5. Responsabilidade do Estado por movimentos multitudinários
Em um contexto histórico, observa-se que na era do Absolutismo imperava a idéia de irresponsabilidade, pois o Estado era soberano e a figura do rei confundia-se com a do próprio Estado, aquele escolhido por Deus e dotado de poder e imunidade. Logo, os atos praticados por ele sempre eram tidos como justos.
Entretanto, após a Revolução Francesa passou-se a responsabilizar o Estado por atos ilícitos dos seus agentes e, posteriormente, até por atos lícitos.
A responsabilidade do Estado, ao longo do tempo, é explicada por diversas teorias que fundamentam a atuação estatal e regulam as suas conseqüências em dado momento histórico.
Em 1916, o Brasil promulgou o Código Civil, no qual instituiu a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público por atos ilícitos de seus representantes com base na teoria da culpa.
Porém, sob o risco de termos um direito engessado e injusto, foram surgindo novas teorias visando a dar um embasamento jurídico para as situações fáticas, adequando-se o direito à realidade social.
Foi assim que, em 1946, o Brasil consagrou a responsabilidade estatal na Constituição Federal, embasada na teoria objetiva, na modalidade do risco administrativo.
A partir desse momento, o lesado somente tinha que demonstrar o dano e o nexo de causalidade entre o dano sofrido e a conduta do agente estatal.
Surgiu, a partir desse momento, uma polêmica sobre a natureza jurídica da responsabilidade do Estado por conduta omissiva, pois para alguns doutrinadores a aplicação do dispositivo constitucional no que tange à responsabilidade estatal somente é devida em casos de condutas comissivas do Estado, com aplicação, para estas, do Código Civil brasileiro; enquanto, para outros, a responsabilidade promulgada na Carta Magna abrange as duas modalidades de condutas do Estado, pois o legislador não estabeleceu de forma expressa qual a conduta a que se referia, podendo-se entendê-la como sendo comissiva ou omissiva.
Esse segundo entendimento é o mais correto, pois a evolução histórica do instituto da responsabilidade civil nos demonstra que o direito tende a acompanhar as mudanças ocorridas na sociedade visando a dirimir os conflitos de acordo com a realidade social, de forma justa. Vale dizer: o direito é sábio na medida em que visa a harmonizar as relações jurídicas afetadas.
Dessa forma, o legislador, ao estabelecer a responsabilidade estatal na Constituição Federal, tinha como escopo retirar do lesado o ônus de comprovar a culpa do agente público, visto que o particular está em situação de desvantagem perante o Estado, porque muitas vezes não dispõe de recursos suficientes para demonstrar o elemento culpa na conduta danosa. Desse modo, fundamentou a responsabilidade do Estado na teoria objetiva, asseverando que a Administração Pública, ao exercer as suas atividades, cria um risco para os administrados e potencializa a eventual ocorrência de danos ao particular, causando uma desigualdade em face dos demais.
Partindo-se dessa premissa, nasceu a idéia da solidariedade no seio da sociedade, consubstanciada no princípio da Solidariedade Social e da Eqüidade: diante da desigualdade em que se encontra o particular perante a coletividade, todos devem concorrer para a reparação do dano por meio do erário.
A socialização do dano, associada à teoria do risco administrativo, foi o primeiro passo para o desenvolvimento da teoria do risco social, uma vez que esta não era suficiente para fundamentar a responsabilidade estatal em todos os casos em que o Estado tinha o dever de indenizar. Tal teoria inovou ao abranger os danos não imputáveis diretamente ao Poder Público, sob o argumento de que os prejuízos sofridos pelo particular não deviam ficar ao desamparo.
O movimento multitudinário é o caso típico de conduta danosa não perpetrada diretamente pelos agentes públicos, mas, ainda assim, ensejadora de responsabilidade do Estado.
Sendo assim, o particular que se encontra em situação de inferioridade perante o Poder Público tem o direito de reclamar a indenização de seus prejuízos, visto que é dever deste oferecer condições mínimas para que os cidadãos vivam com dignidade, bem como zelar pela tranqüilidade social.
O serviço público de segurança pública e de policiamento tem o caráter de essencialidade, devendo ser desenvolvido somente pelo Estado, de forma adequada e contínua, sendo considerada ilegal a sua paralisação, posto que é serviço obrigatório, de maneira que realmente atenda à sua finalidade precípua e às necessidades daquele ao qual o serviço se destina, pois da sua omissão ou inadequação podem resultar graves conseqüências, pondo em risco a integridade física e patrimonial do cidadão.
Portanto, não tendo o Estado prestado o serviço de policiamento adequado para evitar e coibir os movimentos multitudinários, faltando com o seu dever de garantir a segurança pública com os instrumentos de que dispõe a polícia, a responsabilidade do Poder Público frente a tais movimentos é patente.
5.1. Natureza jurídica da responsabilidade do Estado
A questão relativa à natureza jurídica da responsabilidade do Estado por conduta omissiva é polêmica, como é cediço. Alguns autores, capitaneados por Celso Antonio Bandeira de Melo, entendem que a responsabilidade seria subjetiva, dependente, pois, da prova da existência de culpa; outros, no entanto, dentre eles Toshio Mukai(20) e Odete Medauar(21), entendem que a responsabilidade seria sempre objetiva, desnecessária, em conseqüência, a prova da culpa.
Celso Antonio advoga a idéia de que a responsabilidade seria subjetiva porque o dano não seria – na hipótese de omissão – causado pelo agente estatal, e sim por terceiro. Logo, a conduta do agente não seria causa e sim mera condição do dano. Toshio Mukai, por seu turno, entende, a nosso ver acertadamente, que a omissão do agente é também causa, não mera condição. A causa do dano poderia, então, ser, indistintamente, a conduta comissiva, ou a omissiva, do agente estatal.
Os argumentos do grande mestre Celso Antonio, fulcrados na ensinança de seu pai, Osvaldo Aranha Bandeira de Melo, não podem subsistir ante a teoria das concausas: toda circunstância que de alguma forma contribui para o resultado é causa deste, não importa, aqui, se consistente em conduta comissiva ou omissiva. A Constituição Federal, no artigo citado, não diferenciou as duas condutas, quando poderia perfeitamente fazê-lo. Assim, o vocábulo "causarem", do citado dispositivo, deve ser lido como "causarem", por ação ou omissão.
Demais disso, quando se estudam as origens da responsabilidade do Estado, desde os primeiros casos decididos com base no direito administrativo, bem como sua evolução até os dias de hoje, em todos os lugares, verifica-se que aquela evoluiu da idéia de culpa para a idéia de risco. Primeiro, a teoria dos atos de império e de gestão; depois, a da culpa civilística; em seguida, a da faute du service; por fim, a do risco administrativo. Num primeiro momento, toda responsabilidade fulcrada na idéia de culpa - subjetiva; depois, baseada no risco - objetiva.
Entender-se que o legislador brasileiro, muito bem informado, à época, da evolução do instituto, teria recuado no tempo, estabelecendo a responsabilidade objetiva apenas para os casos de conduta comissiva, retroagindo, no que tange à omissiva, aos tempos da culpa civilística, seria demasiado. Aliás, a responsabilidade objetiva já vinha consagrada no direito brasileiro desde a Constituição Federal de 46 (artigo 194). Por que, então, o legislador constitucional, ao invés de avançar, teria preferido recuar, distinguindo as duas condutas? Qual o fundamento, legal, para a distinção?
Note-se que no que concerne ao agente estatal causador do dano o constituinte avançou substituindo a expressão "funcionário" por "agente", muito mais abrangente. Estendeu a responsabilidade também para os particulares prestadores de serviço público (a chamada desestatização apenas engatinhava). Ora, por que, então, no que tange à conduta do agente, aquele teria recuado cerca de um século, para, a par da responsabilidade objetiva, fixada para a conduta comissiva, estatuir a responsabilidade subjetiva em caso de conduta omissiva?
O que se pretendeu, com toda a evolução da responsabilidade do Estado, foi exatamente evitar que o lesado tivesse de provar a culpa do agente, nem sempre um exercício fácil. Por que o legislador, cônscio dessa evolução, teria marchado em ré? Especialmente quando ele mesmo, legislador constitucional, previu a responsabilidade objetiva, com o mesmo desiderato, para questões relacionadas com o meio ambiente e com os direitos do consumidor? Parece, tal conclusão, um contra-senso!
Daí porque ousamos discordar de grandes mestres que propõem, embora com argumentos sérios, a responsabilidade subjetiva quando se trate de conduta omissiva dos agentes estatais, para ficar com aqueles que a proclamam objetiva. A própria Sônia Sterman afirma que a responsabilidade do Estado decorrente de movimentos multitudinários é subjetiva; todavia, pelas razões antes expostas, entendemos que a autora, expoente no assunto, não está, neste particular, com a razão.
Os movimentos multitudinários são exemplo típico de responsabilidade objetiva do estado em razão de conduta omissiva. Veja-se que não se mostra viável a ocorrência de movimentos desse jaez praticados pelos próprios agentes estatais; estes tão somente atuam ou para debelar tais movimentos, evitando danos aos particulares, ou, devendo fazê-lo, se omitem. No primeiro caso, será responsabilidade objetiva – e nesse aspecto os doutos não divergem – porque o dano teria sido causado diretamente pelo agente estatal, não obstante no exercício do poder de polícia. Porém, no caso de o agente estatal se omitir, quando devia atuar, a responsabilidade, para aqueles mesmos autores, seria subjetiva porquanto, nesse caso, a conduta (omissiva) do agente não teria sido causa, mas mera condição, do dano, praticado diretamente por terceiro. Não se vê qualquer razão para distinguir as duas situações. Num caso, o agente causou o dano; no outro, deixou de atuar, devendo fazê-lo, dando ensejo a que o dano ocorresse – deu-lhe causa, portanto. Não existe razão, de ordem lógica ou legal, para que se faça distinção entre as duas modalidades de conduta (comissiva ou omissiva) para o efeito de responsabilização do estado.
É verdade que o elemento subjetivo (culpa) pode ser discutido, mas apenas como eventual excludente da responsabilidade do Estado; não como elemento essencial para sua incidência. Sobre as excludentes já falamos no item 3.4, supra (colocar isso como nota de rodapé no momento da formatação).
6. Conclusões
O Estado tem o dever, constitucionalmente estabelecido, de manter a ordem pública e a segurança de todos os cidadãos, devendo empregar todos os meios suficientes e idôneos para garantir a paz púbica e a integridade de todos.
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Os movimentos multitudinários, diversamente dos demais movimentos mencionados, possuem características peculiares e imprescindíveis para que se configurem como tal e ensejem a responsabilidade do Estado. São elas: devem ser praticados por um grupo indeterminado de pessoas, em caráter reivindicatório, embasados em um contexto social, com fins convergentes, e, ao exteriorizarem seu manifesto, causam danos a particulares, praticando uma conduta penal que, se fosse analisada individualmente, seria o transgressor punido com as sanções previstas na lei penal de acordo com a conduta típica praticada.
Se, diante da eclosão de tais movimentos, o Estado deixar de empregar todos os meios necessários para prevenir danos a bens e à integridade física dos cidadãos, garantindo a paz púbica, quando isso era possível, responderá pelos danos daí advenientes por meio do erário.
O fundamento da responsabilidade estatal objetiva está no princípio da solidariedade social e da igualdade de encargos.
Tal instituto evoluiu desde a sua origem, tomando uma feição mais moderna e justa na medida em que, adotando-se a teoria da responsabilidade objetiva para os casos de conduta comissiva na Constituição Federal, retirou-se da parte mais frágil da relação jurídica – o lesado - o ônus de provar a culpa estatal.
A responsabilidade do Estado será sempre objetiva, qualquer que seja a natureza da conduta (comissiva ou omissiva), de seus agentes, no sentido amplo do termo, bastando ao particular somente fazer a prova do dano, da conduta danosa e do nexo de causalidade para se ver ressarcido dos prejuízos suportados.
O Estado, para elidir tal responsabilidade, deverá fazer prova de que o dano foi ocasionado por força maior, caso fortuito, estado de necessidade ou culpa exclusiva da vítima ou de terceiro.
NOTAS
1.JORGE, Fernando de Sandy Lopes Pessoa. Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 1995, p. 36.
2.DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 9.ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 501.
3.Idem, ibidem, p. 500.
4.MUKAI, Toshio. Direito administrativo sistematizado. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 530.
5.DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 508.
6.MUKAI, Toshio. Op. cit, p. 533.
7.TELLES, Antônio A. Queiroz. Introdução ao direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 422.
8.STERMAN, Sônia. Responsabilidade do Estado: movimento multitudinário: saques, depredações, fatos de guerra, revoluções, atos terroristas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p.10.
9.Idem, ibidem, p. 23.
10.CRETELLA JÚNIOR, José. O Estado e a obrigação de indenizar. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 224.
11.OLIVEIRA, Elias. Criminologia das multidões: crimes de rixa e crimes multitudinários. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1966, p. 04.
12.STERMAN, Sônia. Op. cit., p. 76.
13.Idem, ibidem, p. 80.
14.Apud, idem, ibidem, p. 81.
15.Apud STERMAN, Sônia, op cit., p. 101.
16.Idem, ibidem, p. 134.
17.STERMAN, Sônia. Op. cit., p. 47.
18. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 142.
19.Idem, ibidem, p. 143.
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20.MUKAI, Toshio. Direito administrativo sistematizado. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 105.
21.MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 4. Ed. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 430.