A evolução da organização social fez com que os indivíduos transmitissem ao Estado o exclusivo direito de editar regras positivas de conduta[1], normas legais, bem como suas devidas sanções[2]; contudo, os dirigentes desta instituição, vez por outra, esquecem os fins para os quais foram designados.
No Brasil, é clássico, prosperam o descumprimento das promessas de campanha, os interesses escusos e o desinteresse pelo planejamento e fiscalização eficaz das obras públicas. A exemplo – dentre os inúmeros – estão os chamados elefantes brancos, como a construção da fatídica “Ponte sobre o Rio Madeira” que não pode ser utilizada por falta de planejamento socioambiental e por que não dizer, atenção política adequada.
A obra está pronta, a ponte está concluída, mas não foi inaugurada porque não tem licença para efetivar a cabeceira da ponte (dada a necessidade de desapropriação das residências e dos estabelecimentos próximos); por enquanto, não passa de um enfeite sobre o leito do rio, um “grande elefante branco”. Não se pode trafegar porque o poder público esqueceu-se, num lapso, de pensar no que fazer com a população tradicional que vive na margem esquerda do Rio Madeira e, que por outro viés, tratando-se de entorno do rio, é área de preservação ambiental. Assim, sobrou vontade política no interesse de celebrar contratos bilionários a pretexto de escoamento de produção agrícola, não obstante, faltou em sobremedida, a Ética Pública consubstanciada na responsabilidade socioambiental. Cabe como uma luva o jargão: “Nem sempre o interesse do público é de interesse público[3]”.
Conceitualmente, para efeito de fixação do conhecimento-base, entenda-se “Ética Pública na responsabilidade social/ambiental” como o registro de que o direito deve se ajustar à alteridade, no mundo da vida, no agir político e no sistema jurídico. Conclui-se pela Ética Pública quando, em ação declarada do Estado Democrático de Direito Social, o direito se projeta do Poder Político com esta finalidade.
Também pode-se concluir que está em curso a almejada Justiça Política (em outras palavras, pode-se intuir que o Poder Político apropriou-se eficazmente da Ética para propugnar ações jurídicas/judiciais reparadoras de possíveis injustiças sistêmicas). Por definição, Ética Pública é Justiça. Contudo, para tal mister, é preciso aplicar a máxima de que a missão do direito é proteger o(a) Outro(a).
Se não há Ética Pública não há Justiça, uma vez que o Poder Político seria indutor de comportamento social errôneo e prejudicial à sociabilidade. Ademais, a recíproca é verdadeira. Por definição, o Estado Democrático de Direito Social também não pode se desvirtuar de seu objetivo preliminar, logicamente, ontologicamente, que é desenvolver, proteger e estimular os institutos de realização da Justiça Social.
A Justiça Política, sem dúvida, pressupõe que o Estado resulte em atividades de cunho ético. Não é um contrassenso, mas sim uma simetria da institucionalização dos meios de justiça. Historicamente e epistemologicamente, deve a Justiça ofertada pelo Estado afirmar-se como reserva dos Princípios Gerais do Direito; pois devemos pensar o Estado como realização da Política e do direito, traduzido na convivialidade.
Esta noção de Polis nunca será superada, se assim entendermos que o Estado é definido eticamente, a partir do conjunto de valores que melhor servem à sociabilidade. O Estado que não se organiza constitucionalmente a partir de valores humanos e com base na urbanidade e na convivialidade tenderá fatalmente à exceção e por isso a política surge desvirtuada e destinada ao que não deveria se prestar: como negação da condição humana (Arendt, 1991).
Institucionalmente, já vimos ao longo da história, o Estado pode ser prisioneiro da exceção; entretanto, se e quando aflora o desejo constitucional pela democracia, pela República e pelo respeito aos direitos humanos, é óbvio, o direito positivo, reflexo do Poder Político, não pode negar a plena eficácia da norma jurídica democrática e focada na Justiça Social.
Desde os primórdios da Filosofia Política, com Platão e Aristóteles, aprendemos que a política envolve prática e reflexão, e que seu aprendizado é uma somatória dessas duas dimensões inerentes à condição humana.
Se a política resulta na Polis e que, nada mais é do que a fermentação e a massa crítica que resultariam séculos adiante no Poder Político organizado, então, deveremos concluir que nunca se pensou, seriamente, na forma-Estado como aparelho de repressão, obstaculizando-se todo o processo civilizatório. Houve fases de contradição, de assimetria, de profundas divergências e engodos em nome da racionalidade política; no entanto, ontologicamente, o saldo é positivo quando confrontamos a regularidade crescente de uma perspectiva libertadora do direito e da política. O direito, em suma, é fator de racionalização e, em si, já sinaliza como linha reta do processo civilizatório.
Esta combinação entre direito e política, em favor da condição humana, precisa ser internalizada em todos os setores e atividades realizadas pelo poder público a fim de que se promova a Justiça Política que, em nosso caso, equiparamos à própria Ética Pública.
Não se pode esperar outro comportamento do Poder Político – na esfera do Estado Democrático de Direito – que não seja a defesa, o reconhecimento e a promoção do(a) Outro(a), como alteridade social que se vincula à Ética Pública que deve se espraiar na própria Razão de Estado. Na Justiça Política (Höffe, 2006) o Estado de Direito deve ser a principal ferramenta para a obtenção da Justiça.
A Ética Pública como responsabilidade social/ambiental implica na construção jurídica da alteridade política. A Justiça Política equivale ao direcionamento do Estado de Direito em direção da Justiça Social e, para tanto, é preciso que a ordem jurídica seja democrática e reta, isto é, o ordenamento jurídico não pode reter partes estranhas ao convívio ético.
A partir da premissa da Ética Pública, espera-se que a responsabilidade socioambiental seja preponderante, que os impasses políticos sejam pelo menos amenizados, as novas ações sejam sistematicamente discutidas de forma antecedente às ações e aos contratos públicos (licitações), permissões, concessões, parcerias público-privadas e demais empreendimentos de verdadeiro interesse público. E ao fim e ao cabo, se determinada parcela do Estado não for capaz de promover o agir ético, que a esfera jurídica estatal possa corrigir as idiossincrasias daqueles ensoberbados pelo poder, os que não se familiarizam com a verdadeira democracia e os fins que justificam a existência do Estado.
Sem a prática da Justiça Política (em que direito e Estado, como Estado de Direito, estejam apontados para o Justo), que o poder não mais disponha do direito.
Notas
[1] Na expressão do sociólogo Max Weber, o Estado detém o monopólio legítimo do uso da força física (violência).
[2] Aqui se trata de normas jurídicas positivadas pelo Estado, exclusivamente, uma vez que as regras sociais têm origem e expressão maior no âmbito das relações sociais. Portanto, há que se distinguir norma jurídica de regra social – inclusive porque podem estar em antagonismo.
[3] É de interesse do senso comum o agravamento das penas de prisão, especialmente aquelas aplicadas à corrupção, mas as punições pecuniárias eficientes seriam muito mais efetivas para o interesse público.