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Comentários às inovações relativas aos crimes de trânsito - Lei 12.971/14

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24/06/2014 às 12:27
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5.    Da nova redação do artigo 308 do CTB (Crime de participação em competição automobilística em via pública)

O artigo 308 do CTB traz a previsão típica da conduta popularmente conhecida como “racha”, vale dizer, a competição, disputa ou corrida não autorizada.

A redação do preceito primário (caput do artigo 308) teve sua parte final alterada. Veja-se:

Redação antiga - No  Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada:

Nova redação -  “Art. 308.  Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada:

Veja-se que a nova lei substituiu a expressão “resulte dano potencial” por “gerando situação de risco”.

Levando-se em conta que a intenção do legislador foi caminhar pelo enrijecimento do rigor punitivo desta norma penal, entendemos que a substituição de tais expressões teve por objetivo deixar claro que o crime do artigo 308 do CTB é de perigo abstrato, pois fala em risco, e não dano potencial. Aliás, “dano potencial” é uma expressão mais forte, vale dizer, demonstra que a situação de portabilidade de dano é concreta (crime de perigo concreto), e dentro do inter criminis, está mais próximo do resultado danoso, ao passo que gerar “situação de risco” é algo que está um pouco mais longe de se concretizar (perigo abstrato).

Ao nosso ver essa foi a finalidade da alteração das expressões, afinal não há outro motivo para a modificação, levando-se em conta que a lei não contém palavras inúteis.

No preceito secundário do artigo 308 do CTB, houve aumento da máxima de 2 anos para 3 anos, transformando-o em um crime de médio potencial ofensivo.

Todavia, como a pena mínima permaneceu em seis meses, continua sendo possível, para a modalidade do caput, a suspensão condicional do processo, nos termos da lei 9099/95.


6.    Comentários aos §§ 1º e 2º do artigo 308 do CTB 

O art. 308 passou a ter duas formas qualificadas:

§ 1o Se da prática do crime previsto no caput resultar lesão corporal de natureza grave, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.

§ 2o Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.” 

Aparentemente pretendeu o legislador com estas duas formas qualificadas torna-los crimes preterdolosos, onde há dolo no antecedente e culpa na consequência.

Todavia, no nosso sentir, não pretendeu a nova lei aniquilar o entendimento do Supremo Tribunal Federal (HC 101.698) tendente ao reconhecimento do dolo eventual em tais casos envolvendo “racha”, haja vista que os §§ 1º e 2º rezam que se “as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo” há incidência do crime do artigo 308, § 1º ou § 2º (a depender do resultado: lesão ou morte). Sedo assim, se as circunstâncias demonstrarem que o agente assumiu o risco de produzir um dos resultados descritos no parágrafos citados haverá indubitavelmente dolo eventual.

Pela nova redação é forçoso concluir que ainda é possível que em casos de morte decorrente de “racha” haja o reconhecimento do dolo eventual, exceto se as circunstâncias fáticas demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo.

Podemos trazer à baila os seguintes exemplos com circunstâncias fáticas diferentes para melhor compreensão dos novos institutos:

Exemplo 1: Dois indivíduos, cada um com o seu respectivo veículo automotor, em via pública, nas proximidades de uma escola movimentada (em horário de saída escolar), resolvem participar de disputa não autorizada pela autoridade competente, e neste ato um deles em alta velocidade, varando vários sinais vermelhos, atropela 5 (cinco) crianças que atravessavam faixa de pedestres. Neste caso, está realmente caracterizado o dolo eventual, não podendo se inferir que o agente não correu o risco de produzir o resultado morte dos transeuntes daquela localidade, eis que varou sinais vermelhos em pleno horário de saída escolar. O agente deverá ser processado e condenado por homicídio doloso (artigo 121 do Código Penal), bem como pelo crime do artigo 308, caput do Código Penal, ambos em concurso formal de crimes, e ser levado a júri, isso em razão do dolo eventual.

Exemplo 2: Dois indivíduos, cada um com o seu respectivo veículo automotor, em via pública, dentro de uma zona industrial, praticamente inabitável, de madrugada, resolvem tirar “racha”, sendo que estavam reunidos naquele local vários espectadores para assistir o  “pega”. E um dos condutores de um dos veículos, acreditando em suas habilidades, faz forte curva próximo aos espectadores, contudo por sua negligência, imprudência ou imperícia, atropela alguns deles, levando-os à óbito. Trata-se de culpa consciente, haja vista que, acreditando em suas habilidades, levou à falsa ideia de que nada aconteceria naquele fatídico dia. Neste caso o agente atropelador deverá se processado pelo crime do artigo 308, § 2º do CTB (homicídio culposo na direção de veículo automotor qualificado pela “racha”).

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Exemplo 3: Dois indivíduos, cada um com o seu respectivo veículo automotor, em via pública, dentro de uma zona industrial, praticamente inabitável, de madrugada, resolvem tirar “racha”, sendo que surge em meio à corrida na frente de um dos veículos um animal, obrigando o indivíduo que pilotava o referido veículo a realizar manobra brusca, fazendo com que atingisse um andarilho que catava papelões em frente a uma indústria, levando-o a óbito. Há neste caso culpa inconsciente do condutor atropelador, pois não imaginou que surgiria um animal em sua frente de inopino, levando-o a fazer manobra não prevista, atingindo pessoa que imaginou não estar ali naquele local e horário. Neste caso estaríamos diante de caso de culpa inconsciente, o que, diante de brilhante solução dada por Márcio André Lopes Cavalcante, levaria o agente a responder pelo delito do artigo 302, § 2º do CTB.

Exemplo 4: se durante o “racha”, um dos competidores vê um desafeto seu, e atira o carro sobre ele, levando-o a óbito, será caso de homicídio doloso, deverá responder pelo delito do art. 308, caput, do CTB em concurso formal com o art. 121 do CP.

Em que pese seja ainda possível o reconhecimento do dolo eventual, é cediço que os juízes terão com a nova previsão legal mais cautela quando da análise das circunstâncias envolvendo a “racha” e o resultado morte, e , com isso, teremos uma clara tendência em enfraquecer teses pretendendo o reconhecimento do dolo eventual, buscando-se uma pena mais significativa, que levaria o caso a júri.


Notas

[1] BARROS, Francisco Dirceu de. Direito Penal – parte geral. Rio de Janeiro: Campus Jurídico. 2014. p. 9.

[2] COSTA JUNIOR, Paulo José da. Comentários ao Código Penal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva p. 6 apud in BARROS, Francisco Dirceu de. Op.cit. . p. 9.

[3] CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Direito Penal na Constituiçào. p. 88 apud in BARROS, Francisco Dirceu de. Op.cit. . p. 9.

[4] BARROS, Francisco Dirceu de. Op. cit.. p. 9.

[5] Idem.

[6] NUCCI, Guilherme de. Leis penais e processuais penais comentadas – volume 2. 7ª ed. São Paulo: RT. 2013. p. 716.

[7]http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1245895&filename=Tramitacao-PSS+1+CCJC+%3D%3E+PL+2592/2007

[8] GOMES, Luiz Flávio. Nova lei de trânsito: barbeiragem e derrapagem do legislador (?). Disponível em: http://atualidadesdodireito.com.br/lfg/2014/05/13/nova-lei-de-transito-barbeiragem-e-derrapagem-do-legislador/. Acesso em 13 de maio de 2014.

[9] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários à Lei 12.971/2014, que alterou o Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em: http://www.dizerodireito.com.br/2014/05/comentarios-lei-129712014-que-alterou-o.html. Acesso: 13 de maio de 2014.

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Sobre o autor
Marcelo Rodrigues da Silva

Advogado. LL.M ("Marster of Laws") em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em direito público com ênfase em direito constitucional, administrativo e tributário pela Escola Paulista da Magistratura (EPM). Especialista em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Especialista em direito público pela Escola Damásio de Jesus. Extensão Universitária em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito. Extensão Universitária em Recursos no Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor conteudista do Atualidades do Direito dos editores Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini. Possuiu vários artigos em revistas jurídicas, tais como Lex, Magister, Visão Jurídica, muitas das quais com matéria de capa. Colaborador permanente, a convite, da Revista COAD/ADV. Ex-Representante do Instituto Brasileiro de Direito e Política da Segurança Pública (IDESP.Brasil). Ex-estagiário concursado do Ministério Público de São Paulo. Fiscal do Exame Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Marcelo Rodrigues. Comentários às inovações relativas aos crimes de trânsito - Lei 12.971/14. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4010, 24 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28461. Acesso em: 19 abr. 2024.

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