática, impondo à coletividade de pessoas o dever de conduta de respeito aos bens da propriedade intelectual, resta a curiosidade de compreender o porquê destas regras não serem atendidas pela comunidade, e o que é pior, o porquê do Estado não exigir coercitiva e efetivamente o seu cumprimento.

Numa abordagem teórica de duas teorias do direito – a Teoria da Norma Jurídica de Norberto Bobbio e a Teoria do Fato Jurídico de Marcos Bernardes de Mello – possibilita-se alcançar uma compreensão da fenomenologia jurídica numa interpretação conglobante de suas dimensões: política, normativa e sociológica.

Após uma investigação sobre a dimensão política e normativa das regras jurídicas que compõem o sistema de proteção à propriedade intelectual no Brasil, não se pode afirmar que há qualquer vício de justiça ou de validade que possa comprometer a sua eficácia. Entretanto, quando a análise recai sobre o critério de valoração da eficácia, aqui compreendida como efetividade, também chamada de dimensão sociológica da norma jurídica, percebe-se que o valor consagrado pelo legislador nas referidas normas jurídicas, apesar de indiscutivelmente relevante para o desenvolvimento sócio-econômico e tecnológico do País, parece caminhar em descompasso com os costumes sociais.

Assim, seria esse o motivo pelo qual é possível afirmar que as normas jurídicas de proteção à propriedade intelectual no Brasil padecem de inefetividade, haja vista que há um nítido obstáculo à produção dos efeitos desejados pelo legislador em virtude da má recepção destas normas jurídicas pela coletividade a que se destina.


7. Referências Bibliográficas

BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. 3ª

 ed. revista. São Paulo: Edipro, 2005.

BOFF, Felipe. Os Piratas e o Crime Organizado. Veja.

São Paulo. 30 de abril de 2003. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/300403/p_100.html>. Acesso em: 10.02.2009.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. Senado Federal, 1988.

BRASIL. Lei n.º 9.279, de 14 de maio de 1996. Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9279.htm>. Acesso em: 10.02.2009.

BRASIL. Lei n.º 9.609, de 19 de fevereiro de 1998. Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9609.htm>. Acesso em: 10.02.2009.

BRASIL. Lei n.º 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9610.htm>. Acesso em: 10.02.2009.

BRASIL. Ministério da Justiça. Pirataria, O Crime do Século. Brasília, 2008. Disponível em: http://www.mj.gov.br/combatepirataria/data/Pages/MJ3E7529ECITEMID6F9F0D552AF 24645BE8111EFD24CD0DDPTBRIE.htm. Acesso em: 10.02.2009.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

FECOMERCIO/RJ. O Consumo de Produtos Piratas no Brasil. Rio de Janeiro. 10 de outubro de 2007. Disponível em: http://www.fecomercio-rj.org.br/publique/media/Pirataria_2007 .pdf. Acesso em: 10.02.2009.

Indústria tem Prejuízo de US$ 1,6 bi com Pirataria de Software no Brasil. Folha on line. São Paulo. 14.05.2008. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u 401923.shtml. Acesso em: 10.02.2009.

MALLMANN, Querino. A Natureza Jurídica do Direito da Propriedade Intelectual. Revista do Mestrado em Direito da Universidade Federal de Alagoas, v. n. 03, p. 8, 2008.

MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência. 14ª ed. revista. São Paulo: Saraiva, 2007.

SICHEL, Ricardo. O Direito Europeu de Patentes e Outros Estudos de Propriedade Industrial. Rio Janeiro: Lumen Juris, 2004.

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Sobre o autor
Fernando Antônio Jambo Muniz Falcão

advogado em Maceió (AL), professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FALCÃO, Fernando Antônio Jambo Muniz. A inefetividade das normas jurídicas que tutelam a propriedade intelectual no Brasil:: uma abordagem crítica do problema segundo as teorias de Norberto Bobbio e Marcos Bernardes de Mello. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3872, 6 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26649. Acesso em: 26 abr. 2024.

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