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A Constituição de 1988: admirável Brasil novo

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5. Admirável constitucionalismo novo

O último quartel do século XX e a primeira década do XXI é o despontar de uma nova era para o constitucionalismo (leia-se também direito). O Pós-Positivismo emerge e leva junto um neoconstitucionalismo, no qual se busca atrelar a ideia de constitucionalidade não somente à limitação do poder político, mas também à noção de eficácia constitucional, deixando ela de ser um texto meramente retórico para tornar-se concretizador dos direitos fundamentais dos cidadãos[30].

O constitucionalismo contemporâneo adotou o totalitarismo constitucional, que é o texto constitucional recheado de normas programáticas de conteúdo social. Outra característica, já tangenciando o neoconstitucionalismo, é a garantia dos ditos “direitos de terceira geração”, os quais são a solidariedade e a fraternidade. Portanto, o “constitucionalismo do futuro”, como alude Pedro Lenza, procura criar um Estado Democrático Constitucional Social de Direito. Um realmente admirável constitucionalismo.

Esse Estado teria três características[31]. A primeira é a superação da ideia de Estado Legislativo de Direito, passando a Carta Magna ao centro do sistema normativo, pondo-lhe intensa carga valorativa. A ação dos Poderes Públicos e a interpretação/aplicação das leis e códigos deverá está em consonância com o espírito axiológico e formal da Constituição. A Carta, portanto, teria um valor de norma jurídica (não “mero pedaço de papel”, como disse Ferdinand Lassale[32]), que seria imperativa, superior e central no ordenamento jurídico e político.

Outro ponto é o conteúdo axiológico da Carta: ela passa a abandonar o mero formalismo e adotar, realmente, uma opção política e conjunto de valores a serem preservados na sociedade. Busca também a concretização desses valores cultivados pelo texto constitucional. Muitas vezes, decerto, eles encontram-se em conflito, mas cabe aos operadores do direito interpretá-los e harmonizá-los.   

Há no neoconstitucionalismo, também, marcos fundamentais históricos, filosóficos e teóricos[33]. O marco fundamental histórico refere-se a quando o neoconstitucionalismo foi erguido, no Pós-Guerra, com a implantação de Constituições e Tribunais Constitucionais. O marco filosófico refere-se à queda, já aqui abordada, do jusnaturalismo e juspositivismo, sendo que o neoconstitucionalismo está fazendo uma “síntese” das duas correntes: busca ir além da legalidade estrita, sem abandonar o direito posto; e busca uma aproximação entre o Direito, a Moral, a Ética e a Justiça, não calcado em critérios metafísicos.

Por fim, há o marco teórico, que afirma a força normativa das constituições, a qual detém imperatividade e torna-se o centro dos sistemas político-jurídico das nações. Os meios para a constitucionalização dos direitos fundamentais e do câmbio de consideração das Cartas, tornando elas normas imperativas são as regras e os princípios, os quais, segundo Luis Roberto Barroso, criam uma nova dogmática de interpretação constitucional, além da hermenêutica constitucional tradicional[34].

Há uma grande, intensa e debatida diferenciação entre regras e princípios[35]. É preciso estabelecer que não há hierarquia entre as regras e os princípios. Um sistema composto somente por princípios seria demasiado flexível, sem um guia concreto para as ações e destituído de segurança jurídica. Por outro lado, um sistema só com regras seria assaz rígido, onde não haveria abertura para a moldação das normas aos casos (o cume do pensamento legalista). Cada espécie normativa constitucional, portanto, desempenha um papel no sistema e, para harmonizá-lo, é dependente da outra.

Existem várias classificações para a diferenciação de princípios e regras. O jusfilósofo alemão Robert Alexy afirma que regras são “normas que são sempre satisfeitas ou não. Se a regra vale, deve se fazer exatamente aquilo que ela diz”, enquanto princípios seriam “normas que ordenam que algo seja realizado na medida do possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são (...) caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados” [36].

Já o jurista português João Canotilho afirma que os princípios são normas com elevado grau de abstração; que eles são vagos e precisam de medidas concretizadoras oriundas dos operadores do direito e são fundamento das regras. Estas, por sua vez, são reduzidamente abstratas, susceptíveis a uma aplicação direta ao caso concreto e calcadas nos princípios – seriam “os princípios já interpretados”[37].Barroso resume: às regras, vale o princípio do tudo ou nada: ou elas são aplicadas integralmente ou não. Já os princípios são poderados e aplicados em diferentes níveis ao caso. Porém, já se discute a possibilidade de, em alguns casos, inverter a ordem das aplicações.


6. Por fim: a Constituição Cidadã – o corolário da democracia em 1988

Eram tempos eufóricos, todos estavam entorpecidos pela saída do autoritarismo. Esse espírito refletiu-se na Constituinte de 1988. Quando aprovada, em cinco de outubro, a nova Carta Magna brasileira era peculiar: com 245 artigos, ela estava na contramão dos ditames do neoliberalismo mundo afora. Enquanto o menu do Estado neoliberal era o apaziguamento da assistência social e a diminuição da regulamentação, a Carta de 1988 justamente aumentou a cobertura social do Estado, afastando-se léguas daquele receituário.[38]

A Constituição, apelidada de Cidadã pelo caráter social, seguiu os preceitos do constitucionalismo contemporâneo e do neoconstitucionalismo. A intenção desta Carta foi realmente criar um Estado Democrático Constitucional Social de Direito, com o totalitarismo constitucional, mas também contando com meios para atingir os escopos sociais. À revelia de ser chamada de “constituição programática”, ela propõe também em seus artigos os meios para atingir e consolidar as garantias individuais, sociais, políticas e trabalhistas.   

Esses direitos são arrolados logo no começo da Carta. O “capítulo-magno” é o 5°, que, em 78 incisos, garante os direitos individuais dos cidadãos. Após, temos o 6°, garantindo os direitos sociais, os quais são “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. E o 7°, que celebram os direitos trabalhistas. No âmbito dos direitos políticos, pela primeira vez os analfabetos podiam votar. O art. 14 consagra o voto obrigatório para todos os maiores de 18 anos, aumentando o eleitorado do país e, consequentemente, a cidadania.

O caráter cidadão dessa constituição se mostra justamente em sua organização: enquanto nas demais sempre os primeiros artigos tratavam da organização do Estado, nessa aos primeiros artigos são relegados aos direitos do cidadão. Nada melhor para uma Constituição que foi criada no calor de um espírito – para alguns, um torpor – democrático. Desde o direito a uma saúde universal e gratuita até a regulamentação da taxa de juros anual, a Carta de 1988 almejava ser cidadã e protetora de todos brasileiros[39].

A Constituição de 88 toma o centro do sistema político e jurídico do país, em lugar do Código Civil. As ações do poder público passaram a se calcar na Carta, assim como as interpretações e aplicações dos Códigos. Apesar de o Código Civil e Penal serem muito mais antigos que a Carta, eles tiveram, também, de embasarem-se nela na medida do possível. Tanto que, pelo anacronismo, ambos foram reformados: o novo Código Civil foi sancionado em 2002, e o anteprojeto do novo Código Penal está em trâmite no Senado. É o Brasil adaptando-se a uma Carta Cidadã para – oxalá! – possamos no futuro ter realmente uma democracia constitucional social[40].


7. Bibliografia

Bibliografia primária:

BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro. Revista Diálogo Jurídico. Ano I, n° 6, setembro de 2001. Salvador.

Bibliografia secundária

ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional. Saraiva: Recife, 2010, p. 216-7.

ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica. 4. ed. Recife: Saraiva, 2010, p. 144-5.

BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legalidade democrática. OAB. Disponível em: http://tinyurl.com/kwrdv67. Acesso dia 01/09.

BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi. Disponível em: http://migre.me/fVgxW. Acesso dia 01/09.

BULOS, Uadi Lammêgo. Vinte anos da Constituição de 1988. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1922. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/11798. Acesso em: 19 ago. 2013.

CAMPOS, Flavio de. MIRANDA, Renan Garcia. A escrita da história. 1. ed. São Paulo: Escala Educacional, 2005, p. 629.

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 48-9.

GARATTONI, Bruno. NOGUEIRA, Salvador. Vida artificial. Revista Superinteressante. Julho de 2010, disponível em: http://migre.me/fUQMC. Acesso dia 31/08.

JANSEN, Rebeca. Cientistas americanos conseguem clonar embriões humanos. O Globo. Disponível em: http://migre.me/fUQS3. Acesso dia 31/08.

KANAAN, Hanen. O fim da história e o último homem. Maio de 2005. Disponível em: http://migre.me/fUUWX. Acesso dia 01/09.

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 171.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 59.

LASSALE, Ferdinand. O que é uma constituição. Trad. Walter Stönner. Disponível em: http://migre.me/fVgcJ, p. 30. Acesso dia 01/09.

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado do bem estar social ou Estado social?. Jus Navigandi. Disponível em: http://migre.me/fURRK. Acesso dia 01/09.

OLIVIERI, Antonio Carlos. Positivismo: Ordem, progresso e a ciência como religião da humanidade. Uol educação. Disponível em: http://migre.me/fVcBj. Acesso dia 01/09.

OSTOWIECKI, Alexandre. FADER, Renato. Carregando o Elefante: como fazer do Brasil o país mais rico do mundo. São Paulo: Hemus, 2008, p. 30. Disponível em: http://migre.me/fUT3N.

PAREJO, Luis. Neoliberalismo: entenda a doutrina econômica capitalista. Uol Educação. Disponível em: http://migre.me/fUSVl. Acesso dia 01/08.

PEREIRA, Elson Souza. Crise de 2008: o neoliberalismo em xeque. Alagoinhas: Faculdade Santíssimo Sacramento, 2009, passim. Disponível em: http://migre.me/fVrr5. Acesso dia 02/09.

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PFORDTEN, Dietmar von der. O que é Direito? Meios e Fins. Revista Brasileira de Filosofia. São Paulo, v. 238, n. 61, p. 191-222. Jan.-jun. 2012, p. 27.

WEFFORT, Francisco C. Clássicos da Política. 13. ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 62.

WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2. ed. Porto Alegre: 1995, p. 54.


Notas

[1]  PEREIRA, Elson Souza. Crise de 2008: o neoliberalismo em xeque. Alagoinhas: Faculdade Santíssimo Sacramento, 2009, passim. Disponível em: http://migre.me/fVrr5. Acesso dia 02/09.

[2]  Considerações inspiradas em CAMPOS, Flavio de. MIRANDA, Renan Garcia. A escrita da história. 1. ed. São Paulo: Escala Educacional, 2005, p. 629.

[3]  Idem, ibidem, p. 630.

[4] GARATTONI, Bruno. NOGUEIRA, Salvador. Vida artificial. Revista Superinteressante. Julho de 2010, disponível em: http://migre.me/fUQMC. Acesso dia 31/08.

[5] JANSEN, Rebeca. Cientistas americanos conseguem clonar embriões humanos. O Globo. Disponível em: http://migre.me/fUQS3. Acesso dia 31/08.

[6] MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado do bem estar social ou Estado social?. Jus Navigandi. Disponível em: http://migre.me/fURRK. Acesso dia 01/09.

[7] CAMPOS, Flavio de. MIRANDA, Renan Garcia. Op. cit., p. 636-7.

[8] PAREJO, Luis. Neoliberalismo: entenda a doutrina econômica capitalista. Uol Educação. Disponível em: http://migre.me/fUSVl. Acesso dia 01/08.

[9]  KANAAN, Hanen. O fim da história e o último homem. Maio de 2005. Disponível em: http://migre.me/fUUWX. Acesso dia 01/09.

[10]  BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legalidade democrática. OAB. Disponível em: http://tinyurl.com/kwrdv67. Acesso dia 01/09.

[11] OSTOWIECKI, Alexandre. FADER, Renato. Carregando o Elefante: como fazer do Brasil o país mais rico do mundo. São Paulo: Hemus, 2008, p. 30. Disponível em: http://migre.me/fUT3N.

[12] ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica. 4. ed. Recife: Saraiva, 2010, p. 144-5.

[13]  Idem, ibidem, p. 169.

[14]  HOBBES, Thomas. Leviatã. Apud WEFFORT, Francisco C. Clássicos da Política. 13. ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 62.

[15] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 48-9.

[16] ADEODATO, João Maurício. Ética... cit., p. 179.

[17]  ADEODATO, João Maurício. Ética... cit., p. 171-2.

[18]   WARAT, Luis Alberto. O direito e sua liguagem. 2. ed. Porto Alegre: 1995, p. 54.

[19] Idem, ibidem, pp. 53-4.

[20]  Idem, ibidem, p. 148-9.

[21]   Evolução do Jusnaturalismo contada por ADEODATO, João Maurício. Ética... cit., pp. 126-31.

[22]  WEFFORT, Francisco C. Clássicos da Política. 13. ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 70.

[23]  FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 171 e 174.

[24] João Maurício. Ética... cit., p. 130-1.

[25] OLIVIERI, Antonio Carlos. Positivismo: Ordem, progresso e a ciência como religião da humanidade. Uol educação. Disponível em: http://migre.me/fVcBj. Acesso dia 01/09.

[26]  ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional. Saraiva: Recife, 2010, p. 216-7.

[27] KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 171.

[28] PFORDTEN, Dietmar von der. O que é Direito? Meios e Fins. Revista Brasileira de Filosofia. São Paulo, v. 238, n. 61, p. 191-222. Jan.-jun. 2012, p. 27.

[29] Ambos foram nomeados chefes de governo nos seus respectivos países. Cf. CAMPOS, Flavio de. MIRANDA, Renan Garcia. A escrita da história. 1. ed. São Paulo: Escala Educacional, 2005, p. 471 e 474.

[30]  LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 59.

[31]  Idem, ibidem, p. 61-2.

[32]  LASSALE, Ferdinand. O que é uma constituição. Trad. Walter Stönner. Disponível em: http://migre.me/fVgcJ, p. 30. Acesso dia 01/09.

[33]  LENZA, Pedro. Op. Cit., p. 62-4.

[34]  BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi. Disponível em: http://migre.me/fVgxW. Acesso dia 01/09.

[35] LENZA, Pedro. Op. Cit., p. 137-141.

[36] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Apud Idem, ibidem, p. 140.

[37] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Apud Idem, ibidem, p. 138-9.

[38] ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. Direitos sociais, organização de interesses e corporativismo no Brasil. Apud CAMPOS, Flávio de. MIRANDA. Op. cit., p. 618.

[39] BULOS, Uadi Lammêgo. Vinte anos da Constituição de 1988. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1922. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/11798. Acesso em: 19 ago. 2013.

[40]  Idem, ibidem.

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Sobre o autor
Higor Alexandre Alves de Araújo

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Higor Alexandre Alves. A Constituição de 1988: admirável Brasil novo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3923, 29 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27221. Acesso em: 23 nov. 2024.

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