O Estado, seus fins e o orçamento público

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08/05/2014 às 15:39
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1.3 A concretização das necessidades públicas por meio do orçamento e o custo dos direitos.

Como antes exposto, o Estado surge como meio para satisfazer as necessidades públicas. Para tanto, ele carece de uma atividade financeira; nessa linha, Manoel Cavalcante afirma que:

para atingir os seus fins o Estado precisa de receitas, sendo certo que a sua principal fonte de recursos decorre da instituição de tributos. A atividade financeira, portanto, não configura um fim em si mesmo, mas tem natureza instrumental, representando um meio para a consecução de fins. (itálico consta no original)

Por isso, o Estado sem recursos não possui meios de cumprir suas obrigações. Isso implica que, para que o Estado satisfaça as necessidades públicas, tenha ele uma atividade financeira sólida, com a qual possa arrecadar receitas suficientes para fazer frente aos serviços que ele se propõe a prestar.

Nesse diapasão, após o abastecimento dos cofres públicos, o Estado, por meio do orçamento, escolherá quais bens públicos irá prestar. Tal prestação é efetivamente realizada por meio das despesas públicas. “Por isso o discurso de proteção e implementação dos direitos passa por uma análise orçamentária que avaliará como e de que forma o Estado pode efetivar tais direitos.” [42]

No caso do Brasil, com a Constituição de 1988, o Estado brasileiro ampliou seu papel provedor, ou seja, ampliou o rol de bens que devem ser prestados pelo Estado, como os do art. 6º da CF/88. Sem olvidar, é claro, outros tantos direitos que requerem sua concretização por meio de despesas públicas, pois como será demonstrado adiante, não há direitos sem custos, independentemente da geração/dimensão a que pertençam.

Ademais, a análise orçamentária, em especial a realização/autorização de despesas, permite a identificação política do próprio Estado; como uma espécie de identidade estatal, haja vista que, por meio dela, pode-se conhecer as opções políticas dominantes, como também dimensionar a própria extensão estatal, se um Estado Liberal – meramente regulador, e um tanto quanto espectador da vida social – ou um Estado Social/Provedor – o qual intervêm de forma ativa no meio social, tomando para si a prestação de diversos Bens Públicos, com o escopo de satisfazer as necessidades da sociedade civil.

Assim, “a realização dos objetivos escolhidos pelos instrumentos políticos e jurídicos, em especial a concretização de direitos, possuem como lastro a arrecadação de tributos” [43], ou seja, a obtenção de receitas suficientes, e, indissociavelmente, a realização de despesas públicas para prover as necessidades as quais o Estado se obriga perante escolhas políticas prévias. Por isso, a satisfação das necessidades públicas[44] passa, necessariamente, pelo Orçamento Público, com a previsão de receitas e a autorização de dispêndios para tanto.

No que concerne à classificação de direitos, é clássica a divisão destes em prestacionais ou positivos (2ª geração/dimensão) e direitos negativos ou de abstenção (1ª geração/dimensão). Os primeiros, conforme o próprio nome, careceriam de uma atuação estatal, um fazer; os segundos, para sua efetivação, necessitariam, apenas, de inação estatal. Assim, os prestacionais, para sua implementação, precisariam de gastos públicos; já os negativos, só de um não fazer estatal.

Com a devida vênia, não assiste razão a tal divisão, pois pela ótica estatal/financeira, qualquer direito requer gasto público, e por isso tal classificação é resquício de um modelo liberal-conservador, como bem observa Flávio Galdino:

A crença na ausência do custo de alguns direitos permite a consagração de uma orientação conservadora máxima de tais direitos (normalmente os estritamente individuais: liberdade e, principalmente, propriedade) em detrimento dos chamados sócias, o que se mostra, a partir da compreensão de que todos custam, absolutamente equivocado, descortinando a opção ideológica encoberta pela ignorância.[45]

Com efeito, para que o Estado garanta a propriedade e a liberdade (direitos típicos negativos ou de 1º geração), por exemplo, ele precisa dispor de um aparato na segurança pública, no Poder Judiciário – visto que, salvo poucas exceções, qualquer violação desses direitos terá que ser estancado por este poder –, além de investimentos em vias públicas (liberdade de locomoção), etc. Ora, toda essa estrutura requer recursos, não só para instituí-las, como também para mantê-las em funcionamento e, portanto, necessitando de um fazer estatal. Assim, no que concerne aos custos, todos os direitos são positivos e, por isso, demandam gastos pelo poder público.

Da mesma forma é o escólio de Basile Christopoulos, ao afirma que:

do ponto de vista jurídico do Orçamento Público, todos os direitos fundamentais devem ser tratados sem diferenciação. Isso se deve ao fato de que, quando se trata de orçamento, não se irá observar a tutela das omissões, mas sempre de ações positivas que o Estado deve tomar e que, por isso, geram despesas para o ente público.[46]

Portanto, sob o ponto vista jurídico/orçamentário, não há sustentação teórica para essa classificação na qual os direitos de primeira geração não teriam custos para o Estado, ou seja, a afirmação de que apenas os direitos sociais trazem custos para ente público não passa de mera posição ideológica de cunho liberal, bem observa isto, José Casalta Nabais:

Pois bem, centrando-nos nos custos financeiros dos direitos, a primeira verificação, que devemos desde já assinalar a tal respeito, é esta: os direitos, todos os direitos, porque não são dádiva divina nem frutos da natureza, porque não são autorealizáveis nem podem ser realisticamente protegidos num estado falido ou incapacitado, implicam a cooperação social e a responsabilidade individual. Daí decorre que a melhor abordagem para os direitos seja vê-los como liberdades privadas com custos públicos.[47]

E continua o autor lusitano:

Na verdade, todos os direitos têm custos comunitários, ou seja, custos financeiros públicos. Têm portanto custos públicos não só os modernos direitos sociais, aos quais toda a gente facilmente aponta esses custos, mas também têm custos públicos os clássicos direitos e liberdades, em relação aos quais, por via de regra, tais custos tendem a ficar na sombra ou mesmo no esquecimento. Por conseguinte, não há direitos gratuitos, direitos de borla, uma vez que todos eles se nos apresentam como bens públicos em sentido estrito.[48]

Por isso, na perspectiva financeira, deve-se abandonar tal classificação, pois, conforme Genaro A. Carrió: “as classificações não são certas ou erradas – são úteis ou inúteis[49], na medida em que servem para identificar melhor o objeto de análise.”[50] Isto é, tal classificação além não delimitar melhor o objeto de estudo – portanto, inútil – , haja vista que não traz um critério diferenciador no que concerne ao âmbito financeiro estatal, esconde uma posição ideológica, a qual sobrepõe alguns direitos (propriedade, liberdade, etc.) em detrimento de outros, saúde, educação, moradia.

Isto é, sob uma concepção liberal/burguesa tenta-se estabelecer a ficção, falaciosa, de os direitos ditos de primeira geração não gerariam dispêndio. Mas como fora mostrado, sob o aspecto orçamentário, todo direito gera custo, e, por conseguinte, não deve haver prevalência destes direitos em relação aos ditos prestacionais, sob o argumento de não demandarem recursos, pois não são dádivas divinas: não caem do céu.


1.4 O dever fundamental de pagar tributos.

Os tributos têm papel central nos estados contemporâneos, haja vista é por meio da atividade fiscal que se obtém recursos para fazer frente às necessidades públicas. Assim o que era antes retirado dos súditos para custear despesas do rei, passou a ser o meio satisfação das necessidades públicas, e, por isso, ocorreu uma mutação semântica no termo tributo –a antes entendido como exação indevida – passou a ser compreendido como um dever fundamental, haja vista que significa o meio para se contribuir com o gasto público.[51]

Em que pese não está expresso na constituição brasileira[52], o poder de tributar, extremo e fundamental, corresponde à outra face dos deveres estatais, ou seja, aos encargos com os serviços públicos atribuídos ao Estado, porque os tributos são reservados exclusivamente para fins públicos.[53]

Nessa linha, como demonstrado acima, o Estado tem deveres para com seus cidadãos que legitimam sua existência. Porém, tais deveres possuem como outra face o direito que o Estado tem de tributar o patrimônio de seus súditos, na medida de sua capacidade contributiva[54]. Por isso, pode-se afirmar que, como consectário dos direitos fundamentais, que o Estado tem por obrigação de assegurar, tem-se o dever fundamental de pagar tributos, visto que:

Para remunerar os indivíduos que estão a seu (do Estado) serviço e para manter os serviços públicos que lhe compete realizar, o Estado precisa de recursos regulares, que somente pode obter dos cidadãos, mediante contribuições diversas: são os impostos e as taxas. O Estado não tem direito de propriedade sobre os bens dos indivíduos, nem direito de domínio. Mas, os cidadãos devem o imposto, e é uma dívida de justiça, porque representa a cota de cada um nas despesas que o Estado realiza para o bem de todos.[55]

Com efeito, em contrapartida aos direitos fundamentais, tem-se o dever fundamental de pagar tributos, pois conforme a feliz expressão de Celso A. Bandeira de Mello, quem dá os fins, tem que oferecer os meios. Assim, deve-se compreender que sua finalidade (dos tributos), em última análise, é atender à despesa pública (meio pelo qual o Estado supre as necessidades públicas), sendo essa limitada ao que a coletividade desejava, e estivesse dentro da limitação de receita. E por isso, todo o cidadão deve obediência a esse dever cívico: o de pagar tributos. Com isso, quer se demonstrar que o dever de pagar tributos é forjado sob natureza instrumental do Estado, ou melhor, seria um consectário do fins estatais, o meio pelo qual ele obtém receitas para satisfazer as necessidades públicas.

Enfatizando que pagamento de tributos é um dever fundamental, Manoel Cavalcante afirma que:

Para justificar o pagamento de impostos, seguindo a linha doutrinária citada pensamos que guarda pertinência com o nosso sistema a teorização de dever fundamental. O dever de contribuir representa uma situação jurídica passiva, decorrente do poder de tributar, juridicamente controlado, que está lastreada num Estado Fiscal que tem sua principal fonte de receita nos tributos e se apóia na liberdade de atividade econômica e no direito de propriedade, servindo esses direitos, por excelência, de limitação ao poder tributário. Esse dever não se acha definido expressamente na Constituição, mas consta implicitamente nas normas que detalham o Sistema Tributário Nacional. (itálico consta do original; negrito não consta do original)[56].

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Por conseguinte, pode-se afirmar que o pagamento de tributos é a contrapartida a qual os súditos estão submetidos para que o Estado cumpra com seus deveres, ou seja, por meio deles, os tributos, “o Estado exerce suas finalidades, de ordem complexa, com vistas à realização do bem comum que importa no cumprimento dos objetivos fundamentais da república”.[57]

Ademais, fazendo um paralelo entre os direitos e deveres fundamentais, anota Gabriel Ivo que “correlato ao dever fundamental de pagar tributos, está o direito a tributação adequada constitucionalmente”[58], ou seja, “do princípio da tipologia tributária, extraí-se o dever fundamental de pagar tributos, porquanto direito e dever são reflexos.”[59]

Decerto, ver o pagamento de tributos como decorrência da tipologia tributária não excluí a legitimação advinda da necessidade de meios para atingir os fins estatais[60], na verdade, se complementam, na medida em que a tipologia daria os contornos adequados e legítimos ao dever de colaborar com os recursos necessários a satisfação das necessidades públicas.

Em apertada síntese, o Estado brasileiro se compromete a uma gama de obrigações, positivadas em diversos instrumentos normativos, em especial na Constituição Federal de 1988. E para a efetivação dessas obrigações, o Estado carece de um lastro financeiro, o qual é obtido, principalmente, por meio da tributação, contrapartida necessária e justa dos cidadãos frente às prestações que dispõem, sem olvidar, por certo, dos limites traçados pelo constituinte no exercício de tal direito estatal, como respeito à capacidade contributiva, à isonomia tributária, proibição de efeito confiscatório etc.

Por isso, é possível afirmar que há o dever fundamental de pagar tributos, o qual se encontra inserido no Sistema Tributário Nacional instituído pela Constituição Federal de1988[61]. Em que pese não haver no texto constitucional brasileiro essa previsão, como há na constituição espanhola[62], o dever de pagar tributos é consectário dos direitos e garantias, haja vista que quem dá os fins tem que dá os meios, ou seja, “el hecho de que toda organización política necesite medios económicos para su supervivencia y para o cumplimiento de sus fines.”[63](negrito não consta do original) Endossando o dito, Rosita de Sousa afirma que:

O estreito relacionamento povo e governo cria direitos e deveres recíprocos, se o governo tem o dever de promover o bem comum a que o povo tem direito, este, por sua vez, tem o dever de contribuir para o erário público, a fim de que aquele possa realizar todo um programa de trabalho em geral e de todas as obras públicas necessárias ao cumprimento da finalidade que dele se espera, e às quais se obrigou.[64]

Assim, deve-se compreender que os tributos decorrem de um dever fundamental, e que, portanto, não podem ser considerados nem como um sacrifício para os cidadãos nem como uma simples relação de poder, em que o Estado faz meras exigências discricionárias aos súditos, mas sim como uma contrapartida necessária para a consecução dos seus fins: o Bem Comum, e, por conseguinte, seu fundamento reside em ser o meio necessário para lastrear a subsistência do Estado como ser instrumental, que presta serviços públicos e redistribuí renda, pois se a este é dada a missão de buscar o bem-estar social, cabe aos cidadãos contribuir para que seja alcançado o objetivo colimado.

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Sobre o autor
Joaquim Cabral da Costa Neto

Procurador Federal.<br>Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Alagoas.<br><br>

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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