3. Conceito de Políticas Públicas
As políticas públicas são necessariamente instrumentos de governança estatal, ou seja, são resultado da atividade precípua do Estado a de governar. E governar não é apenas gerir a situação presente, mas também projetar o futuro, pensando a sociedade com maior espaço de tempo.
A ideia de política pública como hoje a conhecemos, como um instrumento do qual se vale o Estado para proporcionar a concretização de valores e opções políticas, surgiu a partir da Segunda Grande Guerra Mundial, onde os Estados deixaram seu papel de Estado que se limita não invadir a esfera de liberdade do cidadão, para assumir o papel do Estado provedor ou intervencionista, que busca além dos respeito aos direitos individuais, efetivar as demandas da sociedade que passam agora a fazer parte do rol de deveres estatais e perfazem os chamados direitos sociais. Nas palavras de Fábio Konder Comparato (1997) “a legitimidade do Estado contemporâneo passou a ser a capacidade de realizar, com ou sem a participação ativa da sociedade, - o que representa o mais novo critério de sua qualidade democrática -, certos objetivos predeterminados” (p.43). Esse compromisso assumido pelo Estado contemporâneo em atender aos valores positivados na Constituição é umas das características do neoconstitucionalismo, e hoje o movimento neoconstitucionalista é o principal argumento para submeter as políticas públicas ao crivo do Judiciário.
Ana Paula de Barcellos elenca características dessa nova fase do constitucionalismo, e as divide em dois grupos: um que congrega elementos metodológicos-formais e outro que reúne elementos materiais. Dentro do primeiro grupo estão presentes três premissas fundamentais: a) normatividade da Constituição, ou seja, o reconhecimento de que as normas constitucionais também são dotadas de imperatividade, e como tais exigíveis perante os tribunais; b) a superioridade da Constituição em relação a ordem jurídica; c) a centralidade da Constituição dentro do sistema normativo que integra, fazendo com que os demais ramos do direito só encontrem validade se estiverem em consonância com a norma superior – nessa perspectiva surge o direito administrativo constitucionalizado. No segundo grupo encontramos dois elementos caracterizando o neoconstitucionalismo, quais sejam: a) a incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos constitucionais; b) a expansão dos conflitos específicos e gerais entre as opções normativas e filosóficas existentes dentro do próprio sistema constitucional.
Dentro desses grupos apresentados pela autora, encontra-se no segundo, que versa sobre os elementos materiais caracterizadores do neoconstitucionalismo, a razão do Estado contemporâneo ter se revestido do papel do Estado provedor, assim como, os elementos necessários para a compreensão da lógica de submissão das políticas públicas à apreciação jurisdicional. Isso porque, a incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos constitucionais, e tendo por base que o novo movimento constitucional acredita na força normativa da Constituição, vincula o Estado a atender o quanto preceituado na Lei Maior de forma que desrespeitá-la é o mesmo que não cumprir uma norma com efeito vinculante para o gestor, gerando a possibilidade de intervenção do Judiciário na esfera administrativa.
No que tange a expansão dos conflitos específicos e gerais entre as opções normativas e filosóficas existentes dentro do próprio sistema constitucional, a autora identifica os conflitos específicos quando existe divergência entre comandos constitucionais, ao passo que os conflitos gerais dizem respeito ao próprio papel da Constituição que, ora é um diploma que impõe ao cenário político um conjunto de decisões valorativas – concepção substancialista, e ora tem apenas como papel garantir o funcionamento adequado do sistema de participação democrático, fincando a cargo da maioria, em cada momento histórico, a definição de seus valores e de suas opções políticas – concepção procedimentalista. Melhor explicando esse conflito, a autora relata que:
Esse conflito, longe de ser apenas um debate de interesse acadêmico, afeta a concepção do aplicador do direito acerca do sentido e da extensão do texto constitucional que lhe cabe interpretar e, a fortiori, repercute sobre a interpretação jurídica como um todo. É fácil perceber que uma visão fortemente substancialista tenderá a justificar um controle de constitucionalidade mais rigoroso e abrangente dos atos e normas produzidos no âmbito do estado, ao passo que uma percepção procedimentalista conduz a uma postura mais deferente acerca das decisões dos Poderes Públicos. (BARCELLOS, p. 8)
Vale ressaltar, as concepções substancialista e procedimentalista convergem em um ponto, ao afirmarem que os direitos fundamentais formam um consenso mínimo oponível a qualquer grupo político, ou seja, independente de considerar ou não a Constituição como uma norma com opções políticas cogentes, não há como se desvencilhar das imposições realizadas pelos direitos fundamentais, seja no sentido de exigir uma omissão estatal ou uma ação.
Dentro dessa ideia de ações estatais exigidas constitucionalmente, vale fazer referencia aos objetivos fundamentais traçados no art. 3º da CF, objetivos que não devem distanciar-se de qualquer decisão estatal que vise o interesse de toda a coletividade. Antes de qualquer argumento de discricionariedade que possa ser usado para colocar outras pretensões à frente da efetivação dos objetivos fundamentais, aparece a imperatividade da norma constitucional que no novo prisma da constitucionalização do direito administrativo, não permite excluir a filtragem do ato administrativo do parâmetro constitucional.
Dentre as disposições mais conhecidas que exigem uma prestação estatal positiva estão os intitulados direitos sociais, que tiveram o seu rol definido no Brasil através do art. 6º, caput, da Constituição Federal, e são hoje considerados um fundamento das políticas públicas brasileiras e também o mais forte dos argumentos para permitir o controle jurisdicional sobre a formulação dessas ações governamentais. Os direitos sociais são considerados como direitos fundamentais de segunda geração que além das pretensões sociais, guarnecem também os direitos econômicos e culturais. Os direitos fundamentais são garantias alcançadas pela sociedade em um longo processo histórico marcado por pleitos e reivindicações. São considerados em sua gênese como direitos humanos, pois refletem condições que são pretendidas por toda a humanidade.
As lutas em torno do reconhecimento e da positivação a nível universal dos direitos fundamentais adveio após um longo período de desrespeito a essas liberdades, que se deu na Segunda Guerra Mundial, onde a humanidade presenciou uma total banalização dos direitos fundamentais do homem, sendo exigido após o seu encerramento que o mundo formalizasse o dever de respeito e manutenção dessas liberdades. Após a Segunda Guerra surgiram importantes documentos que firmaram esse compromisso a nível universal, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos assinada em 10 de dezembro de 1948, e a Convenção Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966. Esses são apenas dois dos documentos existentes que buscam proteger os direitos fundamentais de possíveis restrições e mazelas que possam lhes atingir.
Como propósito de uma melhor compreensão acadêmica dos direitos fundamentais, a literatura jurídica adotou uma divisão dessa categoria em cinco gerações. Uma primeira que corresponde aos direitos individuais, ou liberdades negativas; uma segunda que é formada pelos direitos econômicos, sociais e culturais que se traduzem em direitos públicos subjetivos e de caráter positivo; a terceira que se assentaria sobre a fraternidade; uma quarta condizente aos direitos que surgem em razão do movimento de globalização; e uma quinta e última geração que traria em seu bojo o direito à paz.
As políticas públicas são consideradas como instrumentos de efetivação dos direitos sociais. São os programas de ação do governo para alcançar objetivos determinados dentro de certo espaço de tempo e que inevitavelmente demandam dinheiro para se concretizarem. As políticas públicas são resultados de um processo político de escolhas de prioridades para o governo, pois a limitação dos recursos públicos exige essa análise de prioridades estatais, que sofrem influencia direta do estabelecido constitucionalmente.
Tendo por base de que a Constituição interfere, ou ao menos direciona as escolhas governamentais, não se pode conceber que a mesma Constituição aniquile o espaço de deliberação para escolhas das políticas públicas ou do destino a ser dado aos recursos públicos. A definição dos gastos públicos é um momento político majoritário, e que está circunscrito a determinadas exigências constitucionais, o que não se pode conceber é que o mesmo Estado democrático que elege direitos fundamentais de observação obrigatória por parte dos Poderes Públicos, admita também que seja retirada das mãos dos que foram legitimamente eleitos para tal fim, a escolha das políticas públicas e transferindo-a para as mãos dos juristas.
Assentado está que, as políticas públicas são instrumentos de governança estatal e que possuem como principal fundamento a efetivação dos preceitos constitucionais, devendo obediência a Constituição, frente ao poder normativo, centralizador e superior desse diploma legal. Feita essa pequena introdução a respeito da possibilidade de análise jurisdicional das políticas públicas, passemos agora a uma análise mais técnica desses instrumentos, seriam eles resultado da função política do Executivo, revestindo-se por assim dizer de atos políticos ou de governo? Ou seriam apenas atos administrativos, responsáveis pela concretização da norma legal, no caso a Constituição, ou seriam ainda leis e por tanto passíveis do controle de constitucionalidade quando afronte as regras e princípios constitucionais? Enfim, qual a natureza jurídica das políticas públicas, é o que passaremos a analisar.
3.1. Natureza Jurídica das Políticas Públicas;
Fábio Konder Comparato, em seu Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas, afirma que as políticas públicas não devem ser entendidas como normas, nem como ato, mas engloba tais elementos, visto que as políticas devem ser entendidas como atividades, ou seja, um conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um objetivo determinado. Em brilhante raciocínio o autor citado distingue os elementos que constituem as políticas públicas e revela a sua natureza diferenciada dos elementos que a compõem, vejamos:
A política com o conjunto de normas e atos é unificada pela sua finalidade. Os atos, decisões ou normas que a compõem, tomados isoladamente, são de natureza heterogênea e submetem-se a um regime jurídico que lhes é próprio. De onde se segue que o juízo de validade de uma política – seja ela empresarial ou governamental – não se confunde nunca com o juízo de validade das normas e dos atos que a compõem. Uma lei, editada no quadro de determinada política pública, por exemplo, pode ser inconstitucional, sem que esta última o seja. Inversamente, determinada política governamental, em razão de sua finalidade, pode ser julgada incompatível com os objetivos constitucionais que vinculam a ação do Estado, sem que nenhum dos atos administrativos praticados, ou nenhuma das normas que a regem, sejam, em si mesmos, inconstitucionais. (COMPARATO, p. 45)
Assim, também não é dado confundir o conceito de política pública com o de serviço público, visto que o primeiro é muito mais amplo englobando a coordenação e a fiscalização das prestações estatais, sendo os serviços públicos uma decorrência da efetivação das políticas, e que possuem regramento próprio a respeito de como devem ser prestados e de seu controle (Lei 8987/1995).
A origem normativa da política pública é a lei, o Poder Legislativo. Não é por outro motivo que Locke aponta o poder legislativo como o primeiro e fundamental direito positivo de todas as comunidades humanas, isso porque, se acreditarmos que o Estado Moderno nasceu de uma renuncia do homem em prol da preservação da vida, o primeiro instrumento utilizado para impor limites a vida em sociedade e consequentemente preservar a vida e a propriedade, foi a lei. Lei que em sentido geral e abstrato regulamenta a atividade estatal e impõe limites ao convício social, deixando de lado o estado absolutista que se perfazia na vontade individual e soberana de seu chefe.
A CF prevê que tais ações governamentais devem ser expressas através de leis, é o que se vê, por exemplo, através do art. 165 da CF, que dispões sobre orçamento, que com expressões como diretrizes, prioridades, planejamento, dentre outras, deixa claro que o orçamento público é uma política pública governamental. Entretanto, não pode se desprezar que também as políticas públicas podem se materializar através de decretos e portarias, quando são mais pontuais, chamadas de programas de ação, como ocorre, por exemplo, com o Programa Bolsa Família que foi instituído por lei, mas regulamentados através do decreto nº 5.209/2004.
Segundo Maria Paula Dallari (1996), o processo de formação das políticas públicas que inclui a eleição política das diretrizes e dos objetivos, se insere dentro do movimento de “procedimentalização da relação entre os poderes públicos”, expressão cunhada por Massimo Giannini. Para a autora esse movimento é que torna a política pública um importante instrumento de análise do direito administrativo, senão vejamos:
A formulação da política consistiria, portanto, num procedimento, e poder-se-ia conceituar, genericamente, os programas de ação do governo como atos complexos. O incremento das atividades concernentes à elaboração das políticas e à sua execução insere-se num movimento de “procedimentalização das relações entre os poderes públicos”, a que se refere, mais uma vez, Massimo Giannini. Esse fenômeno de procedimentalização, no qual sobressai o poder de iniciativa do governo – e que diz respeito aos meios, ao pessoal, às informações, aos métodos e ao processo de formação e implementação das políticas –, é o ângulo sob o qual se justifica e se faz necessário o estudo das políticas públicas dentro do direito administrativo. (DALLARI, p. 7)
O controle jurisdicional das políticas públicas pode incidir em três aspectos destas, primeiro na sua finalidade, segundo nos meios empregados para sua efetivação e terceiro na maneira de sua estruturação. Assim, uma política pública pode ser inconstitucional, e, por conseguinte passível de controle do Judiciário a caso sua finalidade não esteja compatível com a Lei Maior. A segunda hipótese que permitiria análise judiciária da política implementada, seria no caso de os meios que seriam necessários para a sua efetivação não serem implementados.
Da mesma sorte também pode ensejar a sua judicialização pelo fato dos meios empregados para sua efetivação gerarem um efeito negativo na sociedade, desrespeitando outros princípios constitucionais, ou por simplesmente não serem promovidos os meios necessários para a sua efetivação. Nesse sentido, veja-se a ementa do julgado do RE 559.646, onde a Suprema Corte entende que determinada política pública é passível de controle do Judiciário em razão de lhe faltar as condições objetivas de implementação.
DIREITO CONSTITUCIONAL. SEGURANÇA PÚBLICA Agravo regimental EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PROSSEGUIMENTO DE JULGAMENTO. AUSÊNCIA DE INGERÊNCIA NO PODER DISCRICIONÁRIO DO PODER EXECUTIVO. ARTIGOS 2º, 6º E 144 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. O direito a segurança é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. 2. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo. Precedentes. 3. Agravo regimental improvido. (RE 559646 AgR, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 07/06/2011, DJe-120 DIVULG 22-06-2011 PUBLIC 24-06-2011 EMENT VOL-02550-01 PP-00144)
Também é possível encontrarmos uma política com finalidade constitucional, mas que se vale de instrumentos, leis e atos, que desrespeitam a mesma Constituição na qual se funda. Como exemplo dessa última possibilidade, Comparato cita o fato de uma política de estabilidade monetária fundada na prática de juros bancários extorsivos e na sobrevalorização do câmbio, pode-se se revelar, de modo geral, incompatível com os fundamentos constitucionais de toda a ordem econômica.
A terceira hipótese de violação de análise jurisdicional de uma política pública que afronta a Constituição reside na sua maneira de estruturação, e é exemplificada por Konder Comparato na possibilidade de uma política estadual ou municipal de saúde pública desvinculada do sistema único de saúde imposto pelo art. 198, CF. Assim, em que pesa a política ter fins legais, meios hábeis a produzir efeitos, encontra-se estruturada de forma que não condiz com o sistema constitucional.
Não se pode ainda olvidar da possibilidade de uma política pública ser sindicada ao Judiciário em razão de uma omissão do legislador ou do administrador. E nesses casos deve-se ter cuidado ante a possibilidade de abertura para um ativismo judicial muitas vezes descomedido. Nesse inter, o STF já se posicionou favorável à possibilidade de se requerer junto ao Judiciário a implementação de determinada Política Pública, vejamos:
EMENTA Agravo regimental no agravo de instrumento. Constitucional. Legitimidade do Ministério Público. Ação civil pública. Implementação de políticas públicas. Possibilidade. Violação do princípio da separação dos poderes. Não ocorrência. Precedentes. 1. Esta Corte já firmou a orientação de que o Ministério Público detém legitimidade para requerer, em Juízo, a implementação de políticas públicas por parte do Poder Executivo, de molde a assegurar a concretização de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos garantidos pela Constituição Federal, como é o caso do acesso à saúde. 2. O Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a Administração Pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes. 3. Agravo regimental não provido. (AI 809018 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 25/09/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-199 DIVULG 09-10-2012 PUBLIC 10-10-2012)
Assim, não é mais surpresa que o Poder Judiciário, valendo-se do caráter normativo da Constituição, sentencie no sentido de impor ao Executivo ou ao Legislativo uma obrigação de fazer, visando a implementação de determinados comandos constitucionais que carecem de implementação de política pública para lograrem a sua devida concretização. Ao adotar tal posicionamento o Judiciário não o vislumbra como um ataque ao princípio da separação dos podres, mas pelo contrário, acredita ser uma forma de efetivação das normas constitucionais.
Frise-se também que as políticas públicas são vistas como medidas assecuratórias de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, ou seja, não é possível a concretização de tais demandas sem que esse conjunto de atos e leis (políticas públicas) sejam devidamente elaborado por quem lhes compete, resultando em uma obrigação constitucional, um dever jurídico do estado. Nesse sentido:
E M E N T A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - RECURSO IMPROVIDO. - A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). - Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das "crianças de zero a seis anos de idade" (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. - A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. - Os Municípios - que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. - Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à "reserva do possível". Doutrina. (RE 410715 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 22/11/2005, DJ 03-02-2006 PP-00076 EMENT VOL-02219-08 PP-01529 RTJ VOL-00199-03 PP-01219 RIP v. 7, n. 35, 2006, p. 291-300 RMP n. 32, 2009, p. 279-290)
O STF reconhece que a prerrogativa de elaboração das Políticas pertence ao Legislativo, mas acredita que em situações excepcionais pode o Judiciário intervir, a fim de que a política pública prevista na Constituição seja efetivamente implementada. Veja-se o seguinte julgado:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TRANSPORTE DE ALUNOS DA REDE ESTADUAL DE ENSINO. OMISSÃO DA ADMINISTRAÇÃO. EDUCAÇÃO. DIREITO FUNDAMENTAL INDISPONÍVEL. DEVER DO ESTADO. 1. A educação é um direito fundamental e indisponível dos indivíduos. É dever do Estado propiciar meios que viabilizem o seu exercício. Dever a ele imposto pelo preceito veiculado pelo artigo 205 da Constituição do Brasil. A omissão da Administração importa afronta à Constituição. 2. O Supremo fixou entendimento no sentido de que "[a] educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental[...]. Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam essas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos políticos-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais impregnados de estatura constitucional". Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento.(RE 603575 AgR, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 20/04/2010, DJe-086 DIVULG 13-05-2010 PUBLIC 14-05-2010 EMENT VOL-02401-05 PP-01127 RT v. 99, n. 898, 2010, p. 146-152)
O argumento de que o sistema de controle entre os poderes é o mais cogente para fundamentar a possibilidade de demandar em juízo a implementação das políticas públicas, não parece ser o melhor. Isso porque a própria Corte reconhece que a competência não é sua, mas valendo de excepcionalidades sindicaliza o ato da política ao seu crivo. Em verdade, deveria a Corte valer-se de argumentos técnicos para por fim a celeuma a respeito de ser ou não a política pública passível de controle pelo Poder Judiciário. E o principal argumento seria que por ser tais programas/políticas públicas um conjunto de atos e leis, e ser permitido que tais atos normativos sejam passíveis de controle de constitucionalidade pelo STF através do controle concentrado – art. 102, I, “a”CF – nada impede que sejam submetidos ao crivo do Judiciário.
Da mesma sorte, se o que se quer questionar em determinada política é seu fundamento, por via de argumentos técnicos também seria possível submetê-la a apreciação do Judiciário, pois se um programa se funda em princípios inconstitucionais, tudo aquilo que decorrer dela também o será, e a consequência da declaração de inconstitucionalidade é erga omnes atingindo a todos indistintamente. Por fim, a atribuição dada ao STF de guardião da Constituição lhe permite muitas coisas, e dentre elas analisar a real coerência de determinada política pública, mas é preciso ter em mente que também são protegidas constitucionalmente as atribuições do Legislativo e do Executivo, não sendo dado ao guardião da Norma Maior o poder de desconsiderar os seus comandos a fim de estabelecer o que se entende por correto na visão de um Tribunal.