1. Introdução:
O Programa de Arrendamento Residencial (PAR), instituído pela Lei n° 10.118/01, insere-se no contexto de efetivação do direito social à moradia. Em que pese o programa esteja sendo descontinuado e substituído pelo Minha Casa Minha Vida (Lei nº 11.977/2009), os contratos e empreendimentos já existentes continuam em vigor. Neste sentido, continua sendo importante analisar questões concernentes ao programa, o qual, a nosso sentir, nem sempre é encarado de acordo com as normas constitucionais.
Diante disso, no presente artigo mostraremos que o PAR deve ser encarado como um microssistema jurídico regido exclusivamente pela Lei n° 10.188/01 e as normatizações do Ministério das Cidades, gestor do programa, fato que limita a possibilidade de inovações contratuais por parte da Caixa Econômica Federal, mera operadora do programa.
2. O Programa de Arrendamento Residencial e sua conformidade às normas constitucionais:
Segundo a cartilha do programa1, o PAR foi “destinado ao atendimento da necessidade de moradia da população de baixa renda, prioritariamente concentrada nos grandes centros urbanos, sob a forma de arrendamento residencial, com opção de compra ao final do prazo contratado.” Atualmente, a renda das famílias alcançadas pelo Par é de R$ 3.100,00 (Portaria MCidades 310/2012).
Trata-se de uma figura jurídica análoga ao leasing que, segundo a definição de Fran Martins, é “o contrato segundo o qual uma pessoa jurídica arrenda a outra, por tempo determinado, um bem comprado pela primeira de acordo com as indicações da segunda, cabendo ao arrendatário a opção de adquirir o bem arrendado findo o contrato, mediante um preço residual previamente fixado”2.
Neste sentido, no PAR, a Caixa Econômica Federal arrenda a um particular de baixa renda, por tempo determinado, um imóvel para residência exclusiva do arrendatário, podendo este, findo o prazo previsto contratualmente, optar: i) pela compra do bem arrendado mediante o pagamento do valor residual, se houver; ii) pela renovação do contrato de arrendamento; iii) pela devolução do bem arrendado.
Aqui, interessante reiterar que, conforme o art. 1º da Lei nº 10.188/01, o programa destina-se exclusivamente ao atendimento da necessidade de moradia da população de baixa renda, constituindo-se, portanto, na operacionalização de uma política pública.
Neste sentido, dispõe o art. 6º da Constituição Federal que o direito à moradia é um direito social e, segundo o moderno constitucionalismo, integra o rol dos direitos fundamentais. Assim, o PAR está de acordo com tal princípio, o qual impõe ao Estado que haja uma efetiva política no sentido de garantir a todos uma moradia digna.
Aponta José Afonso da Silva3 que esse princípio possui duas faces: uma negativa, consistente na proibição de que o indivíduo seja impedido de conseguir uma moradia, e uma positiva, “que é a nota principal do direito à moradia, como dos demais direitos sociais, consiste no direito de obter uma moradia digna e adequada, revelando-se como um direito positivo de caráter prestacional, porque legitima a pretensão do seu titular à relativização do direito por via de ação positiva do Estado.”
Não é despiciendo lembrar, ainda, que o direito à moradia integra o mínimo existencial, o qual não pode ser encarado apenas a um mínimo vital, eis que é associado também a direitos sociais4. E, neste sentido, inegável que cabe ao Estado, através de prestações positivas, garantir a efetividade do direito à moradia.
A nosso sentir, deve-se encarar tal princípio como mandamento de otimização, no sentido de que a garantia de uma moradia digna deve ser satisfeita na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes consoante a lição de Robert Alexy5. Contudo, o ônus argumentativo para superar a necessidade de efetivação deste direito cabe ao Estado6.
Por conseguinte, todas as características do PAR devem ser tomadas de acordo com os preceitos brevemente apontados, garantindo-se a máxima eficácia do direito à moradia, cabendo a Caixa Econômica Federal, como mera operadora do programa (art. 2º da Lei n° 10.188/01), comprovar quais são as limitações fáticas e jurídicas que restrinjam a amplitude deste direito social.
3. Da natureza do contrato de PAR e limitação dos poderes da Caixa Econômica Federal:
Como já mencionado, o programa tem um objetivo claro: atendimento da necessidade de moradia da população de baixa renda. Trata-se, deste modo, de um contrato que visa à operacionalização de um programa de Governo.
Neste sentido, acreditamos que o entendimento aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça ao aos contratos de crédito educativos (como por exemplo o FIES, previsto na Lei nº 10.260/01) pode ser transposto ao PAR. Como é cediço, tais programas visam à efetivação do direito à educação, outro direito social previsto do art. 6º da Constituição Federal, através da concessão de financiamento a estudantes, havendo condições especiais para aqueles com menores condições econômicas.
Vejamos, a esse respeito, voto do Min. Castro Meira no Recurso Especial n° 560.405:
“(...) os contratos de crédito educativo têm por objetivo subsidiar a educação superior e são regidos pela Lei 8.436/92. Cuida-se de um programa de governo cuja finalidade é assegurar aos alunos de baixo poder aquisitivo o acesso à educação. Por sua vez, a Caixa Econômica Federal é mera executora do programa, e os recursos são provenientes unicamente da União.”
Além disso, no Superior Tribunal de Justiça é pacífica a jurisprudência no sentido de que o contrato de crédito estudantil é um microssistema jurídico regido por regras próprias, não constituindo uma relação bancária, mas sim de política governamental7. Neste contexto, os eventuais operadores do programa, como a Caixa Econômica Federal, estão limitados às diretrizes normativas dos programas de crédito educacional.
Ora, o contrato do PAR possui a mesma estrutura dos programas de crédito estudantil, eis que: i) é um programa de Governo cuja finalidade é assegurar à população de baixa renda acesso à moradia; ii) a CEF é mera responsável pela operacionalização do programa (art. 1º, § 1º, da Lei n° 10.188/01), cujos recursos são provenientes do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), criado exclusivamente para aplicação no PAR, composto com recursos onerosos provenientes de empréstimo junto ao FGTS e recursos não onerosos provenientes dos fundos FAS, FINSOCIAL, FDS e PROTECH e da rentabilidade das disponibilidades do FAR.
É fácil notar que o PAR aproxima-se mais dos programas de crédito estudantil, como o FIES, do que de outros contratos que, apesar de possuírem objetivos de cunho social, possuem a configuração de um contrato de natureza bancária. É o caso, neste sentido, do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e do próprio Minha Casa Minha Vida, que operam com contratos de financiamento.
Neste contexto, o regime do PAR é o de um microssistema jurídico, regido pela Lei n° 10.188/01 e as normatizações do Ministério das Cidades na qualidade de gestor do programa. Deste modo, assim como o FIES se submete exclusivamente ao regramento da Lei n° 10.260/01, o PAR deve se sujeitar à Lei n° 10.188/01.
Deste modo, considerando que o PAR é um microssistema jurídico e que sua aplicação deve estar em estrita consonância com a Lei n° 10.188/01, a CEF não tem qualquer poder para criar ônus ou inovar na sistemática do contrato, cabendo à instituição a mera gestão operacional do programa conforme as atribuições elencadas no art. 4º da norma em questão.
Com isso, queremos sustentar que a Caixa Econômica Federal não pode incluir no contrato de arrendamento residencial obrigações não previstas pela Lei nº 10.188/01, mormente aquelas que contrariem os princípios que regem um programa destinado a garantir o direito à moradia da população de baixa renda. E basta uma análise mais detida do contrato em comento para constatarmos que a Caixa Econômica Federal inclui diversas cláusulas que, além de não encontrarem amparo na Lei nº 10.188/01, contrariam os princípios regentes do programa de arrendamento.
A título de exemplo podemos mencionar a cobrança contratual de honorários advocatícios de 20% (vinte por cento) na hipótese de execução judicial da dívida, cláusula que, além de constituir evidente burla ao direito à justiça gratuita8, dificulta a regularização contratual do arrendatário inadimplente, o qual sempre é alguém de baixa renda. Podemos invocar, ainda, a impossibilidade de parcelamento da dívida após o ajuizamento da ação de reintegração de posse, vedação sem amparo legal e que contraria uma política governamental de fomento à moradia. Por fim, a cláusula que autoriza a reintegração de posse em razão de dívidas condominiais, as quais não se confundem com as dívidas de arrendamento (art. 9º da Lei n° 10.188/01), também deve ser encarada como ilegal diante da sistemática legal do programa.
4. Conclusão:
O Programa de Arrendamento Residencial insere-se em um contexto de efetivação do direito à moradia, voltando-se à população de baixa renda. Em razão dessas características, o programa não pode ser encarado por um viés meramente privatista, já que operacionaliza um programa de governo mediante contratos cujos interesses transcendem as esferas meramente individuais.
Por essa razão, à semelhança da orientação fixada pela jurisprudência nos contratos de crédito estudantil, o PAR deve ser encarado como um microssistema jurídico, regido por regras e princípios próprios. Neste contexto, não pode a Caixa Econômica Federal, mera operadora do programa, criar obrigações aos mutuários que não estejam previstas na lei de regência.
Por fim, deve-se sempre levar em consideração a necessidade de se garantir a máxima eficácia do direito à moradia para a população de baixa renda, objetivo principal do PAR, o que também limita os poderes da Caixa Econômica Federal.
Bibliografia:
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
SARMENTO, Daniel. Comentários à Constituição Federal de 1988. Org. Paulo Bonavides, Jorge Miranda e Walber de Moura Agra. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
STARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 9ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
Notas
1 Disponível em: http://downloads.caixa.gov.br/_arquivos/habita/par/CARTILHA_PAR.pdf (consultado em 27/10/2012).
2 Contratos e obrigações comerciais. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 545.
3 Curso de Direito Constitucional Positivo, 28ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 315.
4 STARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 9ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 330 e ss.
5 Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, pp. 90-91.
6 SARMENTO, Daniel. Comentários à Constituição Federal de 1988. Org. Paulo Bonavides, Jorge Miranda e Walber de Moura Agra. Rio de Janeiro: Forense, 2009, pp. 387-388.
7 Neste sentido: REsp 1.031.694/RS (Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 19.06.2009); REsp 1.047.758/RS (Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 29.05.2009).
8 Como é sabido, a Justiça Gratuita é a isenção de todas as despesas processuais como decorrência da assistência jurídica gratuita, inclusive de honorários advocatícios (art. 3º, V, da Lei n° 1.060/50).