3. Problemas na aplicação da Lei Maria da Penha
A partir do exame das entrevistas realizadas com profissionais que atuam no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, fez-se uma análise da aplicação da Lei nº 11.340 e, então, foram identificados diversos problemas que dificultam o combate a essa violência.
A Lei Maria da Penha não definiu um procedimento específico para a aplicação das medidas protetivas de urgência. Cada juiz tem aplicado conforme a sua interpretação e, como os entendimentos não são consensuais, não há uma uniformidade, o que gera insegurança jurídica. Não foi definida por essa lei a natureza jurídica das medidas protetivas, se elas têm caráter de cautelar (sentido jurisprudencial dominante), exigindo ajuizamento de processo principal. Entendendo que há a necessidade de ajuizamento, surge outra dúvida: se o processo principal seria cível ou criminal. Há juízes que concebem essas medidas como de caráter acessório à ação principal. Já outros entendem que são de caráter satisfativo, isto é, encerram, por si mesmas e por sua natureza, o intento almejado, sem depender de qualquer outra ação.
Em consequência da não definição da natureza jurídica das medidas protetivas pela Lei Maria da Penha, ficam indefinidos assuntos como: o quanto duram as medidas protetivas; a perda de eficácia pelo fato de ação principal não ter sido ajuizada; qual recurso (a apelação, o agravo de instrumento, o habeas corpus ou o recurso em sentido estrito) pode ser interposto à decisão que determina a aplicação da medida de proteção; a competência para apreciar o recurso (quais câmaras dos Tribunais de Justiça: as cíveis ou as criminais); as consequências da não obediência da ordem.
A respeito da audiência prevista, no art. 16 da Lei nº 11.340, há dissenso entre os juízes em relação à questão de se essa audiência é ou não obrigatória. Há um enunciado do Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (FONAVID) que trata desse assunto (enunciado 4): “A audiência prevista no artigo 16 da Lei nº 11.340/06 é cabível, mas não obrigatória, somente nos casos de ação penal pública condicionada à representação, independentemente de prévia retratação da vítima.” (FÓRUM NACIONAL DE JUÍZES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER, 2011). Outra questão sobre a qual há dissenso entre os juízes é o destino do processo, caso a ofendida não compareça à audiência: o arquivamento (o não comparecimento da mulher implicaria a sua renúncia tácita no sentido de não desejar que o processo tenha continuidade) ou o prosseguimento. O enunciado 19 do FONAVID discorre acerca disso: “O não-comparecimento da vítima à audiência prevista no art. 16 da Lei nº 11.340/06 tem como consequência o prosseguimento do feito.” (FÓRUM NACIONAL DE JUÍZES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER, 2011). É necessário ressaltar que os enunciados do FONAVID não apresentam efeito vinculante, e sim servem apenas como uma orientação, uma diretriz para os juízes de como aplicar a Lei Maria da Penha. Tais dissensos, assim como a questão da natureza jurídica das medidas protetivas, geram insegurança jurídica.
Outro ponto questionável que também resulta em insegurança jurídica é o papel da Defensoria Pública na defesa da mulher. O art. 28 da Lei nº 11.340/06 garante que toda mulher vítima de violência doméstica e familiar pode fazer uso dos serviços da Defensoria Pública ou da Assistência Judiciária Gratuita. Usando o argumento de que essa lei não restringe esse acesso, com base na situação econômica da mulher, há juízes que, em todos os processos de violência doméstica, designam a Defensoria Pública para fazer o acompanhamento da mulher independentemente de sua condição financeira. O entendimento desses juízes é no sentido de que a defesa dos financeiramente hipossuficientes é a função típica da Defensoria Pública, enquanto a defesa da mulher vítima desse tipo de violência, independentemente de sua condição financeira, dá-se em virtude da existência de vulnerabilidade jurídica (no tocante ao acesso à justiça e ao exercício da cidadania) e constitui uma das funções atípicas da DP, tais como a defesa da criança e do adolescente, do idoso e do consumidor, que, assim como as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, constituem grupos organizacionalmente hipossuficientes. Os defensores não se opõem à defesa da mulher na esfera criminal. Entretanto, a defesa, na esfera cível, da mulher pela DP é bastante questionada por defensores, tendo em vista que a Constituição Federal, em seu art. 134, determina que a Defensoria Pública é responsável pela orientação jurídica e pela defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da CF/88 (os que comprovarem ser desprovidos de recursos para pagar advogado e os gastos de uma postulação ou defesa em processo judicial, extrajudicial ou de um aconselhamento jurídico).
Outro problema que se percebe, na aplicação da Lei Maria da Penha, é a morosidade do judiciário, a qual está associada ao número insuficiente de funcionários para atender a demanda dos processos. Como consequências da demora no andamento dos processos, a ofendida fica mais exposta à agressão e ainda pode haver a prescrição da ação, o que dificulta o enfrentamento à violência aqui discutida.
Somam-se a esses outros problemas a precária aplicação das Políticas Públicas previstas na Lei Maria da Penha, por exemplo, são necessários: mais estudos e pesquisas sobre todas as questões associadas à violência doméstica e familiar contra a mulher; a intensificação da promoção de campanhas educativas direcionadas à educação popular no tocante à violência aqui discutida; a reversão do quadro de precária preparação especial (que, inclusive, pode nem existir) à qual são submetidos os profissionais que trabalham no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher (profissionais das DEAMs, do Centro de Referência, da Casa-abrigo, do Juizado, da Defensoria Pública, do Ministério Público). Essa preparação especial diz respeito às discussões acerca de gênero, sobre esse tipo particular de violência (o qual, como já foi ressaltado, em regra, diferencia-se dos demais pela existência de vínculo afetivo entre a vítima e o agressor) e acerca da própria Lei Maria da Penha, discussões essas que têm como intuito aprimorar o atendimento às mulheres, e, assim, aumentar a eficácia do combate à violência em questão. Além disso, ainda há o problema de alguns dos profissionais que trabalham nesse enfrentamento serem insensíveis à causa e que, consequentemente, não se engajam verdadeiramente na luta contra essa violência.
Em adicional, os diversos fatores que desestimulam a ofendida a denunciar constituem uma outra dificuldade ao enfrentamento à violência em questão. Tais fatores são, entre outros: ameaça, medo de uma possível retaliação por parte do agressor; receio da perda da guarda dos filhos (várias mulheres temem que seus maridos busquem a guarda dos filhos como uma forma de vingança por elas o terem denunciado); dependência financeira em relação ao agressor; a partilha dos bens; temor de processar o (ex-)cônjuge, o (ex-)namorado ou o filho e depois se arrepender pelo fato de o delito constar na ficha criminal do agressor ou o medo de o filho, o (ex-)marido ou o (ex-)namorado acabar sendo preso; a própria mentalidade machista de algumas mulheres, de que elas devem ser submissas e obedientes ao marido; receio da mulher de se expor para a sociedade (bastante comum entre mulheres de classe social mais elevada).
Tendo em vista o grave problema de grande parte das ofendidas desistirem do processo, não representando ou afastando a representação anteriormente feita, é relevante destacar a recente decisão do STF, segundo a qual, nos casos de lesão corporal decorrente de violência doméstica contra a mulher, é cabível ação penal pública incondicionada. Assim, o Ministério Público, nesses casos, oferece a denúncia sem necessitar de representação da ofendida. Todavia, na decisão, ressaltou-se a permanência da necessidade de representação para os casos de crimes dispostos em leis diversas da Lei nº 9.099/95, por exemplo, o crime de ameaça e os praticados contra a dignidade sexual.
Consta, no Informativo STF nº 654, que, na citada decisão do Supremo Tribunal Federal, que se deu, no dia 9 de fevereiro de 2012,
No mérito, evidenciou-se que os dados estatísticos no tocante à violência doméstica seriam alarmantes, visto que, na maioria dos casos em que perpetrada lesão corporal de natureza leve, a mulher acabaria por não representar ou por afastar a representação anteriormente formalizada. A respeito, o Min. Ricardo Lewandowski advertiu que o fato ocorreria, estatisticamente, por vício de vontade da parte dela. Apontou-se que o agente, por sua vez, passaria a reiterar seu comportamento ou a agir de forma mais agressiva. Afirmou-se que, sob o ponto de vista feminino, a ameaça e as agressões físicas surgiriam, na maioria dos casos, em ambiente doméstico. Seriam eventos decorrentes de dinâmicas privadas, o que aprofundaria o problema, já que acirraria a situação de invisibilidade social. Registrou-se a necessidade de intervenção estatal acerca do problema, baseada na dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), na igualdade (CF, art. 5º, I) e na vedação a qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (CF, art. 5 º, XLI). Reputou-se que a legislação ordinária protetiva estaria em sintonia com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher e com a Convenção de Belém do Pará. Sob o ângulo constitucional, ressaltou-se o dever do Estado de assegurar a assistência à família e de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Não seria razoável ou proporcional, assim, deixar a atuação estatal a critério da vítima. A proteção à mulher esvaziar-se-ia, portanto, no que admitido que, verificada a agressão com lesão corporal leve, pudesse ela, depois de acionada a autoridade policial, recuar e retratar-se em audiência especificamente designada com essa finalidade, fazendo-o antes de recebida a denúncia. Dessumiu-se que deixar a mulher – autora da representação – decidir sobre o início da persecução penal significaria desconsiderar a assimetria de poder decorrente de relações histórico-culturais, bem como outros fatores, tudo a contribuir para a diminuição de sua proteção e a prorrogar o quadro de violência, discriminação e ofensa à dignidade da pessoa humana. Implicaria revelar os graves impactos emocionais impostos à vítima, impedindo-a de romper com o estado de submissão. (BRASIL, 2012).
Conclusão
A violência doméstica e familiar constitui um preocupante problema bastante frequente no Brasil e, como artifício de suma importância no combate a esse problema, desponta a Lei Maria da Penha. Para o efetivo enfrentamento dessa violência, são fundamentais a discussão acadêmica e o debate público acerca da questão. Além de propagar valores éticos de respeito à dignidade da pessoa humana e à igualdade de gênero, buscando, assim, a consolidação da democracia, nas relações de gênero, é necessário difundir, por toda a sociedade, o conhecimento sobre a Lei nº 11.340 e os demais mecanismos de proteção dos direitos humanos da mulher.
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