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A (dis)função do Ministério Público em meio a ação penal privada: o por( )quê (?!) do parecer pré-sentencial

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4. O PROCESSO COMO ACTUM TRIUM PERSONARUM (JUDICIS, ACTORIS ET REI): DEMONSTRANDO A INCOERÊNCIA DO PARECER PRÉ-SENTENCIAL DE MÉRITO EM RAZÃO DA INVASIVA INFRAÇÃO À FUNÇÃO DO JUIZ

A relação processual penal é desencadeada através de um tripleto fundamental, na qual se estabelece uma dialética de combate entre as teses da acusação e da defesa, estando ambas as figuras intentando atrair o embarque do juiz nas suas respectivas argumentações, para, assim, adquirir, após o esgotamento da cognição processual, uma sentença de mérito condizente com seu requerimento preliminar de condenação/absolvição.

Búlgaro, afirmara em meados do século XIII que processum est actum trium personarum: judicis, actoris et rei (processo é um ato de três personagens: juiz, autor e réu), estipulação esta que se enraizou no âmbito das ciências processuais e perdura até os tempos hodiernos.Na relação penal, a definição das posições processuais é bastante evidente, estando manifesta a colocação do titular da acusação como sujeito responsável pela provocação do Estado-Juiz para que este exerça o poder(-dever) de punição em desfavor do réu, o qual, este último, por sua vez, visa desenredar-se do potencial risco ser constrangido a supressões de seus Direitos e Garantias Fundamentais; por fim, localizado em uma posição diferenciada, ao centro e (supostamente) neutralizado de influências externas, está o juiz.  

Ao juiz, conforme se denota de sua própria nomenclatura, cumpre o ato de julgar. O julgamento da ação, em apertada síntese, trata-se da operação de emanar fundamentadamente alguma conclusão extraída do edifício de elementos trazidos ao feito pelas partes. À pessoa do julgador é derrogado o pressuposto de sintetização racional do conteúdo do processo para, então, emitir um resultado para a ação, o qual, no entanto, deverá ser inexoravelmente encaixado aos fundamentos do sistema normativo. 

Piero Calamandrei (2003, p. 07), ao tratar sobre o que chamou de “crise do direito” ponderou que a infração ao posto do juiz compõe um dos principais agravos ao sistema jurídico, asseverando que em meio ao período da 2ª guerra mundial isso ficou indubitavelmente representado pela “[…] cínica ingenuidade de um ministro nazista, as lettres de justice, mediante as quais, sob o ancién regime, o soberano “sugeria” aos juízes o conteúdo de suas sentenças.”.

A noção de figuras distintas e devidamente alinhadas a específicos cargos de exercício de funções no processo penal é o esteio que gera a possibilidade da instituição de ação penal. Com efeito, a planificação de um arrojado parecer pré-sentencial do Ministério Público em que sejam acomodados argumentos acerca da sintetização dos fatos processuais e posterior estipulação da decisão de mérito da ação penal corrompe não só a posição do juiz, mas também se torna marginal ao preceito da imparcialidade do Parquet perante a cena jurídica. Nesse contexto, de extrema conveniência a lição de Eugênio Pacelli de Oliveira (2007, p. 08):

Uma vez que ao Estado deve interessar, na mesma medida, tanto a absolvição do inocente quanto a condenação do culpado, o órgão estatal responsável pela acusação, o Ministério Público, passou a ser, com a Constituição de 1988, uma instituição independente, estruturado em carreira, com ingresso mediante concurso público, sendo-lhe incumbida a defesa da ordem jurídica, e não dos interesses exclusivos da função acusatória. Nesse sentido, o Ministério Público, e não só o Poder Judiciário, deve atuar com imparcialidade, reduzindo-se a sua caracterização conceitual de parte ao campo específico da técnica processual. 

Em avanço, para que se evite deixar vulnerável nossa posição a possíveis agressões arrimadas na visão de que o parecer pré-sentencial que opine pela absolvição do querelado seja revestido de razão, pois, se ao MP cabe a zeladoria dos princípios constitucionais e jurídicos a manifestação favor rei se justifica em substancial, não se pode esquecer que, ainda assim, o Parquet estará espoliando a autonomia cognoscitiva do julgador ao praticar, lateral e informalmente, a desenvoltura da síntese processual, confeccionando, inclusive, o que se pode chamar de “protótipo de sentença”.

Ao que nos parece, de modo mais adimplente à constelação processual institucionalizada para com a ação penal privada, que, caso o Ministério Público vislumbre a ocorrência de causas de exclusão de punibilidade ou culpabilidade para com o(s) réu(s), como, por exemplo, a inimputabilidade, cabe ao promotor impetrar o remédio constitucional de habeas corpus visando o trancamento da ação penal. Questiona-se: mas o promotor como impetrante de habeas corpus? Sim – e por que não?! Malgrado não lhe seja dada a atenção merecida, o art. 654 do CPP permite que o Ministério Público seja impetrante de habeas corpus, de modo expresso e induvidoso. 

Não há dúvidas de que, agindo assim, o agente ministerial estaria, em exponencial representação a instituição pela qual se encarregou de promover ao ser investido, praticando, contemporaneamente, a obediência de sua imparcialidade e seu dever para com a zeladoria dos direitos e garantias fundamentais (neste caso a manutenção do direito de liberdade), sem necessitar ser metediço às prerrogativas do juiz em julgar e da defesa técnica em defender de modo amplo e irrestrito (art. 5º, LV), pois, enquanto aparte  da ação, ao Parquet é defeso agir conforme qualquer dessas posições. E assim é feito mediante a impetração do habeas corpus, onde existe a confessada e irrestrita possibilidade de defender os direitos fundamentais do réu, como há de ser, de modo coerente a funcionalidade do MP na ação penal privada, por meio de atuação não mais invasiva do que um “colateral attack” (LOPES JR., 2011, p. 633). 

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Sem dúvidas, que a questão atende a um caráter de excepcionalidade, pois, em vista da caracterização do Ministério Público como garantista da ordem social, seria pertinente que a legislação deferisse certa ampliação ao Parquet para se manifestar em favor do réu, nos casos em que o agente ministerial vislumbre que, em meio a ação penal, o querelado agiu sob o pálio de normas penais permissivas, por exemplo. Contudo, na carência de supedâneo legal, não é de adequada compostura a inovação da morfologia do procedimento, pois, conforme já dito, ao processo penal, (a) forma é (para a) garantia (LOPES JR., 2011, p. 422) e, ademais, um erro não justifica o outro, sobretudo se conjugada a questão da existência de mecanismo diverso transversal de proteção do réu, que é o habeas corpus. 

É manifesta a atribulação da mecânica processual que o Parquet propicia quando passa a se julgar julgador e a emitir opinião relacionada a critérios valorativos do mérito da ação penal. Agindo assim, o Ministério Público está, efetivamente, ultrajando o posto do julgador, mormente seja de sua alçada a ponderação referente ao resultado de procedência ou improcedência da ação penal privada. 

Há, portanto, uma fundamental necessidade de buscar a extromissão deste vício ao qual padecem algumas ações penais privadas, devendo tal ideal ser propugnado não só na doutrina, mas também pelos efetivos atores do processo (querelante e querelado) e pelo juiz da causa, cabendo a contundente e imediata impugnação da questão, seja nas solenidades de audiências em que há o pronunciamento do Ministério Público em debates orais, ou nos casos em que seu parecer seja remetido aos autos através de memoriais. Com efeito, a referida medida corresponde não só a um apego pela mera burocracia processual, mas sim a uma perfectibilização do processo aos critérios legais, os quais não preconizam em momento qualquer pela possibilidade de o MP contribuir com qualquer outra funcionalidade na ação que não as da fiscalização da observância da lei.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Felipe Martins de. O poder investigatório do Ministério Público e seus limites na tutela da probidade administrativa: publicidade versus privacidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.

BOSCHI, José Antonio Paganella. Ação Penal: as fases administrativa e judicial da persecução penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 13 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.

CALAMANDREI, Piero. Estudos de Direito Processual na Itália. Editora LNZ. 2003. São Paulo.

GOLDSCHIMIDT, JAMES. Teoria Geral do Processo. Campinas: Editora Minelli, 2003.

LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional). 4ª ed. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010.

__________. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2011.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 7 ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

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Sobre o autor
Affonso Celso Pupe da Silveira Neto

Advogado. Especialista em Direito e Gestão Empresarial com ênfase nas áreas de Contratos e Consultoria Corporativa. Master of Business Administration em Gestão Jurídica Aduaneira e Internacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PUPE NETO, Affonso Celso Pupe Silveira Neto. A (dis)função do Ministério Público em meio a ação penal privada: o por( )quê (?!) do parecer pré-sentencial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3958, 3 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27809. Acesso em: 29 mar. 2024.

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