3. O Princípio da Igualdade
Primeiramente, é impossível iniciar qualquer explanação sobre o princípio da igualdade sem antes citar a clássica definição de Aristóteles, que afirma que a “igualdade é tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”.
Ainda para Aristóteles
a igualdade existirá entre as pessoas; se as pessoas não forem iguais, elas não terão uma participação igual nas coisas, mas isto é a origem das querelas e queixas (quando pessoas iguais têm e recebem quinhões desiguais, ou pessoas desiguais recebem quinhões iguais). Além do mais, isto se torna evidente porque aquilo que é distribuído às pessoas deve sê-lo ‘de acordo com o mérito de cada uma’.22
Partindo da Grécia Antiga para a Idade Média, podemos observar que o princípio da igualdade foi mencionado em dois artigos da Magna Charta Libertatum, de 1215, quais sejam:
Art. 39 Nenhum homem livre será preso ou detido em prisão ou privado de suas terras ou posto fora da lei ou banido ou de qualquer maneira molestado; e não procederemos contra ele, nem o faremos vir a menos que por julgamento legítimo de seus pares e pela lei da terra.
Art. 48 Não se prenderá nem se espoliará ninguém, seja de que modo for, se não tiver havido julgamento por seus pares, segundo as leis do país.
Já em 1789, na França, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão previu a igualdade em seu artigo 1º, afirmando que
Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem se basear na utilidade comum.
E, dando um salto de mais de século, temos a Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela ONU em 1948, afirmando em seu artigo 7º que
Todos são iguais perante a lei e têm direito sem distinção a uma eqüitativa proteção da lei. Todos têm direito a uma proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitação a uma tal discriminação.23
Acerca da igualdade, Norberto Bobbio afirma que este valor, juntamente com a liberdade,
se enraízam na consideração do homem como pessoa. Ambos pertencem à determinação do conceito de pessoa humana, como ser que se distingue ou pretende se distinguir de todos os outros seres vivos. Liberdade indica um estado; igualdade, uma relação. O homem como pessoa deve ser, enquanto indivíduo em sua singularidade, livre; enquanto ser social, deve estar com os demais indivíduos numa relação de igualdade.24
A Declaração de Independência dos Estados Unidos da América se inicia da seguinte maneira
Quando, no curso dos acontecimentos humanos, se torna necessário a um povo dissolver os laços políticos que o ligavam a outro, e assumir, entre os poderes da Terra, posição igual e separada, a que lhe dão direitos as leis da natureza e as do Deus da natureza, o respeito digno às opiniões dos homens exige que se declarem as causas que os levam a essa separação. Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. (grifo nosso)
A Declaração dos Direitos da Virgínia25, datada de 12 de Junho de 1776, traz em seu artigo 1º a afirmação de que todos os homens nascem igualmente livres e independentes. Para Kelsen é inconcebível e absurdo impor a todos os indivíduos exatamente as mesmas obrigações, ou lhes conferir exatamente os mesmos direitos26.
Para Carl Schimitt, o princípio da igualdade “é imanente ao conceito de lei próprio do Estado de Direito”. Sendo os cidadãos iguais a seus olhos, têm eles igualmente acesso a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo sua capacidade, e sem outra distinção que a de suas virtudes e de seus talentos”.
Segundo a lição de Celso Antonio Bandeira de Mello27, o princípio da igualdade proíbe a arbitrariedade, vez que
tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional.
Sampaio Dória28 afirma que “a igualdade e a desigualdade são ambas direitos, conforme as hipóteses. A igualdade, quando se trata de direitos fundamentais. As desigualdades, quando no terreno dos direitos adquiridos”. Para André Ramos Tavares, “a igualdade implica o tratamento desigual das situações de vida desiguais, na medida de sua desigualação”.
Os elementos ou situações constitucionalmente arrolados (sexo, cor, dentre outros), na realidade, relacionam-se a ocorrências discriminatórias atentatórias de direitos fundamentais, muito comuns em determinadas épocas históricas, utilizadas indiscriminadamente e gratuitamente como forma de distinção e, o mais das vezes, punição.
Tendo em vista que o princípio da igualdade encerra diversos entendimentos e classificações junto à doutrina e tem sido objeto de diversas pesquisas acadêmicas a nível filosófico, social, econômico e jurídico, são diversos os reais sentidos encontrados para este princípio.
3.1 A igualdade perante a lei, ou igualdade formal.
A igualdade perante a lei pode ser conceituada, na forma jurídica, de duas formas: ou através de um conceito formal ou através de um conceito material. O conceito formal de igualdade perante a lei “surge associado ao constitucionalismo liberal e aos ideais emergentes das revoluções americanas e francesa, que afirma a idéia de que todos os homens são iguais perante a lei, ao nível das relações que mantêm com o Poder, entendido este como a única realidade susceptível de ameaçar a liberdade individual de cada sujeito”.
Da generalidade da lei deflui a igualdade. Segundo o art. 6º da Declaração de 1789, “a lei deve ser a mesma para todos, seja quando protege, seja quando pune”.
Fábio Konder Comparato, ao comentar o primeiro postulado ético de Kant29, afirma que “só o ser racional possui a faculdade de agir segundo a representação de leis ou princípios; só um ser racional tem vontade, que é uma espécie de razão, denominada razão prática”. E Comparato prossegue afirmando que “o princípio primeiro de toda ética é o de que o ser humano e, de modo geral, todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio do qual esta ou aquela vontade possa servir-lhe de talante”30.
A respeito do princípio da igualdade, Kelsen afirma que a igualdade perante a lei não teria qualquer significação peculiar, vez que o real sentido do princípio isonômico estaria na obrigação da igualdade na própria lei, atuando como um limite para tal lei. Por isto, afirma que
colocar (o problema) da igualdade perante a lei, é colocar simplesmente que os órgãos de aplicação do direito não têm o direito de tomar em consideração senão as distinções feitas nas próprias leis a aplicar, o que se reduz a afirmar simplesmente o princípio da regularidade da aplicação do direito em geral; princípio que é imanente a toda ordem jurídica e o princípio da legalidade da aplicação das leis, que é imanente a todas as leis – em outros termos, o princípio de que as normas devem ser aplicadas conforme as normas.31
Ainda sobre o princípio da igualdade, Kelsen teceu as seguintes considerações
a igualdade dos sujeitos na ordenação jurídica, garantida pela Constituição, não significa que estes devam ser tratados de maneira idêntica nas normas e em particular nas leis expedidas com base na Constituição. A igualdade assim entendida não é concebível: seria absurdo impor a todos os indivíduos exatamente as mesmas obrigações ou lhes conferir exatamente os mesmos direitos sem fazer distinção alguma entre eles, como, por exemplo, entre crianças e adultos, indivíduos mentalmente sadios e alienados, homens e mulheres.32
Celso Antonio Bandeira de Mello, acerca do princípio da igualdade, afirma que tal princípio
é a norma voltada quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador. Deveras, não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas, a própria edição dela assujeita-se ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas. A lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar eqüitativamente todos os cidadãos. Este é conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da igualdade e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo modo assimilado pelos sistemas normativos vigentes. Em suma: dúvidas não padece que, ao se cumprir uma lei, todos os abrangidos por ela, hão de receber tratamento parificado, sendo certo, ainda, que ao próprio ditame legal é interdito diferir disciplinas diversas para situações equivalentes.33
Maria Garcia, sobre o princípio constitucional da igualdade, assevera que
a mera forma de regulação geral e abstrata, e da aplicação igual da lei, não é garantia suficiente da igualdade. Esta requer, ademais, umas exigências na seleção, pelo legislador, dos critérios de diferenciação, ‘dada a impossibilidade’ de outorgar o mesmo tratamento a todos os cidadãos e a necessidade correlativa de proceder mediante distinções normativas numa ordem jurídica tão altamente diferenciada como a que a complexa sociedade atual exige.34
O princípio da igualdade consiste em tratar igualmente os iguais (igualdade aritmética, própria de justiça comutativa); desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualar (igualdade proporcional, ou geométrica, própria da justiça distributiva, da justiça social). Na fórmula de Rui Barbosa: “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam”.
Oscar Vilhena afirma que é preciso reconhecer, como ponto de partida para qualquer reflexão sobre a igualdade, que a assertiva de que ‘todos são iguais’35, encontrada em grande número de Declarações de Direito, Tratados ou Constituições da modernidade, não pode ser lida como uma proposição de fato, mas sim uma reivindicação de natureza moral”.36 Ainda segundo este autor, “se o princípio da igualdade nos impõe tratar as pessoas com igual respeito e consideração, não sendo as pessoas iguais, diferente deverá ser o tratamento a ser dado a cada uma delas”37.
Para Manuel Gonçalves, há três aspectos que avultam no que tange à igualdade jurídica: “a igualdade de todos perante o Direito, a obrigatória uniformidade de tratamento dos casos iguais e, face negativa, a proibição das discriminações.”38
Entretanto, faz-se necessário distinguirmos diferenciação de discriminação. A diferenciação visa exatamente a assegurar, além das aparências, a igualdade. A discriminação, a favorecer, a pretexto de diferenças, a desigualdade. A diferenciação é racional; enquanto que a discriminação é arbitrária”.39
Segundo Guilherme Machado Dray, “o princípio da igualdade, enquanto elemento concretizador do ideal de justiça social, também assume relevância enquanto princípio orientador de políticas de exclusão social, que apelam à erradicação da pobreza, da fome e da miséria”40. Este princípio da igualdade evoluiu historicamente, vindo a ser entendido na sociedade moderna como um princípio jurídico que pleiteia uma igualdade de oportunidades; deixando de ser um ponto de partida para ser um ponto de chegada. Para tanto, tal princípio tem que passar pelas mãos do Estado, a fim de que este intervenha para a erradicação da pobreza e dos fatores que geram desigualdades sociais.41
3.2 A igualdade na lei, ou igualdade material.
O conceito material da igualdade surgiu, ainda nas palavras de Guilherme Machado Dray, “na sequência das críticas levadas a efeito a propósito do modelo liberal e clássico da igualdade formal perante a lei”. Desta forma, o princípio da igualdade deve atuar “no sentido do tratamento diferenciado de situações concretas dissemelhantes” para evitar o alargamento das desigualdades existentes na sociedade.42
Celso Bastos afirma que “é o princípio da igualdade um dos mais difíceis tratamentos jurídicos. Isto em razão do entrelaçamento existente no seu bojo de ingredientes de direito e elementos metajurídicos. A igualdade substancial postula o tratamento uniforme de todos os homens. Não se trata, como se vê, de um tratamento igual perante o direito, mas de uma igualdade real e efetiva perante os bens da vida”.
Luiz Alberto David Araujo afirma que
“A igualdade material vai vincular o intérprete e o legislador infraconstitucional na preservação dos valores contidos nas normas específicas de proteção constitucional. Assim, o legislador infraconstitucional da igualdade material, tratando sempre diferentemente, de forma privilegiada, dentro dos limites constitucionais, o grupo ou o valor protegido. O intérprete, por seu lado, não pode perder de vista a proteção de tais bens, sempre cuidando de aplicar o direito em conformidade com a proteção constitucional adotada.”
A igualdade material irá se refletir na estrutura social vez que seu desenvolvimento exprime uma evolução do princípio ocorrida recentemente43.
A igualdade material não deve ser vista como meta a ser atingida, mas sim de um ponto de partida. Assim, a igualdade material amplia o conceito de igualdade existente, inserindo-se no interior do princípio quando da interpretação normativa.
Uma vez visto o princípio da igualdade, passaremos agora a observar o sistema interamericano de direitos humanos, sua Convenção, sua Comissão e sua Corte.
3.3 O princípio da igualdade dentro da Convenção Interamericana dos Direitos Humanos
A Convenção Interamericana de Direitos Humanos prevê, em seu artigo 24, o princípio da igualdade redigido da seguinte forma
Artigo 24 – Igualdade perante a lei
Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direitos, sem discriminação alguma, à igual proteção da lei.
Como deixa claro o texto do tratado, somente a igualdade perante a lei foi prevista; de forma com que a igualdade material, como regra em tratados internacionais e constituições, relegados à interpretação da norma.
Outro ponto a ser destacado quanto à previsão do princípio da igualdade dentro da Convenção Interamericana de Direitos Humanos é a sua localização no texto. Há vinte e dois artigos tratando de direitos civis e políticos no Capítulo II - “Direitos Civis e Políticos” na Convenção, do artigo 3º ao 25; sendo que o princípio da igualdade foi inserido tão somente no penúltimo artigo. Interessante observar que tal princípio, o da igualdade, tão importante para a mantença de ordenamentos jurídicos e, principalmente, para o atingimento da justiça social, está previsto depois de outros artigos que prevêem direitos não menos importantes, mas com certeza decorrentes do princípio da igualdade, como por exemplo o direito de reunião, liberdade de associação, direito de retificação ou resposta, direito à nacionalidade, dentre outros.