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A (des)necessidade de licitação para doações com encargo

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15/04/2014 às 12:22
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Diferentemente das doações administrativas puras, o contrato administrativo de doação com encargo deve ser, via de regra, licitado, como se depreende da regra inserta no § 4º do art. 17 da nº Lei 8.666/93, que reforça mandamento constitucional.

Sumário: Introdução. 1 A licitação dispensada para as doações: um rol de exceções bastante amplo; 2 A diferença quando a doação é com encargo 2.1 Mitigação do requisito “interesse público devidamente justificado” como único pressuposto para dispensar a licitação; 2.2 A tripla função do encargo Conclusão; Referências.


INTRODUÇÃO

O art. 37, XXI, da Constituição Federal consagra o princípio da obrigatoriedade da licitação, o qual impõe o dever de licitar antes de celebrar contratos administrativos. Por sua vez, a Lei nº 8.666/1993 (Lei de Licitações e Contratos – LLC)) veio regulamentar referido dispositivo constitucional, instituindo normas gerais sobre licitações e contratos da Administração Pública.

Tanto o dispositivo constitucional como o art. 1º da LLC impõem a obrigação de realizar prévia licitação nos casos de alienação, de onde decorre o dever de licitar antes da celebração de contratos de doação, pois são espécies do gênero alienação.

Contudo, ao dispor sobre as doações a LLC prevê tantas hipóteses de licitação dispensada que permite ao intérprete concluir que, na prática, as doações administrativas quase sempre serão feitas sem a necessidade (ou a possibilidade) de licitação. Assim se dá porque facilmente será possível enquadrar uma doação num dispositivo legal que afasta o dever de licitar.

Já a doação com encargo possui tratamento peculiar, pois, a depender da natureza dessa obrigação denominada encargo, a licitação será não só possível, mas necessária, haja vista a possibilidade fática de selecionar a melhor proposta. O presente artigo tem por escopo abordar essa natureza específica da doação com encargo no âmbito das licitações e contratos.


A LICITAÇÃO DISPENSADA PARA AS DOAÇÕES: UM ROL DE EXCEÇÕES BASTANTE AMPLO

A doutrina costuma iniciar o estudo das licitações dando ênfase à obrigatoriedade de a Administração Pública realizar procedimento licitatório quando for fazer suas contratações. De fato, essa obrigação decorre de expressa disposição constitucional, constante do art. 37, XXI, da Constituição Federal. Diz a norma:

XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

(sublinhamos)

Para os estudiosos, a norma contida no enunciado é a seguinte: em matéria de contratações públicas, a licitação é a regra e a contratação direta é a exceção. Vale destacar os negócios jurídicos abrangidos pela norma, com destaque aqui para a expressa menção às alienações. A doação, por óbvio, como espécie de alienação há de se submeter a essa regra e também às exceções.

O art. 17 da LLC previu um extenso rol com hipóteses de dispensa de licitação para as doações, tanto no caso de bens imóveis (inciso I) como de bens móveis (inciso II). Além do numeroso rol, as hipóteses são tão amplas e abertas que fica difícil imaginar quando, na prática, seria possível a realização de licitação para as doações. Daí se constatam duas características bem singulares em matéria de exceção à regra que manda licitar as doações: no aspecto quantitativo, as exceções são bastante numerosas; no aspecto qualitativo, veiculam-se preceitos bastante abertos, de ampla aplicabilidade.

Como ensina Maximiliano, às vezes as disposições excepcionais são tão amplas que fica difícil tomá-las como reais exceções: “Nem sempre oferece aspecto nítido, de apreensão fácil, a espécie jurídica ora sujeita a exame [as disposições excepcionais]: proposições com aparência de excepcionais constituem de fato a regra geral, e vice-versa” (2007: 185). De acordo com essas lições, é mais importante para o intérprete avaliar o contexto em que estão postas a regra e as exceções do que se apegar à literalidade dos enunciados normativos. Só a partir dessa visão global será possível compreender se se está diante de uma regra, de uma exceção ou de uma travestida de outra.

Meirelles chega a afirmar que os casos de doação seriam até mesmo incompatíveis com o instituto da licitação: “A alienação de bens imóveis [...] exige autorização legislativa, avaliação prévia e concorrência, inexigível esta nos casos de doação, permuta, [...], cujos contratos, por visarem a pessoas ou imóvel certo, são incompatíveis com o procedimento licitatório” (2009: 542, destaques no original). Note-se que se utiliza a expressão “inexigível”, enquadramento que será sustentado em momento ulterior deste estudo.

Mais à frente, claramente defendendo que no caso das doações a licitação seria exceção, afirma que “só excepcionalmente poder-se-á promover concorrência para doações com encargos, a fim de escolher-se o donatário que proponha cumpri-los em melhores condições para a Administração ou para a comunidade” (2009: 544).

A constatação da dificuldade prática em licitar uma doação levou o Ministro Sepúlveda Pertence, em voto proferido no julgamento da ADI-MC 927 a afirmar que “[...] doação, seja qual for seu objeto, é conceito que, por si mesmo, exclui a ideia de licitação”. Trata-se de um reflexo jurisprudencial do que Meirelles sustentara em sede doutrinária.

Portanto, sem querer adentrar o estudo específico de cada hipótese de dispensa ou inexigibilidade de licitação nos casos de doações, o importante é apreender, nesta assentada, a seguinte constatação: embora Constituição Federal estabeleça que, em matéria de alienação de bens públicos, a regra é licitar, a natureza jurídica do contrato de doação lança dúvidas sobre essa regra; uma análise mais acurada permite concluir que, no caso das doações, na maioria das vezes será impossível licitar, seja por motivos fáticos que impossibilitam uma competição (inexigibilidade) seja porque a Lei mandará que não se faça a licitação (dispensada).

Vale aqui lembrar a diferença ontológica entre a licitação inexigível, de um lado, e as licitações dispensadas e dispensáveis de outro. Confira-se a precisa distinção de Di Pietro (2006: 361),

A diferença básica entre as duas hipóteses está no fato de que, na dispensa, há possibilidade de competição que justifique a licitação; de modo que a lei faculta a dispensa, que fica inserida na competência discricionária da Administração. Nos casos de inexigibilidade, não há possibilidade de competição, porque só existe um objeto ou uma pessoa que atenda às necessidades da Administração; a licitação é, portanto, inviável.

O instituto da dispensa de licitação compreende tanto a licitação dispensável como a dispensada. A diferença entre a licitação dispensável (art. 24 da LLC) e a dispensada (art. 17) é que neste segundo caso, embora faticamente possível a licitação, a Lei determina (impõe) que não seja feita qualquer competição (Santos, 2012: 532). Há, portanto, uma proibição de licitar, desde que constatadas e comprovadas nos autos as hipóteses fáticas previstas em Lei.

Dessa breve distinção é possível concluir o seguinte: as hipóteses de licitação dispensada e de licitação inexigível levam à mesma solução prática, qual seja, a inexistência de licitação. Num caso, a lei manda que assim o seja; no outro, os fatos determinam a impossibilidade de licitar. Desta feita, a diferença tem relevância mais teórica do que prática.

Diante de um caso concreto em que a lei preveja uma hipótese de licitação dispensada, pouco importa se há ou não possibilidade fática de licitar, pois a lei determinou que não se licitasse. A opção por afastar a licitação, legítima ou não, fora feita em momento anterior à aplicação da lei ao caso concreto, ainda em sede legislativa. Uma vez legislada a exceção, com base em faculdade concedida pela Constituição, essa “decisão legislativa” somente seria questionável por eventual alegação de inconstitucionalidade. Em suma, o resultado prático da aplicação de uma hipótese legal de licitação dispensada assemelha-se muito a uma constatação fática de inexigibilidade, não obstante se reconheça a diferença teoria entre os institutos.

Considerando o que foi dito até então, pode-se afirmar que a análise do contrato administrativo de doação deve levar em conta esse contexto peculiar de ocorrência constante de licitação dispensada ou inexigível. Na prática, contudo, obedecendo ao comando constitucional, o administrador deve sempre partir da premissa e da disposição de licitar, somente adotando a inexigibilidade ou a dispensa quando a situação de fato impossibilitar a competição entre eventuais interessados (licitação inexigível) ou quando a Lei determinar que não haja competição (licitação dispensada).


A DIFERENÇA QUANDO A DOAÇÃO É COM ENCARGO

O que se preconizou como fato comum para as doações puras, isto é, a constante ocorrência de dispensa ou inexigibilidade de licitação, não deve ocorrer nas doações com encargo, a começar pela própria postura da Lei, conforme será visto neste tópico. Pode-se dizer que, em se tratando de doações administrativas, a doação com encargo tem tratamento específico.

Essa afirmação de tratamento peculiar conferido à doação com encargo funda-se em três postulados: (a) a Lei reforça a regra constitucional para não deixar dúvidas de que no caso específico das doações com encargo deve-se realizar licitação; (b) no plano fático, quase sempre será possível realizar uma licitação, pois será comum a possibilidade de execução do encargo por diversos sujeitos, e (c) além de possível, a realização de uma licitação atende mais adequadamente à finalidade inicialmente pretendida pela Administração, que é a realização do encargo da forma mais vantajosa.

Note-se que o tratamento distintivo conferido a essa espécie de doação relaciona-se diretamente com a presença desse elemento que vem a ser o encargo. Como se verá mais adiante, toda a especificidade da doação com encargo dentro da matéria referente às doações públicas reside nesse elemento contraprestacional.

Inicia-se, portanto, com o disposto na LLC, para quem “a doação com encargo será licitada [...], sendo dispensada a licitação no caso de interesse público devidamente justificado” (art. 17, §4º - sublinhamos). Destacam-se duas expressões do dispositivo: primeiro, o enquadramento como licitação dispensada, o que significa que mesmo nos casos em que o objeto possibilite uma competição entre os interessados, a contratação deve dar-se sem licitação; segundo, o único pressuposto para se afastar a licitação, mesmo nos casos em que ela seja faticamente possível, é o vago conceito de interesse público, residindo nesse segundo ponto a maior dificuldade interpretativa.

2.1 Mitigação do requisito “interesse público devidamente justificado” como único pressuposto para dispensar a licitação

Apesar das dificuldades interpretativas, sob o aspecto formal o §4º do art. 17 da LLC é curto e preciso: ao tempo em que estabelece uma regra, veicula uma exceção. A norma exceptiva, como se disse, reside no fluido conceito de “interesse público”. A doutrina reconhece a dificuldade em definir o que vem a ser esse dito conceito jurídico indeterminado:

[...] é mister que se reconheça ser esta uma expressão que não apresenta sentido unívoco. Com efeito, interesse público não é apenas um conceito jurídico indeterminado, mas uma expressão equívoca, cujos significados variam, desde a soma de interesses particulares, até a fixação de um interesse social específico distinto dos particulares, passando pela soma de bens e serviços, bem como pelo conjunto de necessidades humanas indispensáveis à realização dos diversos destinos individuais (Carvalho, 2008: 63).

Mais adiante, reforça-se a ideia:

Há, ainda, outro ponto indispensável para a adequada compreensão do princípio da supremacia: não se pode pressupor que o interesse público é único, claramente identificável e incidente, sempre de modo exclusivo, em uma dada situação. Mostra-se absurdo ignorar a multiplicidade de interesses cuja proteção tantas vezes cabe ao Estado, simultaneamente, em uma mesma situação concreto. Seria ingênuo acreditar que, no mundo contemporâneo, é viável extrair do ordenamento uma única providência que, realizada, satisfaz o bem comum em sua integralidade. Isto até mesmo atentando para o fato de que as necessidades sociais não são estáticas, nem mesmo predeterminadas de modo objetivo e perene. São diversas e dinâmicas as demandas da comunidade (Carvalho, 2008: 68).

A verificação de existência de interesse público sujeita-se a uma série de questões de difícil solução, que vão desde a ponderação de princípios constitucionais até as opções políticas de determinado governo, como bem coloca Carvalho:

Reconhece-se que, nestas situações específicas de multiplicidade de interesses públicos, não há bem comum abstratamente considerado que devesse prevalecer sobre os interesses particulares eventualmente envolvidos. Deve a ponderação de interesses in concreto, à luz dos valores constitucionais envolvidos, mormente se se considerar que numa sociedade complexa e pluralista não há apenas um interesse públicos, mas muitos (preservação da saúde pública, maior liberdade de expressão, combate ao déficit público, melhoria e ampliação dos serviços). Isto não significa que, em dado caso concreto, na hipótese de tensão entre um interesse privado e uma necessidade de toda a sociedade, não haja que se fazer prevalecer o interesse público com sacrifício individual (2008: 70).

O afastamento do dever de licitar com base tão somente na ideia de interesse público levaria em conta eminentemente a opção política de determinado governo, o que se constata pela seguinte ordem de raciocínio, de índole eminentemente constitucional: a vontade do Poder Executivo, responsável pela aplicação das leis (e, em específico, do dispositivo legal em apreço), representa a vontade dos cidadãos; essa massa política que escolheu seus representantes é formada por um mosaico de entendimentos e interesses, próprios de uma democracia pluralista:

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A Constituição opta, pois, pela sociedade pluralista que respeita a pessoa humana e sua liberdade, em lugar de uma sociedade monista que mutila os seres e engendra as ortodoxias opressivas. O pluralismo é uma realidade, pois a sociedade se compõe de uma pluralidade de categorias sociais, de classes, grupos sociais, econômicos culturais e ideológicos. Optar por uma sociedade pluralista significa acolher uma sociedade conflitiva, de interesses contraditórios e antinômicos. (Silva, 2002: 143, destaques no original)

Os interesses constitucionais que prevalecerão em determinado governo dependem justamente dos interesses prevalentes nessa sociedade plural, podendo existir interesses e ações eminentemente díspares, mas ambos com respaldo no “interesse público” veiculado pela Constituição: fazer a doação de uma área para instalar uma escola, um conglomerado esportivo, uma indústria ou para simples preservação do meio ambiente ali existente são interesses que guardam igual respaldo constitucional, mas podem ser conflitantes no caso concreto.

A avaliação acerca do “interesse público devidamente justificado” apto a afastar a licitação no caso concreto fica sujeita a um grau muito grande de subjetivismos e interesses outros que não só os da sociedade. Não se pode esquecer que a presença de “interesse público devidamente justificado” é requisito que antecede a dispensa de licitação na doação com encargo, pois a LLC exige tal requisito para fundamentar não só a licitação dispensada, mas para motivar toda e qualquer alienação de bem público (art. 17, caput). Há, portanto, dois “interesses públicos” a serem “devidamente justificados”: um para motivar a própria alienação e outro para afastar a licitação na doação com encargo, este último mais sujeito a subjetividades e desvios.

Essa imprecisão do requisito de interesse público devidamente justificado apto a afastar uma licitação na doação com encargo já foi motivo para o TCU afastar essa hipótese legal de licitação dispensada por entendê-la inconstitucional, com amparo no escólio de Justen Filho:

3. Análise

3.40. Com efeito, essa é a redação que hoje consta do citado normativo. No entanto, entendemos que a dispensa de licitação em casos de doação com encargo não possa ser efetuada: a uma, porque a regra que parece estabelecer o citado dispositivo é a da licitação, sendo que a hipótese de dispensa por interesse público devidamente justificado conflita com a regra constitucional do art. 37, inciso XXI, uma vez que não deve haver discricionariedade nos casos de dispensa de licitação, já que estas devem constar de casos especificados na legislação, por determinação constitucional; a duas, porque havendo encargos, a administração deveria escolher o donatário que se propusesse a cumprir o encargo em melhores condições para a Administração ou para a população beneficiária. Ademais, é extremamente difícil definir fora das hipóteses determinadas por lei o que vem a ser interesse público devidamente justificado, pois a Administração somente pode agir no interesse público.

3.41. Nessa linha, tem-se o seguinte posicionamento doutrinário de Marçal Justen Filho (in Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 9ª ed., 2002, p.p. 186-187) o qual abraçamos para o presente caso:

Na alteração instituída pela Lei nº 8.883, foi acrescida à redação original do § 4º a previsão da dispensa de licitação nos casos de interesse público. Não se pode aceder com a regra ampla de dispensa de licitação em casos de "interesse público devidamente justificado". Nessa passagem, o dispositivo é inconstitucional, porquanto o art. 37, inc. XXI, determina a obrigatoriedade de a lei dispor sobre as hipóteses específicas de dispensa de licitação. Não seria concebível que, em vez de definir hipóteses precisas, a lei remetesse à apreciação, pela Administração, de casos de interesse público. Dito de outro modo, a regra enfocada altera a opção exercitada constitucionalmente. Se desejasse subordinar a licitação ao requisito do "interesse público devidamente justificado", a Constituição Federal teria adotado solução diversa daquela consagrada no art. 37, inc. XXI. Deve-se interpretar o dispositivo no sentido de que, nesse campo, caberá à lei local definir e instituir a dispensa de licitação. Cada entidade federativa deverá avaliar o interesse público e disporá da faculdade de determinar a contratação direta, nos casos especificados em lei.

(destacamos)

Vale registrar que o entendimento acima, consignado na análise técnica do Acórdão nº 601/2004-Plenário, não foi de todo acolhido pelo Min. Relator, para quem a hipótese de dispensa de licitação nas doações com encargo seria legítima (constitucional), mas tanto a obrigatoriedade como a dispensa de licitação previstas no art. 17, §4º, da LLC aplicar-se-iam apenas aos bens imóveis. Embora o dispositivo não tenha mencionado móveis ou imóveis, a restrição parece ter sido a forma que o TCU achou para resguardar sua constitucionalidade.

Tal qual o Min. Relator, não se pode concordar com a inconstitucionalidade da dispensa de licitação prevista no artigo supracitado, cabendo sim dar-lhe uma interpretação tal que se amolde ao querer constitucional. Nesse mesmo sentido parecem caminhar as lições de Carvalho, que, apesar de criticar eventuais subjetividades que a legislação nos proporciona, orienta sobre o tratamento que deva ser dado a essas situações, evitando-se ao máximo o ato de expurgar as normas do ordenamento e com isso fulminar o benefício social que a norma buscava alcançar:

Eventuais riscos decorrentes de desvios que a excessiva subjetividade podem causar, como adverte Alexandre Santos Aragão, devem ser afastados mediante cuidadosa hermenêutica e não mediante simples negativa ingênua da necessidade de prevalência das prioridades sociais. Se levado a efeito meticuloso controle da veracidade dos fatos invocados como base para o interesse público cuja supremacia pretende o Estado, não se transmutará tal interesse em permanente ameaça, mas, ao contrário, significará segurança protetiva da sociedade (2008: 71).

Enunciado o problema teórico da conceituação e identificação do requisito do interesse público devidamente justificado a afastar a licitação no caso em apreço, pode-se afirmar que a aplicação correta do dispositivo exige ir além desse confuso e incerto conceito, mitigando-o como requisito. Constata-se que não será possível decifrar o sentido e o alcance da norma tomando por base tão-só esse controverso e maleável instituto. Se o estudo parasse por aqui e se satisfizesse com o sentido plurívoco e o alcance infinito do conceito de interesse público devidamente justificado, estaria rendendo-se à incerteza jurídica, que é tudo não se deseja no âmbito da administração pública, que orienta sua atividade pelo princípio da legalidade.

A partir daí, não precisa muito esforço para concluir que, numa análise mais pragmática, o que deve interessar na decisão de licitar ou não a doação com encargo é saber em que consiste a obrigação a ser exigida do particular, isto é, o encargo. Em outras palavras, diante da dificuldade teórica e da grande subjetividade na identificação do interesse público apto a subsidiar uma decisão de não licitar, mais seguro é fixar-se na apuração dos requisitos legais mais palpáveis, especialmente da espécie de encargo que se está a exigir.

2.2 A tripla função do encargo

O objetivo deste tópico é demonstrar que o tipo de encargo exigido pela Administração será determinante em três momentos nos quais o gestor deverá tomar uma decisão, quais sejam: (a) primeiro, decidir pela transferência de propriedade do bem por meio de doação com encargo e não por outro negócio jurídico; (b) definir detalhadamente o encargo, pois este figurará como objeto do contrato, em torno do qual gravitarão cláusulas como prazos, sanções por inadimplemento, cláusula de reversão etc. e (c) avaliar se esse objeto (encargo) é passível de algum tipo de competição, especialmente de uma licitação nas modalidades e tipo previstos na LLC.

Como já foi dito, o que fundamenta o tratamento peculiar das doações com encargo é a presença desse elemento contraprestacional (encargo), por isso é de fundamental importância dizer o que ele é, o que vem a ser esse elemento que distingue uma doação com encargo de uma doação comum (pura).

A doação é com encargo quando “[...] se impõe ao donatário uma contraprestação que ele deve cumprir e donde resulta uma vantagem para o doador ou para terceiro” (Rodrigues, 2003: 204). Se não existir contraprestação benéfica ao doador ou a terceiro, trata-se de doação pura. Assim, o aspecto distintivo é justamente a presença ou não de uma contraprestação, de uma obrigação a ser cumprida pelo donatário, isto é, de um encargo. É esse elemento que agrega possibilidade de competição (licitabilidade, por assim dizer) ao contrato, por isso o aspecto distintivo do §4º do art. 17 da LLC mandando licitar as doações com encargo.

É certo que o encargo possui um valor econômico, que pode ser mensurado e quiçá até apresentado em equivalência monetária (R$ XXXX,CC). Essa mensuração pecuniária faz com que se vislumbre mais facilmente uma forma de licitar o encargo com base nas modalidades e tipos de licitação previstos na LLC.

Contudo, é preciso ter em mente que o sentido de contraprestação (encargo) não é o mesmo de pagamento: primeiro, porque não se está no âmbito de um contrato de compra e venda nem de dação em pagamento, em que mais benéfico é o negócio que apresente maior valor pecuniário, maior diferença entre valor de avaliação do bem e o correspondente financeiro auferido, de modo que a vantajosidade seja medida em quantum pecuniário; segundo, porque pode inexistir (e geralmente inexiste) uma estrita equivalência econômica entre o bem doado e o encargo a ser adimplido, o que faz total diferença em matéria de contratação pública da doação com encargo.

Neste tipo de contratação pública, há interesses maiores do que a simples transmissão do patrimônio e do auferir renda; busca-se, na verdade, o fomento a alguma atividade de interesse social, como o desenvolvimento industrial, educacional, comercial, habitacional etc. Essas atividades constituem o encargo, a contraprestação, o objeto a ser licitado e contratado. Esse objeto, por vezes, é de difícil mensuração pecuniária de modo a possibilitar uma disputa em torno dessa estimativa de valor, o que dificulta a formatação de uma licitação nos moldes da LLC.

Merece registro a posição da doutrina civilista que classifica a doação com encargo como contrato gratuito, pois o encargo não configuraria contraprestação:

b) Gratuitos ou benéficos – Nos contratos gratuitos, não há qualquer ônus que corresponda à vantagem obtida. Na doação, v. g., o único ônus que há é por parte do doador, de entregar o objeto. [...]. O que pode haver é encargo, como construir escola, por exemplo, o que não configura contraprestação, por não ser devido ao doador como contrapartida direta pela doação feita. Além do mais, o encargo, diferentemente da contraprestação, é elemento acessório, secundário, desproporcional à vantagem recebida, não tendo, necessariamente, caráter patrimonial. (Fiúza, 2003: 368)

No âmbito administrativo, contudo, parece não restar dúvida de que se trata de contrato oneroso, pois se fosse gratuito (sem contraprestação), seria bastante complicado pensar numa possibilidade de competição, numa licitação. Além disso, parece corromper a lógica do contrato administrativo entender que a obrigação contratual do licitante vencedor (o encargo) não é um ônus. A natureza onerosa é da essência do contrato administrativo (Meirelles, 2009: 214).

No presente estudo, de abordagem mais pragmática, o mais importante é focar nisso que vem a ser “o encargo”; na investigação acerca desse encargo, no que ele consiste, em quem pode prestá-lo etc. No caso da doação administrativa com encargo, esta obrigação (encargo) torna-se mais relevante do que a doação em si, invertendo-se a lógica de acessório e principal apresentada na doutrina civilista. Prova disso é a exigência do §4º do art. 17 da LLC, que coloca como cláusulas obrigatórias nas doações com encargo o prazo para adimplemento e a cláusula de reversão para o caso de descumprimento. Essa ênfase legal impossibilita qualquer entendimento que ponha o encargo em segundo plano.

A constatação acima revela que o fator determinante sobre a possibilidade de licitar ou não uma doação com encargo é a avaliação em torno deste encargo. É aí que se encontra a pedra de toque acerca da possibilidade de realizar licitação ou sua inexigibilidade. O encargo pode ser, por exemplo, a construção de um loteamento para habitação popular, em que várias empreiteiras se apresentem como interessadas e haja critérios objetivos para selecionar a melhor proposta (isso se o contrato de compra e venda com previsão de uma condição resolutiva de implementar o loteamento não for a opção mais adequada, como será dito mais adiante sobre a necessária justificativa de se optar por uma doação em vez de outro negócio jurídico que se revele mais adequado e menos oneroso). De outra banda, o encargo pode ser a instalação de uma agência dos Correios, com doação do imóvel necessariamente à empresa pública.

Retomando a análise da doação com encargo à luz da LLC1, especialmente do seu art. 17, §4º, pode-se afirmar que ela traz duas formas de realizar a contratação: como regra, deverá ser realizada licitação, caso contrário, será inexigível. Essa afirmação decorre das constatações que seguem.

Para a correta interpretação do dispositivo, é preciso afastar o aspecto técnico-jurídico da expressão “dispensada”, veiculada no §4º do art. 17 da LLC. O sentido da expressão, no caso, parece encaixar-se mais no conceito de licitação inexigível (impossível licitar), não de dispensada (possível licitar, mas imposição legal de que não o seja). Como foi dito mais acima, o efeito prático dos dois institutos legais é basicamente o mesmo.

Conjugando o requisito do interesse público devidamente justificado, por dificuldade prática em interpretá-lo isoladamente, com a natureza do encargo a ser exigido no caso concreto, chega-se à conclusão de que o que o §4º do art. 17 traz, na verdade, é uma situação que apenas comporta uma interpretação: é hipótese de inexigibilidade, cabível quando, pela relevância do interesse público subjacente na doação e no encargo exigido, apenas uma pessoa possa prestá-lo da forma como exigido pela Administração.

Deve haver, portanto, interesse público justificado a motivar duas coisas distintas: a doação e o encargo. Quanto à opção pela doação, o gestor deve fazer-se as seguintes perguntas: por que doar? O desfazimento do bem é realmente necessário para atender ao interesse público? Não resolveria a situação a licitação da simples concessão de uso ou uma Parceria Público Privada – PPP? Essas soluções alternativas não possibilitariam a realização do objeto (cumprimento da atividade em que consiste o encargo) de forma mais eficaz e menos onerosa? Um contrato de compra e venda, com estabelecimento de condição resolutiva ou suspensiva (arts. 126 e 127 da Lei nº 10.406/2002 - Código Civil) não seria igualmente adequado e menos oneroso?

Isso é necessário porque, consideradas as diversas opções jurídicas de realizar uma finalidade que exija a utilização de um bem público, a alienação parece a mais onerosa, aquela que possui maior grau de definitividade, dada a transferência de patrimônio. Dentre as formas de alienação, a doação, ainda que com encargo, figura como uma opção menos econômica do que uma compra e venda. Como o interesse da Administração é a realização de um encargo por meio da transferência de domínio, a venda do imóvel com imposição de uma condição suspensiva ou resolutiva pode ser uma opção que realize igualmente a finalidade proposta, com ganho de economicidade. Neste caso, a condição no contrato de compra e venda exerceria a função do encargo na doação, porém com ganho de economicidade.

A casuística traz um exemplo que, embora não trate de alienação de bem público, aborda de forma interessante as balizas para a escolha administrativa mais adequada entre um negócio gratuito ou oneroso. Trata-se de um julgado do TCU acerca da cessão gratuita ou onerosa de espaço público, em que se fez uma ponderação entre a finalidade pretendida com a cessão e a exigência legal de que ela fosse onerosa. Confira-se.

Não obstante a legislação federal preveja a cessão onerosa e licitada quando destinada a empreendimento com fins lucrativos (art. 18, §5º, da Lei nº 9.636/98 e art. 13, VIII, do Decreto nº 3.725/2001), o Tribunal entendeu possível que a cessão para exploração de lanchonetes e restaurantes em órgãos públicos fosse gratuita. A razão foi basicamente a seguinte: como o escopo da cessão é o fornecimento de refeições à melhor relação custo-benefício, não faria sentido cobrar pela ocupação do espaço, o que acabaria por fulminar o escopo almejado com a cessão, pois o contratado embutiria no valor dos produtos o ônus da cessão. Nesse caso, a prestação do serviço preponderaria sobre o caráter mercantil da atividade, justificando-se uma cessão não onerosa (Acórdão nº 1.443/2009-Plenário).

Note-se que o TCU deu mais importância à finalidade da cessão para daí concluir se deveria ser onerosa ou se a onerosidade seria incompatível com o fim pretendido. A decisão sobre o negócio jurídico mais adequado, se um contrato de compra e venda com condição suspensiva/resolutiva ou uma doação com encargo, por exemplo, passa por esse tipo de avaliação, da finalidade pretendida com a alienação. Esse é um estudo que deve ser feito preliminarmente, antes de decidir de forma prematura por uma doação com encargo. Nesse estudo, o tipo de contraprestação que será exigido será determinante na escolha do negócio jurídico mais adequado.

A avaliação ora citada não destoa do que exige a legislação. A LLC coloca como pressuposto de qualquer transferência de domínio de bem público (móvel ou imóvel) uma manifestação da autoridade competente (do Legislativo ou do Executivo) indicando os motivos de interesse público que sustentam a opção de transferência de patrimônio (art. 17, caput, da LLC).

É esse ato que dará concretude existencial ao interesse público, devendo mencionar formalmente os motivos por que a opção de alienação é mais vantajosa do que as demais (Moreira e Guimarães, 2012: 363). Como já foi dito mais acima, trata-se de “interesse público devidamente justificado” distinto do exigido no §4º do art. 17, este último mais específico porque condizente com o encargo.

Quanto ao encargo, a apresentação de “interesse público devidamente justificado” e a avaliação sobre a possibilidade de licitar perpassa pelas seguintes perguntas/respostas: por que a Administração está a exigir aquele encargo? Quais os critérios e estudos que fundamentam a exigência do encargo naquela quantidade e qualidade? Existe a possibilidade como medir a realização desse encargo e fazer a doação a quem o realize mais e/ou melhor esse encargo? O interesse da Administração é a realização da maior quantidade/qualidade do encargo exigido?

Na resposta às questões ora suscitadas é que restará bem definido, em quantidade e qualidade, o que a Administração pretende com a contratação, que tipo de serviço está a buscar com aquela doação. Isso ao mesmo tempo em que possibilitará definir o objeto do contrato servirá de norte para se concluir pela possibilidade de licitar ou não.

A partir dessas balizas, a Administração avaliará se existe mais de uma pessoa capaz de realizar o encargo e se uma competição (licitação) entre pretensos donatários é possível ou não. O interesse proeminente deve ser o da sociedade, não o do donatário, e isso deve ficar claro no procedimento de doação:

[...] a doação de bens públicos deve ser compreendida em termos: afinal, quem doará é uma pessoa da Administração Pública, e o bem a ser doado é uma coisa pública [...]. A “liberalidade”, aqui, portanto, é funcionalizada tendo em vista o interesse público posto em jogo. Não se trata de mero ato de vontade pelo qual alguém dispõe gratuitamente de seu patrimônio em benefício de terceiro, mas, sim, do atingir de um interesse público primário por meio da transferência de específico bem público (o beneficiado, portanto, deve ser a coletividade).

(Moreira e Guimarães, 2012: 367-368)

Não se exige qualquer justificativa de interesse público a motivar vagamente uma dispensa de uma licitação, sem objeto, como dá a entender a LLC. Exigem-se, de forma concreta, justificativas (motivos) que se relacionem com o objeto (a doação e o encargo), não com o procedimento (dispensa de licitação). Fixa-se aqui, portanto, “o que” deve ser objeto de justificativa de interesse público, conforme exigido na Lei. Ficam delimitados, portanto, o sentido e o alcance da expressão “interesse público devidamente justificado” que consta da Lei, a fim de evitar utilização arbitrária ou por demais subjetiva da escusa legal ao dever de licitar. Nesse ato de justificar o administrador será conduzido naturalmente a uma hipótese de licitar ou não.

Esclarecendo: se depois de todas essas considerações e justificativas acerca da necessidade da doação e do encargo a ser exigido, chegar-se à conclusão de que mais de uma pessoa pode cumprir o encargo, deverá haver competição, i.e., licitação; caso exista apenas uma pessoa capaz de cumprir o encargo, a licitação será inexigível pela impossibilidade fática de competição, cabendo ao gestor deixar bem claro o interesse público em efetuar a doação e os benefícios que vislumbra advirem do encargo cumprido. Note-se que o objeto de eventual licitação será a execução do encargo; a doação é apenas o meio utilizado pela Administração para conseguir a consecução do objeto pretendido, qual seja, a execução do encargo.

É o que se conclui da interpretação conjunta do art. 17, §4º; do art. 25, caput; e do art. 26, parágrafo único, II, todos da LLC, sem que se invoque qualquer inconstitucionalidade do primeiro dispositivo. Ao contrário, fixa-se o sentido e o alcance de suas disposições em conformidade com os princípios constitucionais, de modo a ver nele mais uma hipótese de inexigibilidade do que de licitação dispensada. A interpretação dada permite que, pela razões de interesse público devidamente justificadas, chegue-se à conclusão da impossibilidade de licitar.

Não se diga que se está aqui a pregar uma inconstitucionalidade pela via transversa de uma interpretação que afasta a norma do ordenamento jurídico. Como já foi dito mais acima, ambas as hipóteses (inexigibilidade e licitação dispensada) desembocam numa exceção à regra (contratação direta), seja esse procedimento competitivo (licitação) possível ou não. A classificação como licitação inexigível dá-se apenas porque, depois de esmiuçar o dispositivo, parece juridicamente mais adequada e compreensível (de mais fácil aplicação) sua leitura como hipótese de inexigibilidade.

Esse enquadramento permite uma convivência mais harmônica do dispositivo com os princípios da impessoalidade e da moralidade, evitando-se hipóteses por demais subjetivas de “interesse público devidamente justificado” a afastar a obrigatoriedade de licitar. Nada obsta, como já se disse, que, por razões de interesse público devidamente justificadas (art. 17, §4º), fique constatada a impossibilidade de licitar (art. 25, caput), dadas as razões determinantes de escolha do executante (art. 26, parágrafo único, II).

Resumindo, depois de se concluir que uma doação com encargo é a forma mais adequada de realizar a finalidade proposta, as questões-chave para saber se o contrato deve ou não ser precedido de licitação são as seguintes: (1) qual é o encargo?; (2) quem pode realizar esse encargo? Confira-se a doutrina de Justen Filho:

Uma hipótese peculiar, objeto de tratamento específico no §4º, é a doação com encargo. A opção por essa alternativa dependerá da relevância do encargo para consecução dos interesses coletivos e supraindividuais. Em determinadas hipóteses, a doação com encargo apresentará regime jurídico próprio, inclusive com a obrigatoriedade de licitação.

Assim, por exemplo, poderá ser do interesse estatal a construção de um certo edifício em determinada área. Poderá surgir como solução a doação de imóvel com encargo para o donatário promover a edificação. Essa é uma hipótese em que a doação deverá ser antecedida de licitação, sob pena de infringência do princípio da isonomia. Em outras hipóteses, porém, o encargo assumirá relevância de outra natureza. A doação poderá ter em vista a situação do donatário ou sua atividade de interesse social. Nesse caso, não caberá licitação. Assim, por exemplo, uma entidade assistencial poderá receber doação de bens gravada com determinados encargos. A situação se subsumiria à alínea “a” do inc. II, mesmo existindo o encargo.

(2010: 242, sublinhamos)

Note-se que no exemplo acima, Justen Filho destaca primeiro a questão da relevância do encargo; depois da qualidade de quem poderá prestá-lo, para daí estabelecer o critério que define a possibilidade de licitação ou seu afastamento. É exatamente a conexão que se fez mais acima de três dispositivos da LLC: o que destaca as razões de interesse público da doação e do encargo (art. 17, §4º), que Justen Filho chama de relevância do encargo para consecução dos interesses coletivos e supraindividuais; o que sobreleva as questões atinentes ao executante e às razões de sua escolha (art. 26, parágrafo único, II), que o autor chama de situação do donatário ou sua atividade de interesse social, e por fim o que prevê a contratação direta por inexigibilidade, dada a inviabilidade de competição (art. 25, caput), que é onde o doutrinador parece enquadrar a contratação direta.

Por fim, merece registro a situação em que mais de um possível donatário possa realizar o encargo, mas a LLC não forneça métodos para selecionar aquele melhor o realizará (proposta mais vantajosa). Nesse caso, embora haja mais de uma pessoa capaz de executar o encargo nos moldes propostos, poderá ser inviável a realização de uma licitação, na acepção técnica do vocábulo.

Isso pode acontecer por diversos motivos, especialmente pelo fato de as modalidades e tipos de licitação da LLC levarem sempre em conta uma maior retribuição econômica para a Administração, ressalvada a modalidade concurso, não adequada a uma eventual licitação de doação com encargo. É possível – e isso parece natural – que numa doação com encargo o interesse da Administração seja simplesmente a realização deste, sem que haja como se mensurar um maior ou menor proveito econômico na consecução do objeto. Vale aqui lembrar que encargo não é pagamento, por isso nem sempre prevalece a lógica do “quanto maior melhor”. Há outros escopos na realização do encargo que não necessariamente seu maior valor econômico, sua maior retribuição pecuniária.

Por ausência de medida econômica do encargo, ou pela inadequação de selecioná-lo com base numa maior retribuição financeira, fica praticamente inviável a utilização de uma licitação nos moldes previstos na LLC. Mais uma vez se estará presente uma hipótese de inexigibilidade, embora subsista uma multiplicidade de donatários capazes de cumprir o encargo proposto. Nesse caso, é recomendável que seja deflagrado algum procedimento que resguarde principalmente os princípios da isonomia, da publicidade, da impessoalidade e da moralidade na hora de escolher esse donatário. Esse procedimento servirá de subsídio para demonstrar as razões da escolha do executante exigidas pelo art. 26, parágrafo único, da LLC.

Embora não se possa chamar esse procedimento de licitação, ele garante e resguarda os mesmos valores que o procedimento licitatório visa proteger.

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Sobre o autor
Bráulio Gomes Mendes Diniz

Procurador Federal. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DINIZ, Bráulio Gomes Mendes. A (des)necessidade de licitação para doações com encargo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3940, 15 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27698. Acesso em: 18 abr. 2024.

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