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A responsabilidade penal pela exposição sexual e transmissão sexual do HIV em relações sexuais consentidas no Brasil

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27/06/2014 às 16:32
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O artigo estuda o Código Penal brasileiro, a doutrina penal entre os anos de 2008 a 2010 e 2013 e 2014 e a jurisprudência do Tribunal de Justiça do RJ e SP, STF e STJ entre os anos 2000 a 2014, tendo como escopo levantar teses defensivas de crimes.

RESUMO:O presente artigo objetiva debater, à luz dos direitos e garantias individuais fundamentais (princípios do devido processo legal, ampla defesa, contraditório e da presunção de não culpabilidade) e da ideia de Defesa técnica (princípio do favor-rei, enquadramentos com punições mais brandas do que o homicídio doloso consumado ou tentado), as posições de parcela da doutrina penal pátria e de parte da jurisprudência brasileira (TJ-RJ, TJ-SP, STF, STJ) sobre a responsabilidade criminal da pessoa que sabendo viver com HIV/AIDS expõe ou transmite o HIV, em relações sexuais consentidas, sem o uso do preservativo (masculino ou feminino) e com ou sem a revelação da sorologia positiva para o HIV ao parceiro sexual. O escopo da presente produção é pugnar pela dignidade humana e por julgamentos justos e legítimos, sem preconceitos, sem estigmas e sem discriminações por parte do Estado-juiz.

Palavras-chave: HIV, AIDS, exposição sexual HIV, transmissão sexual HIV, responsabilidade penal.


1. Introdução.                         

Num contexto internacional, a partir dos anos 90, de crescente criminalização da exposição sexual ou da transmissão sexual do HIV, surgiu o interesse de estudar o entendimento de parte da doutrina penal pátria, entre os anos de 2.008 a 2.010 e 2.013/2.014, se constatando que o fato criminoso acima descrito tem sido enquadrado, por renomados doutrinadores brasileiros, como tentativa de homicídio ou homicídio doloso consumado, entre outras capitulações: crime do artigo 131 do Código Penal (CP), lesão seguida de morte, lesão corporal dolosa, lesão culposa ou homicídio culposo.

Considerando as variedades de entendimentos doutrinários, a presente produção pretende confrontar esses enquadramentos de alguns dos mais renomados autores brasileiros de direito penal com os julgados dos Tribunais de Justiça do RJ e SP, do STF e do STJ; além de discutir as próprias divergências jurisprudenciais e doutrinárias, objetivando buscar tipificações com penas mais brandas para o fato delituoso para embasar teses de defesas.

De fato, o presente trabalho almeja confrontar os enquadramentos doutrinários para o fato penal com as decisões de alguns de nossos Tribunais (TJ-RJ, TJ-SP, STF e STJ).

A relevância do tema se encontra na medida em que este artigo objetiva coroar a regra máxima de que há apenas um determinado artigo (crime) para se enquadrar um fato delituoso doloso ou culposo, ou seja, existe somente uma norma penal a ser aplicada a um caso concreto; além de se buscar a concretização de um julgamento justo e legítimo, com base nos direitos e garantias fundamentais: princípios da dignidade humana e do devido processo legal.

O presente estudo foi construído com uma metodologia teórico-exploratória e realizou pesquisa bibliográfico-doutrinária, além da pesquisa pela internet nos sites dos Tribunais de Justiça do RJ e SP e do STF e do STJ. A busca dos julgados usou os seguintes descritores: “transmissão HIV” no TJ-SP, encontrando 125 Acórdãos, sendo úteis para esta pesquisa nove sentenças colegiadas; “transmissão AIDS” no TJ-RJ em processos criminais, sendo encontradas apenas duas sentenças de 2ª instância que se mostraram de utilidade para o artigo. O leitor pode pesquisar no TJ-RJ a Apelação 0000689-11.2006.8.19.0008 e encontrará um terceiro Acórdão de grande valia para o presente estudo. No STF, o descritor foi “transmissão HIV” e “transmissão AIDS”, surgindo o HC 98.712/SP que era para mudar a forma de pensar a transmissão sexual do HIV. Por último, no STJ, se utilizou o descritor “transmissão sexual HIV”, aparecendo na consulta um julgado que não seguiu a mesma linha de raciocínio do STF.


2. Desenvolvimento.

2.1. Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório e da presunção de não culpabilidade e o princípio de processo penal do favor - rei.

Barroso[1] coloca como marcos históricos, que aproximam as ideias do constitucionalismo e da democracia, formando um novo direito constitucional, as seguintes Constituições: Alemanha (1949), Itália (1947), Portugal (1976), Espanha (1978) e Brasil (1988). Surgindo daí a ideia de Estado Democrático de Direito.

Por outro lado, o autor expõe que o marco filosófico do novo direito constitucional é o pós-positivismo, que nasce da superação histórica do jusnaturalismo e do fracasso político do positivismo; e busca ir além da legalidade estrita. O doutrinador explicita que o pós-positivismo concebe que a interpretação e a aplicação do ordenamento jurídico hão de ser inspiradas por uma teoria de Justiça, incluindo, nesta ideia, a atribuição de normatividade aos princípios e a definição de suas relações com valores e regras, a reabilitação da argumentação jurídica, a formação de uma nova hermenêutica constitucional e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana, se promovendo uma reaproximação entre o Direito, a Filosofia e a Ética.

No plano teórico, Barroso diz que três grandes transformações subverteram o conhecimento convencional relativo à aplicação do direito constitucional: o reconhecimento da força normativa da Constituição (imperatividade) versus a ideia da Constituição como um documento essencialmente político, usado livremente (bel-prazer) pelo legislador ou administrador (Executivo), a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional, levando a doutrina e a jurisprudência a criarem um elenco próprio de princípios aplicáveis à interpretação da Constituição, conferindo ao intérprete judicial o papel de complementar a função legisladora. Desta forma, o Judiciário passa a ter papel relevante na realização do conteúdo da Constituição.

Para Barroso, a ideia de constitucionalização do Direito está associada à ideia de supremacia da Constituição e a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico, assim, os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas de direito infraconstitucional.       

Ao falar sobre a constitucionalização do Direito infraconstitucional no Brasil, o autor diz que a partir de 1988, e mais notadamente nos últimos cinco ou dez anos, a Constituição passou a desfrutar já não apenas da supremacia formal que sempre teve, mas também de uma supremacia material, axiológica, potencializada pela abertura do sistema jurídico e pela normatividade de seus princípios, ingressando (a Constituição) no discurso dos operadores jurídicos, e reinterpretando os institutos de direito infraconstitucional sob uma ótica constitucionalista, servindo de parâmetro de validade para a ordem infraconstitucional e como vetor de interpretação de todas as normas do sistema.

No tocante ao direito criminal, o doutrinador fala que a Constituição tem impacto sobre a validade e a interpretação das normas de direito penal, bem como sobre a produção legislativa da matéria, em primeiro lugar, pela previsão de um amplo catálogo de garantias inseridas no artigo 5º, sendo algumas tipificações questionáveis à luz dos novos valores constitucionais ou das transformações dos costumes, podendo ser excepcionadas em algumas de suas incidências concretas se provocarem resultado constitucionalmente indesejável.

Após essa breve exposição da constitucionalização do Direito infraconstitucional no mundo e no Brasil, passemos a explicitar o que diz um grande doutrinador brasileiro de direito penal a respeito da supremacia da nossa Constituição de 1988 e de seus princípios sobre as normas infraconstitucionais de direito penal e de direito processual penal.

Segundo Capez, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, caput e III, CRFB/88) surge do Estado Democrático de Direito e orienta toda a formação de nosso Direito Penal, assim, segundo o autor[2]:

Os princípios constitucionais e as garantias individuais devem atuar como balizas para a correta interpretação e a justa aplicação das normas penais, não se podendo cogitar de uma aplicação meramente robotizada dos tipos incriminadores, ditada pela verificação rudimentar da adequação típica formal, descurando-se de qualquer apreciação ontológica do injusto.

O doutrinador também diz[3]:

Estado Democrático de Direito significa não só aquele que impõe a submissão de todos ao império da lei, mas aquele em que as leis possuem conteúdo e adequação social, descrevendo como infrações penais somente os fatos que realmente colocam em perigo bens jurídicos fundamentais para a sociedade. Sem esse conteúdo, a norma se configurará como atentatória aos princípios básicos da dignidade humana.

Para o doutrinador, a dignidade humana deve orientar o legislador no momento de criar um novo delito e o operador do direito no instante em que vai realizar a adequação típica do fato à norma penal e ainda completa[4]:

O tipo penal ou a sua aplicação, quando, a pretexto de cumprir uma função de controle social, desvincular-se totalmente da realidade, sem dar importância à existência de algum efetivo dano ou lesão social, padecerá irremediavelmente do vício de incompatibilidade vertical com o princípio constitucional da dignidade humana. [...]. Tipos penais que se limitem a descrever formalmente infrações penais, independentemente de sua efetiva potencialidade lesiva, atentam contra a dignidade da pessoa humana.

O doutrinador também assevera que da dignidade humana derivam outros princípios mais específicos, os quais propiciam um controle de qualidade do tipo penal, isto é, sobre o seu conteúdo, em inúmeras situações específicas da vida concreta. O autor ainda fala que os mais importantes princípios penais derivados da dignidade humana são: legalidade, insignificância, alteridade, confiança, adequação social, intervenção mínima, fragmentariedade, proporcionalidade, humanidade, necessidade e ofensividade (lesividade)[5].

Capez, ao falar do processo penal, ressalta que o enfoque a ser conferido não é o de um instrumento opressivo em defesa do aparelho estatal, mas o de um complexo de regras punitivas tendentes a limitar o arbítrio e a excessiva atuação do Estado na esfera da liberdade do indivíduo[6].

Como já dito acima pelo doutrinador Capez, os princípios constitucionais e as garantias individuais devem atuar como balizas para a correta interpretação e justa aplicação das normas penais, nesse sentido, passemos a explicitar uma definição para cada um dos seguintes princípios constitucionais: devido processo legal (artigo 5º, LIV, CRFB/88), ampla defesa e contraditório (artigo 5º, LV, CRFB/88) que são direitos e garantias individuais fundamentais em nosso Estado Democrático de Direito, com a finalidade de estender a discussão do tema mais adiante, quando formos tecer considerações sobre algumas soluções para as questões suscitadas.

Segundo Golnago & Nazareth de Souza, o princípio do contraditório se constitui no direito de as partes apresentarem suas versões sobre os fatos do processo que lhes são imputados, a ampla defesa se configura no direito de realização das provas para a demonstração dos fatos que são alegados[7].

Já Tourinho Filho diz que o princípio da igualdade deriva do princípio do contraditório e consiste em atribuir às partes, que figuram em polos opostos no processo penal, iguais direitos, ônus, obrigações e faculdades: o autor também menciona que o princípio da paridade das armas deriva da ampla defesa e se afigura em proporcionar às partes no processo criminal os mesmos direitos e poderes em relação ao Estado-juiz-magistrado[8]. Sobre o princípio do contraditório, Tourinho Filho afirma que este se consubstancia na máxima: “a parte contrária deve ser ouvida”[9]. Quanto ao devido processo legal, o doutrinador nos esclarece que tal princípio consiste no direito de não ser privado da liberdade e de seus bens, sem a garantia que supõe a tramitação de um processo desenvolvido na forma que estabelece a lei[10]. Em outros sentidos, o doutrinador nos ensina que o princípio constitucional da presunção de não culpabilidade deriva do favor-rei e consiste em não infligir ao acusado uma pena antecipadamente ao processo penal, além de que tal processo criminal deve ser instrumento de defesa das liberdades individuais e não estar a serviço de ideais políticos autoritários, em que se pensa que o acusado é culpado até que se prove o contrário, subvertendo tal princípio e garantia constitucional[11]. Por fim, o autor destaca que o princípio do favor-rei é inspirador da interpretação e base de toda a legislação processual, assim, no caso de duas interpretações antagônicas de uma norma penal, a obrigação é escolher a interpretação mais favorável ao réu[12].   

Em sentido semelhante, Oliveira compreende o devido processo legal como o princípio que assegura as garantias constitucionais dos sujeitos, entre elas: o tratamento paritário das partes no processo penal (princípios do contraditório, da igualdade e da paridade das armas) e a plenitude de defesa do indiciado, acusado ou condenado (ampla defesa, paridade das armas), entre outras garantias[13]. Sobre o princípio da inocência (presunção de não culpabilidade), o autor entende que se houver dúvida sobre a culpa, o julgador deve absolver, pois deve existir plena convicção da materialidade e autoria do delito, e vai além, dizendo que se não foi possível afastar a presunção de não culpabilidade, se deve absolver. E termina pregando que, na dúvida sobre a valoração das provas, se decide em favor do réu por conta do princípio do favor-rei, corolário da presunção de inocência[14]. Passemos, agora, ao estudo de parcela da doutrina penal pátria.

2.2. A responsabilidade criminal pela exposição sexual ou transmissão sexual do HIV em relações sexuais consentidas: a doutrina penal brasileira.

Um dos maiores doutrinadores brasileiros de direito penal de todos os tempos, Hungria, considera como moléstias venéreas: a sífilis, a blenorragia ou gonorreia, o ulcus molle (cancro mole), a linfogranulomatose inguinal (linfogranuloma inguinal)[15]. O ilustre autor chama a atenção de que o Código (Penal) não previu a hipótese de superveniência da morte da vítima, consequente ao contágio venéreo, assim, se o agente agiu com dolo de perigo ou dolo de dano, para Hungria, deveria responder por lesão corporal seguida de morte, mas, se o antecedente era simplesmente culpa, o autor do fato deveria responder por homicídio culposo; e prossegue o grande doutrinador[16]:

[...] O Código contempla especialmente o perigo de contágio venéreo apenas quando resultante de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso. O perigo de contágio venéreo intersexual, intra ou extra matrimonium, é que constitui o conteúdo de fato do crime previsto no art. 130: se criado o perigo por meio extra-sexual, o fato passa a ser abrangido pela fórmula genérica do art. 131, posto que o agente haja procedido com dolo de dano.

O doutrinador ainda discorre que “as moléstias venéreas, sem dúvida alguma, estão incluídas entre as moléstias graves transmissíveis, configurando-se o crime de que ora se trata (artigo 131 do CP), e não o do art. 130, § 1º, se o meio ocasionante do perigo de contágio é extra-genital ou extra-sexual”[17].

No entanto, como veremos a seguir, os doutrinadores brasileiros mais atuais de direito penal insistem em transformar doenças transmitidas pelo sexo em moléstias não venéreas, o que acaba impactando no enquadramento da exposição sexual ou transmissão sexual do HIV: ao invés de se pensar, inicialmente, no enquadramento do fato como crime de perigo de contágio venéreo (artigo 130, CP), os mais recentes autores classificam o fato, logo de início, excluindo a capitulação no crime do artigo 130 do CP.

Por exemplo, Greco entende que a transmissão dolosa do HIV, por meio de relações sexuais deve se amoldar ao tipo do homicídio doloso consumado (se houver a morte do ofendido) ou tentado (enquanto a pessoa infectada permanecer viva), porque a AIDS é uma doença incurável, mortal e letal[18]. Para o autor, embora a AIDS possa ser transmitida por relação sexual, não pode ser considerada uma moléstia venérea, porque não se transmite somente por atos sexuais, razão pela qual, caso ocorra a sua transmissão pelo meio sexual, o fato não poderá se amoldar ao tipo penal do artigo 130 do diploma repressivo (CP), qual seja, perigo de contágio venéreo[19]. O autor, igualmente argumenta que, se o agente quis transmitir o HIV, o seu dolo será o de homicídio, se afastando a tipificação do artigo 131 do CP[20].

Bitencourt também entende que a AIDS não é uma moléstia venérea (DST), porque não se transmite somente por atos sexuais, assim, sua transmissão poderia tipificar o crime do artigo 131 do CP, lesão corporal seguida de morte e até mesmo homicídio, dependendo da intenção do agente, mas nunca o crime do artigo 130 do CP (perigo de contágio venéreo)[21].

Greco e Bitencourt pensam na tipificação do fato (exposição ou transmissão do HIV) como homicídio e não como crime do artigo 130 do CP. A diferença entre eles é que Greco só admite o homicídio doloso, enquanto Bitencourt pensa nas tipificações de lesão seguida de morte e de perigo de contágio de moléstia grave (artigo 131 do CP).

Damásio, igualmente a Greco e Bitencourt, entende que, se o sujeito é portador do HIV, e consciente da natureza mortal da moléstia, realiza atos de libidinagem com a vítima, com a intenção de lhe transmitir o mal e lhe causar a morte, ocasionando o óbito do ofendido, deve responder por homicídio doloso consumado[22]

No mesmo sentido, Capez, considerando que a AIDS não é moléstia venérea, mas, sim, doença grave e contagiosa, expõe que a transmissão desta enfermidade não configura os crimes dos artigos 130 e 131, ambos do CP, mas o homicídio (doloso) tentado ou consumado. Por outro lado, o autor admite a hipótese de transmissão culposa do HIV, respondendo o agente por lesão corporal culposa (artigo 129, § 6º, CP) ou homicídio culposo (artigo 121, § 3º, CP) e não pelo crime do artigo 131 do CP que restará absorvido pelos delitos de lesão ou homicídio[23].

Na mesma esteira dos doutrinadores até aqui expostos, Nucci, considerando a AIDS, não uma doença venérea (sexualmente transmissível), mas crônica fatal e letal, embora venha sendo esta controlada com coquetéis cada vez mais fortes de remédios, entende, também, que a relação sexual de alguém, que se sabe contaminado com o HIV, sem o uso de quaisquer proteções, havendo a intenção (dolo direto) de transmitir a moléstia, ou assumindo o risco de infectar a outra pessoa (dolo eventual), configura o crime de homicídio consumado ou tentativa de homicídio (caso não ocorra a morte da pessoa infectada)[24]. O autor também afasta o enquadramento do fato, já descrito neste parágrafo, como crime do artigo 131 do CP, posto ser a AIDS não apenas uma enfermidade grave, o que estaria condizente com o tipo penal do artigo 131 do CP, mas também, como já dito pelo doutrinador, letal, mantendo a classificação do fato, relação sexual sem proteção com a intenção de transmitir o HIV/AIDS, como homicídio doloso consumado ou tentado[25].

Ainda na mesma linha de raciocínio dos autores até agora apresentados, Prado conceitua a AIDS como doença não venérea, mas grave e contagiosa, compreendendo o ato capaz de transmitir essa patologia (exposição sem infecção), sempre que o agente tiver o fim de transmitir essa enfermidade, como o crime insculpido no artigo 131 do CP (perigo de contágio de moléstia grave). Por outro lado, o doutrinador entende que restará caracterizado o delito de lesão corporal quando houver a efetiva transmissão da doença, já que, em tal situação, ocorrerá uma lesão à incolumidade física – quando não também mental – do contagiado. Mais ainda, afirma o doutrinador que se presente a intenção de matar, se perfaz o delito de homicídio, na forma tentada ou consumada; sendo cabível a forma culposa do homicídio, se o resultado morte for consequência da infração dos deveres objetivos de cuidado[26].

Delmanto, em consonância com os doutrinadores brasileiros anteriormente mencionados, não considera, rigorosamente, a AIDS como uma moléstia venérea, porque sua transmissão pode se verificar por inúmeras formas, além da via sexual. Para o autor, tratando-se de agente infectado, sabedor de sua contaminação, agindo este com o especial fim de transmitir a AIDS, haverá a incidência do artigo 131 do CP e não do artigo 130 do mesmo diploma repressivo. Todavia, existindo efetiva transmissão do HIV, o agente não deverá responder pelo crime de perigo de contágio de moléstia grave (artigo 131 do CP), mas por outros tipos penais mais graves: lesão corporal gravíssima (expressão cunhada pela doutrina penal), lesão corporal seguida de morte ou, ainda, homicídio doloso, consumado ou na forma tentada. O doutrinador chama a atenção para a sempre difícil comprovação do dolo do agente (sujeito ativo do crime) para o enquadramento no delito de lesões corporais ou no crime de homicídio. O autor ainda aventa as hipóteses de enquadramento da transmissão sexual do HIV como lesão corporal culposa ou homicídio culposo[27].

Do exposto, percebemos que sete dos oito doutrinadores brasileiros selecionados de direito penal, com exceção de Hungria, considerando a AIDS uma doença não venérea (não DST), mas uma enfermidade grave, crônica, contagiosa, incurável, mortal, fatal, letal, todos os sete pensam, sem exceção, em enquadrar o ato sexual consentido, sem preservativo (masculino ou feminino), da pessoa, sabidamente, vivendo com HIV/AIDS, que revela, ou não, a sua sorologia, como homicídio doloso consumado ou homicídio (doloso) na forma tentada. Certo é que, entre esses sete doutrinadores, são elencadas outras hipóteses de enquadramento do fato, como crimes dolosos de outras naturezas (crime do artigo 131 do CP; lesão seguida de morte; lesão corporal grave do artigo 129, § 1º do CP; lesão corporal gravíssima do artigo 129, § 2º, II do CP), ou mesmo como infrações penais culposas consumadas (homicídio culposo ou lesão culposa). Especificamente, Bitencourt pensa nos enquadramentos do artigo 131 do CP e lesão seguida de morte. Capez, em lesão culposa ou homicídio culposo. Prado argumenta pelo crime do artigo 131 do CP, lesão grave e homicídio culposo. Por fim, Delmanto pensa no delito do artigo 131 do CP, lesão gravíssima, lesão seguida de morte, lesão culposa e homicídio culposo. Por outro lado, Hungria pensa nos crimes do artigo 130 do CP, lesão seguida de morte ou homicídio culposo.

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Passemos ao entendimento atualizado de cinco doutrinadores, mostrando se tais autores permanecem ou modificaram suas posições em relação aos fatos de exposição sexual e da transmissão sexual do HIV/AIDS.

Greco diz[28]:

Pode ocorrer a hipótese em que o agente, sabendo-se portador do vírus da Aids, o HIV, queira, dolosamente, transmiti-lo a outra pessoa, mediante, por exemplo, a prática de relações sexuais [...]. Entendemos que, nessa hipótese, como não existe, ainda, a cura definitiva para os portadores de Aids, mesmo que o coquetel de medicamentos permita, atualmente, considerável sobrevida, o fato deverá se amoldar ao tipo do art. 121 do Código Penal, consumado (se a vítima vier a falecer como consequência da síndrome adquirida) ou tentado (se, mesmo depois de contaminada, ainda não tiver morrido).

O doutrinador completa[29]:

Embora a AIDS possa ser transmitida por relação sexual, ela não pode ser considerada uma moléstia venérea, razão pela qual, caso ocorra sua transmissão por esse meio, o fato não poderá se amoldar ao tipo penal do art. 130 do diploma repressivo. A doutrina, como já deixamos antever, tenta resolver o problema da transmissão do vírus HIV sob o enfoque do dolo do agente. Assim, se era sua finalidade a contaminação da vítima, almejando-lhe a morte, deverá responder pela tentativa de homicídio (enquanto esta se mantiver viva), ou pelo delito de homicídio consumado (em ocorrendo a morte).

Finaliza o autor[30]:

Pode ocorrer a hipótese, não incomum, de que o agente, revoltado com a sua doença, queira transmitir a outras pessoas o vírus HIV, de que é portador. Sabemos que a AIDS não somente é uma doença incurável, mas também letal. Embora, como já afirmamos, existam os coquetéis de medicamentos que fazem com que a vítima tenha sobrevida prolongada, não foi proclamada, ainda, sua cura. Assim, no caso de querer o agente transmitir o vírus HIV entendemos que o seu dolo será o de homicídio, e não o do delito tipificado no art. 131 do Código Penal.

Percebemos que, ainda em 2014, Greco não considera a AIDS uma moléstia venérea (doença sexualmente transmissível), mas, sim, uma enfermidade não só incurável, mas letal, desse modo, se houver intenção do agente em transmitir o HIV, segundo este doutrinador, deverá existir a responsabilização pelo crime de homicídio (doloso) consumado ou de homicídio (doloso) na sua forma tentada. Conclui-se que o autor não modificou a sua posição anterior, que era de 2010, a respeito da exposição (sexual ou por outros meios) e da transmissão (sexual ou por outras vias) do HIV.

Em igual sentido, Damásio continua entendendo o fato como homicídio doloso, por conceber a AIDS uma doença mortal[31]: “Para nós, se o sujeito, portador de Aids e consciente da natureza mortal da moléstia, realiza ato de libidinagem com a vítima, com a intenção de transmitir o mal e lhe causar a morte, vindo ela a falecer, responde por homicídio doloso consumado.”

No mesmo sentido, Bitencourt, considerando que a AIDS não é uma moléstia venérea, tipifica o fato como homicídio, entre outros delitos[32]:

A AIDS, que não é moléstia venérea e que não se transmite somente por atos sexuais, poderá tipificar o crime do art. 131, lesão corporal seguida de morte ou até mesmo homicídio, dependendo da intenção do agente, mas nunca o crime de perigo de contágio venéreo.

O autor raciocina, quando discorrendo sobre o artigo 131 do CP, a respeito da transmissão culposa de moléstia grave, assim, podemos entender, numa interpretação sistêmica de sua obra, que possa existir a transmissão culposa do HIV e da AIDS como moléstia grave[33]:

Se sobrevier a morte da vítima, com efeito, em razão da contaminação, o agente responderá por lesão corporal seguida de morte (art. 129, parágrafo 3º). Se a intenção for matar a vítima, poderá configurar homicídio doloso (tentado ou consumado). Se o sujeito ativo agir com dolo eventual, ou seja, assumir o risco de produzir o contágio de moléstia grave, não responderá pelo crime, que exige dolo direto. Contudo, se produzir lesão corporal responderá por ela. Se, no entanto, agir com culpa na transmissão de moléstia grave, responderá por lesão corporal culposa ou homicídio culposo, de acordo com o resultado que produzir.

Desta forma, se antes Bitencourt pensava a exposição e a transmissão do HIV como crimes do artigo 131 do CP, lesão seguida de morte ou mesmo homicídio, atualmente, podemos acrescentar a esta lista, numa interpretação sistêmica, a classificação do fato, transmissão do HIV, como lesão dolosa, lesão culposa ou homicídio culposo.

Já Prado entende, atualmente, a AIDS como moléstia grave e contagiosa[34]:

A respeito da AIDS – moléstia grave e contagiosa – configura-se o crime inscrito no art. 131 do Código Penal sempre que o agente pratica, com o fim de transmiti-la a outrem, ato capaz de produzir o contágio. Calha observar que resta caracterizado o delito de lesão corporal quando há a efetiva transmissão da doença ou mesmo dos anticorpos do vírus, a uma ou várias pessoas determinadas, já que em tais situações ocorre uma lesão à incolumidade física – quando não também mental – do contagiado.

Nesta passagem, percebemos que o autor continua a tipificar a exposição e a transmissão do HIV/AIDS, respectivamente, como o crime insculpido no artigo 131 do CP ou lesão corporal, como anteriormente. Neste trecho, o doutrinador não se referiu ao enquadramento no homicídio doloso nem culposo, mas o autor deste artigo não se afigura seguro para dizer que Prado não pensa na hipótese do homicídio (doloso ou culposo) para tipificar o fato, haja vista, ter havido uma consulta bibliográfica atualizada não exaustiva sobre este doutrinador.

Por fim, Capez, não considerando a AIDS doença venérea, mas moléstia grave e contagiosa, diz[35]:

Quanto à Aids, a transmissão dessa doença não configura o delito do art. 130 do CP, pois, além de não ser considerada doença venérea pela medicina, não é transmissível somente por meio de relações sexuais, mas também, por exemplo, por transfusão de sangue, emprego de seringas usadas. Do mesmo modo, a transmissão desse vírus também não configura o delito do art. 131, mas homicídio tentado ou consumado. [...]. Se o agente age com o fim de transmitir a doença e acaba por efetivamente transmiti-la, o enquadramento da conduta dar-se-á no homicídio doloso tentado ou consumado (art. 121, caput). Se o agente, estando contaminado, transmite o vírus culposamente, responderá pelo delito de lesão corporal culposa (art. 129, parágrafo sexto) ou homicídio culposo (art. 121, parágrafo terceiro) e não pelo crime do art. 131, o qual restará absorvido.

Capez continua compreendendo a transmissão do HIV como homicídio doloso, lesão culposa ou homicídio culposo, estas duas últimas, classificações muito interessantes para a Defesa.

De modo geral, a pesquisa atualizada (2013/2014), com os cinco doutrinadores, mostrou que a AIDS continua não sendo considerada doença venérea (sexualmente transmissível), mas, sim, moléstia incurável, grave, contagiosa, mortal, fatal e letal, se tipificando a exposição sexual ao HIV ou a infecção por esse vírus, sem a morte, como tentativa de homicídio, ou, sobrevindo o óbito, como homicídio doloso consumado. Por outro lado, alguns desses cinco doutrinadores ainda enquadram a exposição (sexual) ou a transmissão sexual do HIV como os crimes do artigo 131 do CP, lesão seguida de morte, lesão corporal (dolosa), lesão culposa ou homicídio culposo, tipificações estas que muito podem servir como teses de defesa alternativas à classificação do fato no homicídio doloso simples ou qualificado (tentados ou consumados). Lembrando que a grande maioria desses renomados doutrinadores do direito penal brasileiro é de promotores, procuradores de justiça, juízes, ou seja, escrevem sobre o tema quem denuncia o crime, acusa e julga e nunca quem defende o suposto infrator. Vamos à jurisprudência.

2.3. Os julgamentos no Tribunal de Justiça do RJ, Tribunal de Justiça de SP, Supremo Tribunal Federal (STF) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

A Apelação 0000124-05.2002.8.19.0035 (2005.050.00286) do TJ-RJ, julgada em 04.07.2006 pela 5ª Câmara Criminal e cujo relator foi o Des. Sérgio de Souza Verani[36], entre outros delitos, manteve a condenação de 1º grau no crime do artigo 132, caput do CP (perigo para a vida ou saúde de outrem), desclassificando o crime do artigo 121, § 2º, III c/c art. 14, II, ambos do CP (homicídio qualificado na forma tentada), pelo risco de transmissão da AIDS, por ter o réu homossexual portador do HIV praticado sexo anal passivo com dois adolescentes que não se infectaram, pois não foi presumido o dolo de matar, mas o dolo de assumir o risco de transmitir a moléstia AIDS, reconhecidamente fatal pelo julgado. Negado provimento ao recurso do Ministério Público.

A Apelação 0000689-11.2006.8.19.0008 (2007.050.04105) do TJ-RJ, julgada em 19.02.2008 pela 2ª Câmara Criminal e cujo relator foi o Des. José Augusto de Araújo Neto[37], manteve a decisão do juízo monocrático de 1ª instância ao negar provimento da apelação da Defesa pela absolvição por ausência de dolo e pela existência do consentimento do ofendido, condenando a ré, ex-prostituta, portadora do HIV, pelo crime de lesão corporal seguida de morte (dolo pela lesão e culpa pela morte), pelo fato de a acusada ter praticado relações sexuais sem preservativo com um homem com quem viveu maritalmente, lhe transmitindo a doença incurável (a título de dolo) que foi a causa de sua morte (se reconhecendo a culpa e não o dolo da ré pelo óbito). 

A Apelação 0001087-55.2006.8.19.0008 do TJ-RJ, julgada em 14.12.2010 pela 7ª Câmara Criminal e cuja relatora foi a Des. Márcia Perrini Bodart[38], manteve a condenação de 1º grau pelo artigo 129, § 2º, II, CP (lesão corporal dolosa gravíssima consumada por transmissão de enfermidade incurável) e que definiu a AIDS como doença incurável e letal, negando provimento da apelação defensiva que, entre outros argumentos, pediu a absolvição do condenado ante à ausência de dolo e porque a vítima tinha conhecimento de que o apelante era portador do HIV quando manteve com ele relações sexuais sem o preservativo.

Do exposto, percebemos que os juízes de 1º grau do estado do RJ já julgaram o fato como: perigo para a vida ou saúde de outrem (artigo 132, caput do CP), lesão seguida de morte, lesão corporal dolosa gravíssima consumada por transmissão de enfermidade incurável. Já o TJ-RJ, considerando a AIDS doença incurável, fatal e letal, julgou o fato, entre 2006 e 2010, como: crime do artigo 132, caput do CP pela exposição sexual ao HIV, lesão seguida de morte (artigo 129, § 3º, CP), lesão corporal gravíssima (dolosa) consumada por transmissão sexual de enfermidade incurável (art. 129, § 2º, II, CP).

Passemos aos julgados do TJ-SP. A Apelação 9059892-42.2004.8.26.000 do TJ-SP, julgada em 20.06.2006 pela 8ª Câmara de Direito Criminal e cujo relator foi o Des. Pereira da Silva[39], deu provimento ao recurso ministerial (MP) para pronunciar o réu e entendeu por prejudicada a análise do recurso da Defesa que apelou da condenação pelo crime do artigo 132 do CP, buscando a absolvição por insuficiência de provas ou por crime impossível, além de outros pedidos. O apelo do MP foi para se pronunciar o réu nos termos da denúncia pelo crime do artigo 121, § 2º, I e III c/c art. 14, II, todos do CP (tentativa de homicídio qualificado por motivo torpe e meio cruel/insidioso), porque o acusado manteve relações sexuais sem proteção com sua esposa, sabendo ser portador do HIV e lhe transmitiu o vírus.

A Revisão Criminal 0066095-13.2003.8.26.0000 do TJ-SP, julgada em 13.09.2006 pela 11ª Câmara de Direito Criminal e cujo relator foi o Des. Sydnei de Oliveira Júnior[40], apesar de ter revisado o trânsito em julgado da condenação por tentativa de homicídio simples (vítima não foi infectada), em concurso com outros delitos contra a liberdade sexual (relação sexual não consentida), é um excelente julgado para a Defesa, ao falar que o agente não tem domínio sobre a transmissão do HIV e muito menos pelo resultado morte, considerando a teoria do domínio do fato. O Acórdão ainda destacou que é onipotência judicial e adivinhação dizer que houve dolo de matar e que o crime de homicídio restou tentado por circunstâncias alheias à vontade do agente, configurando mesmo verdadeira responsabilidade penal objetiva que é proibida em nosso direito criminal, assim, não vislumbrou o dolo direto nem o dolo eventual para o homicídio, além de dizer que em tal julgamento de 1º grau pode ter havido discriminação a um portador da AIDS e agente de delitos sexuais. Desta forma, esse excelente Acórdão afastou a condenação por tentativa de homicídio simples do Tribunal do Júri, mantendo as outras condenações pelos delitos sexuais, além de ter reavaliado a dosimetria da pena e ter acolhido a possibilidade de progressão de regime por cometimento de crime hediondo.

A Apelação 9192926-79.2005.8.26.000 do TJ-SP, julgada em 13.03.2007 pela 1ª Câmara de Direito Criminal e cujo relator foi o Des. Mário Devienne Ferraz[41], manteve a condenação do Tribunal do Júri, ao entender que a decisão não se mostrou manifestamente contrária às provas dos autos, pelo cometimento da infração penal do artigo 121, § 2º, III, c/c art. 14, II, todos do CP (tentativa de homicídio qualificado por meio insidioso), para o réu que praticou por dois anos relações sexuais consentidas sem proteção com sua amante e a infectou com o HIV, porque considerou a AIDS uma doença incurável, mortal e fatal. A Defesa havia pedido anulação do julgamento e novo júri, sob a alegação de que o réu não agiu com dolo de matar, além do afastamento da qualificadora meio insidioso que exige dolo direto, pois foi reconhecido o dolo indireto (eventual). A decisão colegiada apenas acolheu parcialmente o apelo defensivo, tão somente, para afastar o óbice da impossibilidade de progressão de regime prisional por cometimento de crime hediondo.

A Apelação 0081783-59.2003.8.26.0050 do TJ-SP, julgada em 15.01.2008 pela 1ª Câmara de Direito Criminal e cujo relator foi o Des. Mário Devienne Ferraz[42], prosseguindo no julgamento do mérito do recurso, após a análise de admissibilidade dos embargos de declaração, substituiu a pena restritiva de direitos (limitação de final de semana) por uma de multa, manteve a outra punição de prestação de serviços comunitários, confirmando a capitulação do delito de crime de lesão corporal gravíssima (dolosa) consumada por transmissão de enfermidade incurável, além de não reconhecer a prescrição da pretensão punitiva estatal.

A Apelação com Revisão 9192926-79.2005.8.26.0000 do TJ-SP, julgada em 01.12.2008 pela 1ª Câmara de Direito Criminal e cujo relator, o Des. Mário Devienne Ferraz, foi voto vencido (voto vencedor, excelente para a Defesa, foi o do Des. Péricles Piza)[43], acolheu o recurso defensivo para o apelante ser submetido a novo julgamento, porque o júri proferiu decreto condenatório contrário às provas dos autos. O réu havia sido pronunciado e condenado por tentativa de homicídio qualificado por meio insidioso ao manter relações sexuais consentidas com sua amante sem utilizar o preservativo, lhe transmitindo o HIV. O Acórdão asseverou que, embora a transmissão da doença seja controlada pelo agente, o resultado morte lhe escapa ao controle, além de que o diagnóstico de AIDS deixou de ser uma sentença de morte, não restando evidenciado o dolo direto nem o eventual de matar. Para o desembargador, a AIDS é doença crônica desde o início da década de 90, sendo questionável a sua letalidade.

O Recurso em Sentido Estrito 0006253-64.2008.8.26.0150 do TJ-SP, julgado em 24.06.2010 pela 6ª Câmara de Direito Criminal e cujo relator foi o Des. José Raul Gavião de Almeida[44], considerando a AIDS doença letal, negou provimento ao recurso da Defesa contra a decisão de pronúncia por duas tentativas de homicídios duplamente qualificados (artigo 121, § 2º, III c/c art. 14, II, CP) e por uma tentativa de homicídio simples. A defesa pediu a absolvição sumária para a tentativa de homicídio simples, pois não houve o início da execução deste suposto delito (tentativa de relação sexual forçada contra uma terceira mulher) e a desclassificação das duas tentativas de homicídios duplamente qualificados, por conta de relações sexuais consentidas com duas mulheres com as quais o réu viveu em união estável (houve a transmissão do HIV para as duas mulheres), e pela ausência de dolo de matar, para o crime de perigo de contágio de moléstia grave (artigo 131 do CP).

A Apelação 0011600-91.2005.8.26.0309 do TJ-SP, julgada em 23.08.2010 pela 2ª Câmara de Direito Criminal e cujo relator foi o Des. Teodomiro Mendez[45], negou provimento ao recurso da Defesa, que pediu a absolvição pela atipicidade da conduta ou pela insuficiência de provas, e manteve a sentença de 1º grau que condenou o réu pelo artigo 129, § 2º, II, CP, ou seja, por lesão corporal gravíssima consumada (dolosa) por transmissão de enfermidade incurável (HIV) a uma mulher com quem o réu conviveu por dois anos e manteve relações sexuais consentidas sem o uso do preservativo.

O Recurso em Sentido Estrito 0023398-40.2009.8.26.0590 do TJ-SP, julgado em 10.09.2012 pela 1ª Câmara de Direito Criminal e cujo relator foi o Des. Figueiredo Gonçalves[46], negou provimento ao recurso da Defesa e manteve a decisão de 1º grau do juiz da Vara do Júri que desclassificou o crime do artigo 121, § 2º, III c/c art. 14, II, todos do CP (tentativa de homicídio qualificado por meio insidioso). A Defesa alegou ausência de dolo e que não restou evidenciado quem transmitiu o HIV a quem, se o réu transmitiu à ofendida ou se a vítima transmitiu ao réu. O Acórdão utilizou a decisão do STF no HC 98.712/SP para desclassificar o crime de tentativa de homicídio (qualificado) e remeter os autos para uma das Varas Criminais do estado de SP, ao considerar a AIDS uma doença crônica, segundo os especialistas em infectologia e o Departamento de DST-Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde do Brasil

Por fim, a Apelação 0006565-91.2009.8.26.0445 do TJ-SP, julgada em 25.07.2013 pela 15ª Câmara Criminal e cujo relator foi o Des. J. Martins[47], manteve a sentença de 1º grau (artigo 131 do CP: perigo de contágio de moléstia grave), negando provimento ao recurso que pedia a desclassificação para o crime de lesão corporal dolosa gravíssima por transmissão de enfermidade incurável do artigo 129, caput c/c § 2º, II, CP, sustentando, a decisão colegiada de 2ª instância, que não houve prova convincente da intenção do agente em lesionar a vítima, restando evidente o dolo de transmitir moléstia grave.  

Deste exposto, podemos observar que os magistrados de 1º grau do estado de SP já julgaram o fato penal como: crime do artigo 132 do CP (perigo para a vida ou saúde de outrem), tentativa de homicídio simples pela exposição sexual a AIDS, tentativa de homicídio qualificado por meio insidioso pela transmissão sexual do HIV, lesão corporal gravíssima (dolosa) consumada por transmissão via sexo de enfermidade incurável (HIV), e, por fim, crime do artigo 131 do CP (perigo de contágio de moléstia grave) mesmo para a transmissão do HIV por relação sexual. Por sua vez, o TJ-SP julgou o fato criminoso, entre 2006 e 2013, considerando a AIDS doença incurável, ora mortal, fatal e letal, ora patologia crônica, como: tentativa de homicídio qualificado por meio insidioso pela transmissão sexual do HIV (caso três), lesão corporal gravíssima (dolosa) consumada por transmissão sexual de enfermidade incurável (HIV) nos casos quatro e sete, e, por fim, crime do artigo 131 do CP (perigo de contágio de moléstia grave) mesmo para a transmissão sexual do HIV (caso nove); além de ter pronunciado o réu no caso um, afastado o homicídio simples na forma tentada no caso dois, ordenado novo júri no caso cinco, mantido a pronúncia do acusado no caso seis e remetido os autos para julgamento numa Vara Criminal de São Paulo no caso oito.

Resumindo, os Tribunais do RJ e SP, entre 2006 e 2013, já julgaram a exposição sexual ou a transmissão sexual do HIV, em relações sexuais consentidas, como: tentativa de homicídio qualificado por meio insidioso pela transmissão sexual do HIV (TJ-SP); crime do artigo 132, caput do CP (perigo para a vida ou saúde de outrem) pela exposição sexual a AIDS (TJ-RJ); lesão corporal seguida de morte (TJ-RJ); lesão corporal gravíssima (dolosa) consumada por transmissão de enfermidade incurável (TJ-SP e TJ-RJ), e delito do artigo 131 do CP (perigo de contágio de moléstia grave) mesmo para a transmissão sexual do HIV (TJ-SP). É claro que as decisões iniciais do TJ-SP foram mais graves do que as três condenações do TJ-RJ, em termos de classificações dos delitos.

Por outro lado, patente é a diferença entre parte da doutrina penal brasileira que fala de tentativa de homicídio (doloso) para enquadrar a exposição sexual ou a transmissão sexual do HIV sem o óbito, ou de homicídio doloso consumado (se há a infecção e a morte), além de outras capitulações em crimes dolosos e culposos, e as primeiras decisões dos juízes de 1º grau e dos Tribunais pesquisados que enquadraram, especialmente, a transmissão sexual do HIV sem a morte, em tentativa de homicídio (doloso) qualificado por meio insidioso (TJ-SP). Além de ser igualmente patente a evolução das decisões desses Tribunais: da tentativa de homicídio qualificado por meio insidioso e/ou por outros meios e motivos (TJ-SP) para a lesão corporal gravíssima (dolosa) por transmissão sexual de enfermidade incurável, em caso de infecção por HIV sem o óbito (TJ-RJ e TJ-SP) ou, seguindo a decisão do STF, para o crime de perigo de contágio de moléstia grave (artigo 131 do CP), havendo a contaminação, mas não a morte (TJ-SP). Lembrando que, desde o início, o TJ-RJ pensou a exposição sexual ao HIV como o crime de perigo concreto do artigo 132, caput do CP.

Cabe destacar, agora, que o STF, no julgamento do HC 98.712/SP, em 05.10.2010, 1ª Turma, Relator Ministro Marco Aurélio, decidiu o seguinte[48]:

MOLÉSTIA GRAVE – TRANSMISSÃO – HIV – CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA VERSUS O DE TRANSMITIR DOENÇA GRAVE. Descabe, ante previsão expressa quanto ao tipo penal, partir-se para o enquadramento de ato relativo à transmissão de doença grave como a configurar crime doloso contra a vida.

Deste modo, o STF anulou a decisão do Tribunal do Júri em São Paulo (duas tentativas de homicídios qualificados pela transmissão sexual do HIV e uma tentativa de homicídio simples sem a infecção pelo HIV) e deferiu a realização de um novo julgamento pelo juiz singular de uma das Varas Criminais de São Paulo para julgar a transmissão sexual do HIV a duas mulheres e a exposição sexual ao HIV em face de uma terceira mulher.

No entanto, o STJ, em julgado posterior, não seguiu a mesma linha de raciocínio do STF, mas, sim, a linha de pensamento mais recente sobre o fato, em consonância com os Tribunais de Justiça de SP e do RJ: HC 160982/DF, 2010/0016927-3, Relatora Min. Laurita Vaz, T5 (Quinta Turma), Julgamento em 17.05.2012[49]. Transcrevamos parte do julgado.

[...]. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 98.712/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO (1.ª Turma, DJe de 17/12/2010), firmou a compreensão de que a conduta de praticar ato sexual com a finalidade de transmitir AIDS não configura crime doloso contra a vida. [...]. O ato de propagar síndrome da imunodeficiência adquirida não é tratado no Capítulo III, Título I, da Parte Especial, do Código Penal (art. 130 e seguintes), onde não há menção a enfermidades sem cura. Inclusive, nos debates havidos no julgamento do HC 98.712/SP, o eminente Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, ao excluir a possibilidade de a Suprema Corte, naquele caso, conferir ao delito a classificação de ‘Perigo de contágio de moléstia grave’ (art. 131, do Código Penal), esclareceu que, ‘no atual estágio da ciência, a enfermidade é incurável, quer dizer, ela não é só grave, nos termos do art. 131’. Na hipótese de transmissão dolosa de doença incurável, a conduta deverá ser apenada com mais rigor do que o ato de contaminar outra pessoa com moléstia grave, conforme previsão clara do art. 129, § 2.º inciso II, do Código Penal. [...]. Porém, o tratamento não enseja a cura da moléstia. [...].

O STJ entendeu que o crime de transmissão sexual intencional do HIV deve ser enquadrado em lesão corporal gravíssima (dolosa), porque a infecção resulta em enfermidade incurável: artigo 129, § 2º, II, CP.

2.4. Soluções: alguns enquadramentos como teses para as defesas técnicas.

Já mostramos que doutrinadores brasileiros de direito penal pensam a exposição sexual e a transmissão sexual do HIV, além do homicídio, como os seguintes delitos: crime de perigo de contágio de moléstia grave, lesão seguida de morte, lesão corporal (dolosa), lesão culposa ou homicídio culposo. Por sua vez, vimos que a jurisprudência dos Tribunais de Justiça do RJ e SP e do STF e do STJ tem compreendido tais fatos como tentativa de homicídio qualificado por meio insidioso pela transmissão sexual do HIV; crime do artigo 132, caput do CP (perigo para a vida ou saúde de outrem) pela exposição sexual a AIDS; lesão corporal seguida de morte; lesão corporal gravíssima (dolosa) consumada por transmissão sexual de enfermidade incurável (HIV) e delito do artigo 131 do CP (perigo de contágio de moléstia grave), este último, mesmo para a transmissão sexual do HIV.

Por outro lado, o movimento social brasileiro de AIDS tem insistido na ideia de que a pessoa vivendo com HIV/AIDS, ao ter relações sexuais, sem preservativo, revelando ou não sua condição sorológica positiva para o HIV, definitivamente, não estará agindo com dolo direto nem com dolo indireto (eventual) de matar, pois a pessoa com HIV não tem o domínio sobre a produção do resultado morte, que lhe escapa ao controle[50]. De fato, a pessoa vivendo com HIV/AIDS, ao ter relações sexuais, sem camisinha, não necessariamente, estará agindo com dolo direto ou eventual de transmitir o HIV/AIDS; não estará, necessariamente, agindo com dolo de perigo, dolo de lesionar, dolo de transmitir moléstia venérea; não necessariamente, estará agindo com dolo direto e específico de transmitir moléstia grave, muito menos com dolo direto ou eventual de matar. Pois, sim, as pessoas portadoras do HIV fazem sexo com várias intenções, como necessidade de afeto, por prazer, por paixão, por amor, por pressão social etc., assim como aqueles que não estão infectados pelo HIV.

Além disso, imputar, como tentativa de homicídio simples ou qualificado, ou como qualquer outro delito doloso (lesão, crime de perigo abstrato, como o do artigo 130, caput, CP ou delitos formais de dano, como os crimes do artigo 130, parágrafo primeiro e artigo 131, ambos do CP), o ato sexual de pessoa vivendo com HIV/AIDS, sem preservativo, com ou sem a revelação da sorologia de HIV, sendo a própria relação sexual sem proteção, a prova cabal da intenção, é operar a responsabilidade objetiva que é proibida pelo direito penal brasileiro.

Por sua vez, o movimento nacional de AIDS entende que é atitude preconceituosa e discriminatória do Estado, e da Justiça, compreender, logo de início, que o ato sexual de pessoa vivendo com HIV/AIDS, sem preservativo, com ou sem a revelação da sorologia de HIV, enseja, sem equívocos, alguma intenção penalmente reprovável, por exemplo, vontade de matar, querer lesionar, propósito de transmitir o HIV/AIDS, intenção de transmitir moléstia venérea, dolo de transmitir doença grave ou de expor a perigo.

Já o Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde do Brasil compreende a AIDS como uma DST (Doença Sexualmente Transmissível), uma moléstia venérea, grave, contagiosa, incurável, porém, controlável e com características de cronicidade, não sendo, inexoravelmente, mortal, fatal, letal[51].

De fato, com o evoluir das ciências médicas, o diagnóstico de AIDS deixou de ser uma sentença de morte: os medicamentos existentes conseguem estagnar a doença e propiciam aos portadores do HIV uma sobrevida cada vez maior e de melhor qualidade. Na realidade, o diagnóstico precoce da infecção por HIV e o tratamento adequado colocam a possibilidade de a pessoa infectada morrer de outros fatores, assim como a população não infectada[52].

Sabemos também que o risco de transmissão sexual do HIV, sem o uso do preservativo, tendo a pessoa supressão viral completa (carga viral indetectável), é de 1:100.000 (um em cem mil casos) e que o tratamento antirretroviral bem sucedido reduz o risco/perigo da transmissão sexual do HIV, apesar de não termos certeza da completa eliminação desse risco[53]; no entanto, muitos julgados no Brasil não têm se utilizado desses conhecimentos científicos.   

Por outro lado, diante de toda essa controvérsia entre a doutrina e entre a jurisprudência sobre quais seriam os melhores enquadramentos para o fato, de forma mais ampla, análises do Código Penal brasileiro[54] poderiam interpretar a exposição sexual do HIV (ato sexual sem preservativo capaz de infectar, mas que não resulta em contágio) como crime intencional tentado de dano (tentativa de lesão dolosa) ou “crime de perigo” consumado (artigo 130, caput; artigo 130, parágrafo primeiro; artigo 131 e artigo 132, caput; todos do CP). Por sua vez, tais análises poderiam interpretar a transmissão sexual do HIV como delito doloso consumado (intenção de transmitir sexualmente o HIV). De fato, a transmissão sexual do HIV poderia ser interpretada, se utilizando o CP brasileiro, como o crime com o dolo de expor a perigo (artigo 130, caput e artigo 132, caput; ambos do CP), delito com o dolo de transmitir moléstia venérea (artigo 130, § 1º, CP), infração penal com o dolo de transmitir moléstia grave (artigo 131 do CP), crime de lesão dolosa com intenção de macular a integridade física e psicológica (artigo 129, § 2º, II; artigo 129, § 1º, III; artigo 129, § 3º; todos do CP) ou mesmo delito de homicídio doloso (artigo 121, caput ou artigo 121, § 2º, inciso III; ambos do CP).

Assim, diante das controvérsias entre Lei (CP), doutrina e jurisprudência, o autor deste artigo, pensando na Defesa técnica da pessoa vivendo com HIV/AIDS, destaca os seguintes crimes, a serem arguidos no processo penal: lesão corporal culposa, em que não há diferenciação entre lesões leves, graves e gravíssimas (artigo 129, § 6º do CP); homicídio culposo (artigo 121, § 3º do CP); lesão corporal de natureza grave por debilidade permanente (não precisa ser perpétua nem eterna) de função (imunológica), crime ínsito no artigo 129, § 1º, III do CP; lesão seguida de morte (art. 129, § 3º do CP); crime do artigo 132, caput do CP. Lembrando que, segundo a doutrina, o crime culposo deve sempre estar expresso em Lei e não há a possibilidade de condenação, por delito culposo, na forma tentada, apenas se condena alguém por crime culposo consumado.  

No tocante ao processo penal, saber ter HIV pode ser determinante para uma acusação e condenação penal e não saber ter o vírus pode ser excelente tese de defesa contra o crime doloso; e mais ainda: os julgamentos brasileiros devem respeitar amplamente os princípios constitucionais da dignidade humana, do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório e da presunção de não culpabilidade, posto que alguns dos processos criminais no Brasil já desumanizaram as pessoas vivendo com HIV/AIDS, ao entenderem que a relação sexual, sem preservativo, ensejou apenas a intenção de transmitir o HIV/AIDS e não outro desejo qualquer.

Prosseguindo no processo criminal, mesmo a pessoa acusadora provando que não tinha o HIV, antes da relação sexual com o acusado, ao mostrar um exame anti-HIV negativo anterior ao relacionamento com o réu, ainda assim, persistiria a dúvida sobre a autoria. Há mesmo extrema dificuldade de se realizar provas conclusivas para a identificação da autoria da transmissão sexual do HIV. A própria exposição de motivos do Código Penal pátrio, em seu item 44, menciona a dificuldade ou mesmo a impossibilidade de identificação da autoria pela transmissão de doença venérea[55] (a AIDS não deixa de ser uma doença transmitida pelo sexo).

Diante do exposto, é necessário recomendarmos os seguintes pontos: as provas nos crimes contra a pessoa (lesão, periclitação: perigo) devem ser mais completas, nos casos de exposição sexual ou transmissão sexual HIV. O Brasil deve estabelecer alguns parâmetros para condenar uma pessoa com HIV pela transmissão sexual da AIDS: o acusado deve saber que tinha o HIV e que podia infectar outras pessoas pela relação sexual (nosso direito penal já considera tal situação); os riscos/perigos e a probabilidade de infecção nas relações sexuais devem ser analisados com base científica, considerando a biologia, a medicina, a matemática e a estatística, além do saber jurídico; o acusador deve ter o HIV; o acusador deve provar que não tinha o HIV antes do relacionamento; o acusador não deve ter praticado relações sexuais desprotegidas com outras pessoas nem outro tipo de comportamento de risco (uso de drogas injetáveis, por exemplo). Enfim, é de extrema importância não apenas se basear em documento (teste positivo de HIV do acusado), em depoimento da suposta vítima nem só em prova testemunhal, mas analisar o dolo com a motivação e as outras circunstâncias para se verificar, ou não, a prática do delito, a fim de se evitar vingança e erros, e se fazer Justiça.

Deste modo, os julgamentos devem considerar os fundamentos científicos sobre os riscos / perigos da transmissão (por exemplo, cálculos estatísticos sobre a probabilidade de infecção), a prova exaustiva dos motivos que levaram ao dolo de transmitir o HIV, a certeza (e não a alta probabilidade) da autoria, devendo haver fato adicional à mera realização do ato sexual, sem preservativo, para se atribuir a intenção de transmitir o HIV/AIDS (transmissão de moléstia venérea ou grave), de lesionar, de expor a perigo (caso do crime do artigo 132, caput do CP).

Os julgados dos juízes de 1º grau e dos Tribunais devem considerar os avanços científicos sobre o tratamento do HIV, por exemplo, uma carga viral indetectável ou muito baixa poderia provar que o risco/perigo corrido, pela suposta vítima, foi desprezível, muito baixo, e a Defesa poderia pedir e obter a absolvição do acusado. Estamos falando da não aplicação do crime de perigo concreto do artigo 132, caput do CP e não da aplicação dos demais “crimes de perigo” em geral: o crime de perigo abstrato do artigo 130, caput do CP; os crimes formais de dano, como entendidos pela doutrina, quais sejam, os delitos do artigo 130, § 1º do CP e do artigo 131 do diploma repressivo pátrio; a explicação para essa exclusão vem logo abaixo. De outro modo, o risco baixo, desprezível, deveria embasar também a absolvição para supostos crimes de lesão (dolosa) na forma tentada, pois a pessoa não teria controle sobre a produção do resultado infecção.

Explicando a exclusão acima: a Defesa poderia também pedir o afastamento dos enquadramentos por crime de perigo abstrato (artigo 130, caput do CP) e pelos delitos formais de dano (artigo 130, § 1º e artigo 131, ambos do CP), por serem inconstitucionais, ao violarem os princípios constitucionais da dignidade humana, do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório e da presunção de não culpabilidade, além de ferirem de morte o princípio do direito penal da lesividade (ofensividade): lembremos que, interpretar a relação sexual, sem preservativo, de pessoa com HIV, como a prova cabal de quaisquer dolos, não deixa real espaço para a ampla defesa e para o contraditório, muito ferindo o devido processo legal, a presunção de não culpabilidade e a dignidade humana.   

Mais ainda, alegada e provada a intencionalidade de transmitir o HIV, que haja o enquadramento em lesão dolosa grave (consumada ou tentada) por debilidade permanente (não precisa ser perpétua) de função imunológica: artigo 129, § 1º, inciso III, CP cuja pena é de reclusão de um a cinco anos para o crime consumado, e não em lesão corporal (dolosa) gravíssima por transmissão de enfermidade incurável cuja pena é de reclusão de dois a oito anos para o delito consumado (artigo 129, § 2º, II, CP), pois, na dúvida entre duas interpretações possíveis (lesão grave ou lesão gravíssima?), o julgador deve escolher a mais favorável ao réu, coroando o princípio do favor-rei (instituto do direito processual penal que aplica a interpretação mais favorável ao acusado). O Processo penal também deve considerar a absolvição por falta de provas[56] (artigo 386, VII, Código de Processo Penal, quando não há provas suficientes para a condenação), em todos os casos, ocorrendo a morte, ou a infecção, ou não existindo o contágio, pois, na dúvida, sem a certeza absoluta sobre a autoria, o magistrado deverá absolver o réu como medida de Justiça

Por outro lado, na dúvida entre o cometimento de um crime doloso ou de um delito culposo, pelo princípio do favor-rei, a Defesa pode perfeitamente arguir a ocorrência da infração penal culposa e o magistrado, constatando a dúvida, prolatar sentença condenatória, decretando a responsabilidade penal por crime culposo.

Por fim, considerando que, num início, os julgados de 1º e 2º graus, principalmente no estado de SP, como tentativa de homicídio simples ou tentativa de homicídio qualificado, foram atos de preconceito e discriminação do portador do HIV, bem como responsabilidade penal objetiva, é muito importante que haja o afastamento, em quaisquer graus de jurisdição no Brasil, em todos os casos concretos e julgamentos, do homicídio doloso simples ou qualificado, sejam em suas formas consumadas ou tentadas, para a exposição sexual ou transmissão sexual do HIV/AIDS, porque estar infectado com HIV não é uma sentença de morte. Além disso, deve haver a suposição inicial da responsabilidade penal como negligência pelo não uso do preservativo e pela exposição sexual ou transmissão sexual do HIV: absolvição (no caso, não se pune suposto crime culposo sem o resultado infecção); lesão culposa, quando houver apenas a infecção, ou mesmo a morte, devido à causa relativamente independente superveniente do artigo 13, § 1º do CP; ou homicídio culposo. De fato, a Defesa técnica pode arguir o enquadramento do fato transmissão sexual do HIV como lesão corporal culposa ou homicídio culposo (havendo o óbito); bem como a exposição sexual ao HIV ou sua transmissão, respectivamente, como tentativa de lesão corporal (dolosa) de natureza grave por debilidade permanente de função imunológica, ou como lesão dolosa grave consumada por debilidade permanente de função imunológica (artigo 129, § 1º, III, CP), entre outros delitos. A exposição sexual também pode ser considerada como fato atípico, na medida em que se pune apenas o delito culposo consumado, assim, se partirmos da responsabilidade penal inicial como negligência pelo não uso do preservativo, não havendo a infecção, a Defesa pode arguir a atipicidade do fato, junto com a ausência de quaisquer tipos de dolo, e conseguir a absolvição do réu.

Mais ainda, o movimento social brasileiro de AIDS e este autor repudiam quaisquer proposições legislativas de leis penais especiais que criminalizem a exposição sexual e/ou a transmissão sexual do HIV, como é o caso do PL 4.887/2001 cujas penas para os delitos dolosos ou culposos de transmissão de doença incurável (caso do HIV e de outras doenças) são mais severas do que as punições do atual Código Penal em vigor. Lembrando que se essa proposição legislativa for aprovada, como Lei especial, afastará todos os possíveis enquadramentos no diploma repressivo pátrio (CP) que se mostram menos gravosos para os futuros condenados.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Marclei Silva. A responsabilidade penal pela exposição sexual e transmissão sexual do HIV em relações sexuais consentidas no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4013, 27 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28431. Acesso em: 25 dez. 2024.

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