5. Da nova redação do artigo 308 do CTB (Crime de participação em competição automobilística em via pública)
O artigo 308 do CTB traz a previsão típica da conduta popularmente conhecida como “racha”, vale dizer, a competição, disputa ou corrida não autorizada.
A redação do preceito primário (caput do artigo 308) teve sua parte final alterada. Veja-se:
Redação antiga - No Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada:
Nova redação - “Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada:
Veja-se que a nova lei substituiu a expressão “resulte dano potencial” por “gerando situação de risco”.
Levando-se em conta que a intenção do legislador foi caminhar pelo enrijecimento do rigor punitivo desta norma penal, entendemos que a substituição de tais expressões teve por objetivo deixar claro que o crime do artigo 308 do CTB é de perigo abstrato, pois fala em risco, e não dano potencial. Aliás, “dano potencial” é uma expressão mais forte, vale dizer, demonstra que a situação de portabilidade de dano é concreta (crime de perigo concreto), e dentro do inter criminis, está mais próximo do resultado danoso, ao passo que gerar “situação de risco” é algo que está um pouco mais longe de se concretizar (perigo abstrato).
Ao nosso ver essa foi a finalidade da alteração das expressões, afinal não há outro motivo para a modificação, levando-se em conta que a lei não contém palavras inúteis.
No preceito secundário do artigo 308 do CTB, houve aumento da máxima de 2 anos para 3 anos, transformando-o em um crime de médio potencial ofensivo.
Todavia, como a pena mínima permaneceu em seis meses, continua sendo possível, para a modalidade do caput, a suspensão condicional do processo, nos termos da lei 9099/95.
6. Comentários aos §§ 1º e 2º do artigo 308 do CTB
O art. 308 passou a ter duas formas qualificadas:
§ 1o Se da prática do crime previsto no caput resultar lesão corporal de natureza grave, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.
§ 2o Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.”
Aparentemente pretendeu o legislador com estas duas formas qualificadas torna-los crimes preterdolosos, onde há dolo no antecedente e culpa na consequência.
Todavia, no nosso sentir, não pretendeu a nova lei aniquilar o entendimento do Supremo Tribunal Federal (HC 101.698) tendente ao reconhecimento do dolo eventual em tais casos envolvendo “racha”, haja vista que os §§ 1º e 2º rezam que se “as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo” há incidência do crime do artigo 308, § 1º ou § 2º (a depender do resultado: lesão ou morte). Sedo assim, se as circunstâncias demonstrarem que o agente assumiu o risco de produzir um dos resultados descritos no parágrafos citados haverá indubitavelmente dolo eventual.
Pela nova redação é forçoso concluir que ainda é possível que em casos de morte decorrente de “racha” haja o reconhecimento do dolo eventual, exceto se as circunstâncias fáticas demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo.
Podemos trazer à baila os seguintes exemplos com circunstâncias fáticas diferentes para melhor compreensão dos novos institutos:
Exemplo 1: Dois indivíduos, cada um com o seu respectivo veículo automotor, em via pública, nas proximidades de uma escola movimentada (em horário de saída escolar), resolvem participar de disputa não autorizada pela autoridade competente, e neste ato um deles em alta velocidade, varando vários sinais vermelhos, atropela 5 (cinco) crianças que atravessavam faixa de pedestres. Neste caso, está realmente caracterizado o dolo eventual, não podendo se inferir que o agente não correu o risco de produzir o resultado morte dos transeuntes daquela localidade, eis que varou sinais vermelhos em pleno horário de saída escolar. O agente deverá ser processado e condenado por homicídio doloso (artigo 121 do Código Penal), bem como pelo crime do artigo 308, caput do Código Penal, ambos em concurso formal de crimes, e ser levado a júri, isso em razão do dolo eventual.
Exemplo 2: Dois indivíduos, cada um com o seu respectivo veículo automotor, em via pública, dentro de uma zona industrial, praticamente inabitável, de madrugada, resolvem tirar “racha”, sendo que estavam reunidos naquele local vários espectadores para assistir o “pega”. E um dos condutores de um dos veículos, acreditando em suas habilidades, faz forte curva próximo aos espectadores, contudo por sua negligência, imprudência ou imperícia, atropela alguns deles, levando-os à óbito. Trata-se de culpa consciente, haja vista que, acreditando em suas habilidades, levou à falsa ideia de que nada aconteceria naquele fatídico dia. Neste caso o agente atropelador deverá se processado pelo crime do artigo 308, § 2º do CTB (homicídio culposo na direção de veículo automotor qualificado pela “racha”).
Exemplo 3: Dois indivíduos, cada um com o seu respectivo veículo automotor, em via pública, dentro de uma zona industrial, praticamente inabitável, de madrugada, resolvem tirar “racha”, sendo que surge em meio à corrida na frente de um dos veículos um animal, obrigando o indivíduo que pilotava o referido veículo a realizar manobra brusca, fazendo com que atingisse um andarilho que catava papelões em frente a uma indústria, levando-o a óbito. Há neste caso culpa inconsciente do condutor atropelador, pois não imaginou que surgiria um animal em sua frente de inopino, levando-o a fazer manobra não prevista, atingindo pessoa que imaginou não estar ali naquele local e horário. Neste caso estaríamos diante de caso de culpa inconsciente, o que, diante de brilhante solução dada por Márcio André Lopes Cavalcante, levaria o agente a responder pelo delito do artigo 302, § 2º do CTB.
Exemplo 4: se durante o “racha”, um dos competidores vê um desafeto seu, e atira o carro sobre ele, levando-o a óbito, será caso de homicídio doloso, deverá responder pelo delito do art. 308, caput, do CTB em concurso formal com o art. 121 do CP.
Em que pese seja ainda possível o reconhecimento do dolo eventual, é cediço que os juízes terão com a nova previsão legal mais cautela quando da análise das circunstâncias envolvendo a “racha” e o resultado morte, e , com isso, teremos uma clara tendência em enfraquecer teses pretendendo o reconhecimento do dolo eventual, buscando-se uma pena mais significativa, que levaria o caso a júri.
Notas
[1] BARROS, Francisco Dirceu de. Direito Penal – parte geral. Rio de Janeiro: Campus Jurídico. 2014. p. 9.
[2] COSTA JUNIOR, Paulo José da. Comentários ao Código Penal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva p. 6 apud in BARROS, Francisco Dirceu de. Op.cit. . p. 9.
[3] CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Direito Penal na Constituiçào. p. 88 apud in BARROS, Francisco Dirceu de. Op.cit. . p. 9.
[4] BARROS, Francisco Dirceu de. Op. cit.. p. 9.
[5] Idem.
[6] NUCCI, Guilherme de. Leis penais e processuais penais comentadas – volume 2. 7ª ed. São Paulo: RT. 2013. p. 716.
[7]http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1245895&filename=Tramitacao-PSS+1+CCJC+%3D%3E+PL+2592/2007
[8] GOMES, Luiz Flávio. Nova lei de trânsito: barbeiragem e derrapagem do legislador (?). Disponível em: http://atualidadesdodireito.com.br/lfg/2014/05/13/nova-lei-de-transito-barbeiragem-e-derrapagem-do-legislador/. Acesso em 13 de maio de 2014.
[9] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários à Lei 12.971/2014, que alterou o Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em: http://www.dizerodireito.com.br/2014/05/comentarios-lei-129712014-que-alterou-o.html. Acesso: 13 de maio de 2014.