4 CONCLUSÃO
A inação do Estado no sistema capitalista não se coaduna com os princípios basilares doutrinariamente defendidos. Mesmo entre os ideólogos da política da liberdade de mercado se vislumbrava a necessidade de intervenção do Estado para assegurar a preservação de direitos individuais considerados indisponíveis.
A lógica capitalista subjacente à omissão do Estado diante da agressão pelos agentes econômicos da indústria tabagista é perversa e revela sérias distorções que impregnam o organismo social.
A distrofia estatal parece estar ligada ao fenômeno de reificação humana e sua conseqüente descartabilidade, sem que qualquer responsabilidade seja imputada ao estrato social responsável pela propagação de doenças letais que afetam os direitos fundamentais à vida e à dignidade. Inverte-se à lógica da responsabilidade. O indivíduo, parcamente informado, manipulado, é responsável pela decisão de consumir e tem a suposta capacidade de recusar as substâncias que afetam sua saúde e colocam em risco sua vida.
Os malefícios causados à sociedade pela assimilação passiva das substâncias carcinógenas não são divulgados. A publicidade, adredemente pensada, manipula o inconsciente coletivo e sugere que a decisão de fumar é individual; que as campanhas antitabagistas são veiculadas por extremistas e alarmistas desconectados com a realidade.
Os milhões de dólares gastos pelo Estado para curar as doenças causadas pela indústria do tabaco na ânsia do lucro fácil e irresponsável são assimilados pela indústria de fármacos, que, não obstante, não oferece cura, mas dependência de drogas de elevado preço comercial que, quando muito, procrastinam a morte e limitam os efeitos deletérios dos carcinomas.
A avidez tributária reduz a Administração Pública a mero coletor de impostos, pouco importando o descalabro causado pela atividade econômica no seio social. A corrupção, a falta de visão holística, a impunidade, e a baixa qualificação dos agentes públicos inibem qualquer ação séria destinada a refrear a sanha assassina dos agentes econômicos autofágicos, que no intuito de acumular riquezas olvidam de sua própria humanidade e se fiam no ente moral, como se as pessoas jurídicas de fato vivessem.
Ruelle[32] anotou:
“Tratados de economia... dão a impressão de que o papel dos legisladores e membros responsáveis do governo é encontrar e implementar um equilíbrio particularmente favorável para a comunidade. Exemplo do caos na física nos ensinam, contudo, que, em vez de levaram a um equilíbrio, certas situações dinâmicas ativam desenvolvimentos temporariamente caóticos e imprevisíveis. Os legisladores e governantes responsáveis devem, portanto, considerar a possibilidade de que suas decisões, que buscam produzir um equilíbrio melhor, poderão produzir em vez disso oscilações violentas e imprevistas, com efeitos possivelmente desastrosos.”
BAUMAN[33] descreve com precisão a corrida moderna.
“Então é a continuação da corrida, a satisfatória consciência de permanecer na corrida, que se torna o verdadeiro vício – e não algum prêmio à espera dos poucos que cruzam a linha de chegada. Nenhum dos prêmios é suficientemente satisfatório para destituir os outros prêmios de seu poder de atração, e há tantos outros prêmios que acenam e fascinam porque (por enquanto, sempre por enquanto, desesperadamente por enquanto) ainda não foram tentados. O desejo se torna seu próprio propósito, e o único propósito não-contestado e inquestionável. O papel de todos os outros propósitos, seguidos apenas para serem abandonados na próxima rodada e esquecidos na seguinte, é o de manter os corredores correndo – ‘como marcadores de passo’, corredores contratados pelos empresários das corridas para correr poucas rodadas apenas, mas na máxima velocidade que puderem, e então retirar-se tendo puxado os outros corredores para o nível de quebra de recordes, ou como os foguetes auxiliares que, tendo levado a espaçonave à velocidade necessária, são ejetados pra o espaço e se desintegram. Num mundo em que a gama de fins é ampla demais para o conforto e sempre mais ampla que a dos meios disponíveis é ao volume e eficácia dos meios que se deve atender com mais cuidado. Permanecer na corrida é o mais importante dos meios, de fato o meta-meio: o meio de manter vida a confiança em outros meios e a demanda por outros meios.”
A saúde, a dignidade e a vida são subprodutos da corrida descrita por Bauman[34]. Interessa a todos a submissão aos parâmetros ditados pela publicidade abusiva, enganosa, que suprime a capacidade de raciocínio, de escolha, pela ação direta sobre o inconsciente coletivo e produz a histeria coletiva voltada para o extermínio de milhões de pessoas, unicamente para sustentar o lucro da indústria do tabaco e o prazer do vício incapacitante.
O Estado não adota postura mais dura, pois, além dos motivos anteriormente alinhados, entende que a atividade econômica gera riquezas, empregos, equilíbrio social. Qualquer ação política destinada à eliminação dos fatores de riscos sociais poderá resultar em prejuízo na moeda eleitoral, os votos. O indivíduo, imerso na corrida, não admite que seu status seja ameaçado, ainda que a própria vida esteja comprometida, pois na lógica do mercado o importante é continuar correndo.
Bauman[35]ensina que:
“Podemos dizer que, não conseguindo mais as instituições existentes reduzir a velocidade de movimentos do capital, os políticos perdem poder cada vez mais – circunstância simultaneamente responsável por uma crescente apatia política, um progressivo desinteresse do eleitorado por tudo que tenha caráter ‘político’, à exceção dos saborosos escândalos encenados pelas elites à luz dos refletores, e a queda da expectativa numa possível salvação gerada pelo governo, sejam quais forem seus atuais ou futuros ocupantes. O que é feito e pode ser feito nos escalões de governo influi cada vez menos na luta cotidiana dos indivíduos.”
A liberdade homicida deve ser coarctada por ação do Estado, que mesmo no modelo liberal deve garantir os direitos individuais, mormente os inerentes à vida, à dignidade, à existência da espécie humana.
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Notas
[1] “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”
[2] JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 4ª edição, Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 2006, p. 53.
[3] JUNG. Carl Gustav. Ob. cit., pp. 53 e 54.
[4] Aut. e ob. cit. p. 58.
[5] Apud OUTHWAITE, William; BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996, p. 57.
[6] BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 51.
[7] SMITH, Adam apud ROSSETI, José Paschoal. Introdução à economia. 12ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Atlas, 1987, p.345.
[8] Apud ROSSETI, José Paschoal. Ob. cit. p. 354.
[9] OUTHWAITE, William; BOTTOMORE, Tom. Ob. cit., p. 423.
[10] BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial. 3ª edição, São Paulo: Malheiros, 2004, p. 56.
[11] SANTOS, Fernando Gherardini. Direito do Marketing. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, pp. 198 e 199.
[12] GUERRA, Renata. É proibido fumar, é válido proibir – uma reflexão sobre autoritarismo e liberdade, in NASSETTI, Pietro (organizador). O que você deve saber sobre tabagismo. São Paulo: Martin Claret, 2001, pp.137 e 138.
[13] Lei 8.078/90.
[14] Lei 8.078/90:
“Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.
§ 1º. É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.
§ 2º. É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.
§ 3º. Para os efeitos deste Código, a publicidade é enganosa por omissão quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço.
§ 4º. (Vetado).”
[15] Lei 8.078/90:
“Art. 36. A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal.
Parágrafo único. O fornecedor, na publicidade de seus produtos ou serviços, manterá, em seu poder, para informação dos legítimos interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem.”
[16] HENNINGFIELD, Jack E. apud NASSETTI, Pietro (organizador). O que você deve saber sobre tabagismo. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 9.
[17]FOCCHI, Gilherme Rubino de Azevedo; MALBERGIER, André; FERREIRA, Montezuma Pimenta. Tabagismo: dos fundamentos ao tratamento. São Paulo: Lemos Editorial, 2006, pp. 8 e 9.
[18] Conf. FOCCHI, Gilherme Rubino de Azevedo; MALBERGIER, André; FERREIRA, Montezuma Pimenta. Tabagismo: dos fundamentos ao tratamento. São Paulo: Lemos Editorial, 2006, p. 8.
[19] Conf. Henningfield, Jack E. apud NASSETTI, Pietro (organizador). O que você deve saber sobre tabagismo. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 12.
[20]FOCCHI, Gilherme Rubino de Azevedo; MALBERGIER, André; FERREIRA, Montezuma Pimenta. Tabagismo: dos fundamentos ao tratamento. São Paulo: Lemos Editorial, 2006, pp. 25 a 48.
[21] URL: http://www.inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=dadosnum&link=mundo.htm (acessado em 06 de junho de 2007).
[22] Conf. Alexander Welaussen Daudt. Ob. cit. p. 26.
[23] Conf. Alexander Welaussen Daudt. Ob. cit. pp. 41 a 48.
[24]FOCCHI, Gilherme Rubino de Azevedo; MALBERGIER, André; FERREIRA, Montezuma Pimenta. Tabagismo: dos fundamentos ao tratamento. São Paulo: Lemos Editorial, 2006, pp. 99 a 108.
[25] NUSSBACHER, Amit. Ob. cit. p. 102.
[26] SILVA, Ricardo Luís Alves. Ongonenes e Genes Supresspoores de Tumor in FERREIRA, Carlos Gil e ROCHA, José Cláudio. Oncologia Molecular, São Paulo: Editora Atheneu, 2004, p. 29.
[27] Aut. e ob. cit. p. 37.
[28] Aut. e ob. cit. p. 37.
[29] Aut. e ob. cit. pp. 16 a 24.
[30] MALBERGIER, André e OLIVEIRA JUNIOR, Hercilio Pereira. Dependência de nicotina e comorbidades psiquátricas, in FOCCHI, Gilherme Rubino de Azevedo; MALBERGIER, André; FERREIRA, Montezuma Pimenta. Tabagismo: dos fundamentos ao tratamento. São Paulo: Lemos Editorial, 2006, p. 94.
[31] Disponível em http://www.inca.gov.br/rbc/n_52/v04/pdf/artigo3.pdf (acessado no dia 04 de junho de 2007).
[32] Apud BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p.157.
[33] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, pp. 86 e 87.
[34] Aut. e ob. cit.
[35] Aut. cit. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 27.