2 . As pessoas jurídicas e os direitos e garantias fundamentais
Percebe-se, então, após a leitura do arrazoado em apreço, que os direitos e garantias fundamentais guardam estreita relação com o ser humano, assunto que não é objeto de grandes dúvidas e questionamentos. Todavia, provoca interesse saber se tais garantias também se aplicariam as pessoas coletivas e o tratamento jurídico conferido ao tema. Nesse sentido, insta invocar lição doutrinária, consoante a qual “não resta dúvida de que todos os seres humanos são titulares de direitos fundamentais. Pode-se indagar, porém, se apenas as pessoas físicas protagonizam tais direitos”.[25]
De fato, o alcance dos direitos e garantias fundamentais resta muito bem delimitado no que tange às pessoas físicas, não só porque o próprio caput do artigo 5º faz expressa menção aos brasileiros e estrangeiros, mas também pelo conteúdo do seu extenso rol que remete claramente aos seres humanos. Cabe, no entanto, verificar se os entes coletivos também seriam destinatários da proteção constitucional, e, em caso positivo, delinear os contornos referentes à incidência dela sobre eles.
Destaque-se, de início, que se por um lado, os direitos e garantias fundamentais tiveram, na origem, as pessoas físicas como destinatárias da sua proteção, por outro, não é errado afirmar que tal concepção sofreu alterações ao passar dos anos. Com efeito, situações pontuais deflagraram novos papeis aos direitos fundamentais, deferindo às pessoas jurídicas, em determinados casos, a legítima invocação da sua proteção.
Cumpre, porém, previamente ao exame central do assunto, traçar breve panorama jurídico sobre as pessoas coletivas, com objetivo de pesquisar suas particularidades frente as pessoas físicas, e assim, precisar quais direitos caberiam aos primeiros e quais seriam de titularidade desses últimos.
Com tal objetivo, é interessante registrar lição de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho sobre a finalidade e a necessidade da constituição de pessoas jurídicas pelo homem: [26]
“O Estado, as associações, as sociedades, existem como grupos constituídos para a realização de determinados fins. A personificação desses grupos, todavia, é construção da técnica jurídica, admitindo que tenham capacidade jurídica própria. (...) Ora, da análise desses dois dispositivos [18 do Código Civil de 1916 e 45 do Código Civil de 2002], nota-se que a personificação da pessoa jurídica é, de fato, construção da técnica jurídica, podendo, inclusive, operar-se a suspensão legal dos seus efeitos, por meio da desconsideração, em situações excepcionais admitidas por lei.”
Veja-se, a respeito, a lição de Francisco Amaral:[27]
“Conclui-se, portanto, que o direito permite a formação de centros unitários de direitos e deveres que, à semelhança das pessoas naturais, são dotados de personalidade jurídica para servir aos interesses dos seres humanos. Com uma diferença porém. Nas pessoas físicas, a sua personalidade jurídica é autônoma e original, no sentido de que é inerente ao ser humano como atributo de sua dignidade pessoal, enquanto nas pessoas jurídicas, ou coletivas, ela é meramente instrumental e derivada ou adquirida, meio de realização de infinita variedade dos interesses sociais.”
Acerca do assunto, cabe, ainda, anotar a existência de divergência doutrinária concernente as teorias aplicáveis acerca da existência das pessoas jurídicas. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, ao enfrentarem o tema, ensinam que o nosso ordenamento jurídico acolheu a teoria da realidade técnica.[28]
De forma mais abrangente, Francisco Amaral disserta sobre duas grandes correntes doutrinárias, a saber, a da ficção e a da realidade, que cuidam da existência das pessoas jurídicas. O citado autor também se filia à teoria da realidade técnica, acerca da qual, pontua o seguinte:[29]
“Para tal concepção a pessoa jurídica resulta de um processo técnico, a personificação, pelo qual a ordem jurídica atribui personalidade a grupos em que a lei reconhece vontade e objetivos próprios. As pessoas jurídicas são uma realidade, não ficção, embora produto da ordem jurídica. Sendo a personalidade, no caso, um produto da técnica jurídica, sua essência não consiste no ser em si, mas em uma forma jurídica, pelo que se considera tal concepção como formalista. A forma jurídica não é, todavia, um processo técnico, mas a ‘tradução jurídica de um fenômeno empírico’, sendo a função do direito apenas a de reconhecer algo já existente no meio social. (...)
O direito brasileiro adota a teoria da realidade técnica na disciplina legal da matéria, como se depreende do art. 45 do Código Civil.”
As lições acima demonstram que o ente coletivo é produto do direito e possui personalidade jurídica, conforme se depreende do próprio art. 985 do Código Civil, segundo o qual “A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos”. O diploma em referência, aliás, veio a inaugurar novos contornos acerca do assunto, ao reconhecer às pessoas jurídicas o direito de personalidade, na forma do art. 52 do citado diploma.[30] Referidas inovações trouxeram à baila, a despeito da literalidade da lei, relevantes discussões sobre ter a pessoa jurídica direitos à personalidade, consoante se verifica pelo enunciado 286 da IV Jornada de Direito Civil[31] e pela súmula 227[32] do Superior Tribunal de Justiça. Todavia, e embora o assunto guarde pertinência com o tema ora apreciado, em razão proteção constitucional à honra e a imagem, encartada no art. 5º, X,[33] da Constituição da República, parece-nos não ser este o fórum apropriado para apreciá-lo, sob pena de se alterar o foco, dando-se, portanto, apenas notícia da discussão, para assim retornar ao tema central.
Dessa forma, e a partir do exposto, poder-se-ia pensar que, por ser a pessoa jurídica fruto de uma concepção legal, não seria ela destinatária dos direitos fundamentais. Frise-se, por oportuno, que vozes na doutrina sustentam esse ponto de vista, a exemplo de José Afonso da Silva, que, ao abordar as diversas expressões para designar os direitos fundamentais, oferta a seguinte lição:[34]
“Direitos fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a este estudo, porque, além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do homem, não como o macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana. Direitos fundamentais do homem significa direitos fundamentais da pessoa humana ou direitos fundamentais. É com esse conteúdo que a expressão direitos fundamentais encabeça o Título II da Constituição, que se completa, como direitos fundamentais da pessoa humana, expressamente, no art. 17.”
No entanto, a orientação mais moderna discorda do posicionamento acima, consoante demonstra o excerto abaixo da lavra de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, in verbis:[35]
“Não há, em princípio, impedimento insuperável a que pessoas jurídicas venham, também, a ser consideradas titulares de direitos fundamentais, não obstante estes, originalmente, terem por referência a pessoa física. Acha-se superada a doutrina de que os direitos fundamentais se dirigem apenas às pessoas humanas. Os direitos fundamentais suscetíveis, por sua natureza, de serem exercidos por pessoas jurídicas podem tê-las por titular. (…) Garantias, porém, que dizem respeito à prisão (e.g., art. 5.º, LXI) têm as pessoas físicas como destinatárias exclusivas.”
Com efeito, parece-nos mais adequado o entendimento de que as pessoas jurídicas são destinatárias dos direitos fundamentais. É certo, contudo, como já adiantado acima, que elas não seriam detentoras de todo e qualquer direito fundamental, mas somente daqueles que guardassem pertinência com a sua real atividade.
A respeito, Fernando Castelo Branco sustenta que as garantias fundamentais tiveram seu campo de aplicação expandido para alcançar também as pessoas jurídicas[36], desde que haja a adequação dos princípios fundamentais à realidade desses entes. Esse autor lembra ainda o seguinte:[37]
“Alexandre de Moraes, ao tratar dos destinatários da proteção dos direitos fundamentais, assevera que as pessoas jurídicas são beneficiárias dos direitos e garantias individuais, pois se reconhece as associações o direito à existência, o que de nada adiantaria se fosse possível excluí-las de todos os seus demais direitos. Dessa forma, os direitos enumerados e garantidos pela Constituição são de pessoas físicas e jurídicas, pois têm direito à existência, à segurança, à propriedade, à proteção tributária e aos remédios constitucionais.”
Cite-se, a propósito, os comentários de Bruno Leal acerca do assunto:[38]
“Os direitos fundamentais surgiram tendo como destinatários (ou titulares) as pessoas naturais.
Com o passar dos tempos, os ordenamentos constitucionais passaram a reconhecer direitos fundamentais, também, às pessoas jurídicas.
Modernamente, as constituições asseguram, ainda, direitos fundamentais às pessoas estatais, isto é, o próprio Estado passou a ser considerado titular de direitos fundamentais. Aspecto importantíssimo este, senão vejamos: os direitos fundamentais surgiram colocando o Estado ‘contra a parede’, na condição de réu, por meio da imposição de limitações à sua atuação; hoje, em certas situações, o próprio Estado pode ser titular de direitos fundamentais.
Não significa afirmar, porém, que todos os direitos fundamentais podem ser usufruídos por todos os titulares apontados acima (pessoas naturais, pessoas jurídicas e pessoas estatais).
Assim, na nossa Constituição Federal de 1988 temos direitos fundamentais igualmente voltados para as pessoas naturais, jurídicas e estatais (direito de propriedade, por exemplo – art. 5º, XXII); temos direitos fundamentais extensíveis às pessoas naturais e às pessoas jurídicas (assistência jurídica gratuita e integral, por exemplo – art. 5º, LXXIV); temos direitos fundamentais exclusivamente voltados para a pessoa natural (direito de locomoção, por exemplo – art. 5º, XV); temos direitos fundamentais restritos aos cidadãos (ação popular, por exemplo – art. 5º, LXXIII); temos direitos fundamentais voltados exclusivamente para a pessoa jurídica (direito de existência das associações, direitos fundamentais dos partidos políticos – art. 5º, XIX, e art. 17, respectivamente); direitos fundamentais voltados exclusivamente para o Estado (direito de requisição administrativa, por exemplo – art. 5º, XXV).”
Transcreva, por oportuno, a lição de Celso Ribeiro Bastos:[39]
“Mais uma vez, aqui, quer-nos parecer que o Texto disse menos do que pretendia. A tomá-lo na sua literalidade seria forçoso convir que ele só beneficiaria às pessoas físicas. Mas, novamente, estaríamos diante de uma interpretação absurda. Em muitas hipóteses a proteção última ao indivíduo só se dá por meio da proteção que se confere às próprias pessoas jurídicas. O direito de propriedade é um exemplo disto. Se expropriável uma pessoa jurídica, ela há de o ser mediante as mesmas garantias por que o são as pessoas físicas.”
Frise-se, nesse compasso, que o Supremo Tribunal Federal não só assentou o entendimento de que as pessoas jurídicas são titulares da proteção fundamental, como afirmou que tal proteção se estende, inclusive, as pessoas jurídicas de direito público.[40] Observe-se:
“A QUESTÃO DOS DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS, NOTADAMENTE AQUELES DE CARÁTER PROCEDIMENTAL, TITULARIZADOS PELAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PÚBLICO.
- A imposição de restrições de ordem jurídica, pelo Estado, quer se concretize na esfera judicial, quer se realize no âmbito estritamente administrativo (como sucede com a inclusão de supostos devedores em cadastros públicos de inadimplentes), supõe, para legitimar-se constitucionalmente, o efetivo respeito, pelo Poder Público, da garantia indisponível do ‘due process of law’, assegurada, pela Constituição da República (art. 5º, LIV), à generalidade das pessoas, inclusive às próprias pessoas jurídicas de direito público, eis que o Estado, em tema de limitação ou supressão de direitos, não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva e arbitrária. Doutrina. Precedentes.”
Diante do exposto, pode-se afirmar que as pessoas jurídicas não são destinatárias de todos os direitos fundamentais, mas somente daqueles que se conectem com a execução da sua atividade institucional. Cite-se, por exemplo, a hipótese sugerida por Fernando Castelo Branco, de que não seria razoável deferir a uma associação sindical o direito à liberdade religiosa.[41] Cumpre, lembrar, a propósito, que o Superior Tribunal de Justiça entende que a pessoa jurídica “não pode se valer do habeas corpus, uma vez que o bem jurídico por ele tutelado é a liberdade corporal, própria das pessoas naturais”, como revela o HC 180.987.[42] Ou seja, não haverá dúvidas quanto ao direito à invocação da proteção constitucional sempre que ele se vincular a atividade empreendida pela pessoa jurídica.
Conclusão
O presente trabalho buscou demonstrar que as pessoas jurídicas são titulares de direitos fundamentais. Com efeito, a avaliação do assunto sob o prisma da historicidade dos referidos direitos, bem como o exame da natureza jurídica, associado à evolução dos direitos individuais conduzem à necessária conclusão de que as pessoas coletivas não se encontram órfãs de tal proteção. Deveras, a concepção acerca dos destinatários dos direitos e garantias fundamentais evoluiu de forma a lhes conferir novos status, de maneira albergar também as pessoas jurídicas. Assim, restou comprovado que embora os direitos e garantias fundamentais tenham sua origem vinculada à proteção das pessoas naturais é inevitável concluir pela possibilidade da sua legítima invocação pelas pessoas jurídicas, desde que o direito a ser protegido revele-se pertinente com a atividade desempenhada e com a situação concreta vivida pela pessoa jurídica.