1. A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS E SEU PROCESSO DE AFIRMAÇÃO: OS PRIMEIROS PASSOS PARA O ENCONTRO COM A QUESTÃO AMBIENTAL EM UMA INTRODUÇÃO AMPLIATIVA
Uma estrela existia e não era a estrela matutina, brilhando do alto dos céus, não era uma luz na noite do passado. Tu a sentiste, vinha mesmo do peito dos homens, dos operários que descansavam, dos marítimos que cheiravam a maresia e tinham os olhos ardidos do vento do mar, do soldado que amava uma mulata nas areias do trapiche, vinha da terra, uma luz de presente, uma luz de esperança, uma luz de futuro. Tu a sentiste na noite, boiando no ar, vinha do povo sentado na areia. 1
(Jorge Amado em “O cavaleiro da esperança”)
Quando Jorge Amado, exilado no Prata, escreveu “O cavaleiro da esperança”2 (uma espécie de biografia/manifesto vaticinando a consagração dos direitos humanos), fê-lo para materializar uma concepção política dentro do contexto de sua realidade; fê-lo para trazer - à sensação tátil e visual de quem lesse a sua obra - essa proximidade de uma luz de esperança, luz de futuro, nascida de uma estrela; de uma estrela que “vinha mesmo do peito dos homens”, que vinha do “desejo” humano de ver presentado na política a perspectiva de concretude dos seus direitos, porque homens e direitos se fundem (devem se fundir) em uma infinita luta evolutiva pelas garantias essenciais e para além delas.
Indubitavelmente, essas palavras de Jorge Amado apresentam-se como uma das construções metafóricas mais belas e ricas da literatura brasileira e, embora se remeta à “conjuntura Prestes”, não se pode esquecer que o Brasil vivia, naquele mesmo período, os horrores da ditadura do Estado-Novo; ao passo que o mundo definhava sob o manto do terror nazista, responsável pelo “desencadeamento do poder assassino e do poder soberano através de todo o corpo social”.3 A necessidade de uma manifestação geral em favor de uma ordem mais justa - não apenas de direito, mas de um direito humanitário - impunha-se como algo indispensável, portanto. Mas, a história dos direitos humanos definitivamente não começou ali.
Pode-se dizer que há cinco grandes marcos na historiografia dos direitos humanos, quais sejam: a edição da Magna Carta em 1215 (que assinalou o reconhecimento do status libertatis aos súditos dos reis, iniciando a compreensão de que, mesmo a força régia, encontrava-se limitada pelas próprias leis); o Bill of rights de 1689 (que encerrou o absolutismo monárquico possibilitando a declaração de direitos essenciais - como o de petição ao rei), a Declaração de Direitos da Virginia de 1776 (que reconheceu direitos imanentes à pessoa, inclusive o de liberdade religiosa), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (que introduziu o conceito de cidadania - censitária é bem verdade, mas indispensável no processo evolutivo dos direitos humanos, cuja presença passaria - dali em diante - a ser obrigatória no núcleo material mínimo da constituição) e, por fim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
Foi preciso – assim - percorrer um longo caminho até o instante histórico em que os direitos humanos encontraram abrigo numa contextualização formal de relevo; numa documentação escrita que lhes conferiu “nome e sobrenome”, mas que – em si mesma – não representava um reconhecimento ou mesmo criação, considerando-se que tais direitos não são frutos de uma fabricação estatal recheada de intencionalidades, a despeito da concepção positivista; mas, antes de tudo, são resultados das exigências morais de um dado período histórico, cabendo aos Estados o dever de, no máximo, afirmá-los, concretizá-los e assumi-los como postulados para o próprio comportamento doméstico e perante a comunidade internacional. Aliás, como bem destacou Dalmo de Abreu Dallari:
[...] a Assembléia Geral das Nações Unidas proclama os direitos fundamentais. É bem expressivo esse termo, pois torna evidente que não há concessão ou reconhecimento dos direitos, mas proclamação deles, significando que sua existência independe de qualquer vontade ou formalidade. Assim sendo, tratando-se de direitos fundamentais inerentes à natureza humana, nenhum indivíduo ou entidade, nem os governos, os Estados ou a própria Organização das Nações Unidas, tem legitimidade para retirá-los de qualquer indivíduo.4 (Grifos nossos)
Quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada, por unanimidade, entre 48 Estados no mês de dezembro de 1948, a questão era outra - bem diversa da que favoreceria a um encanto global pelo “reconhecimento” dos direitos humanos - e muito mais complexa por tangenciar uma tentativa de se barrar novos capítulos em que o casamento entre o homem e a barbárie fosse feito sobre os abrigos do Estado – como ocorrera no nazismo alemão.
O mundo havia acabado de provar uma das suas experiências mais amargas e o gosto acre das resultantes de uma guerra mundial desumana reivindicava a formação de um sistema capaz de instrumentalizar a proteção do ser humano, tendo em vista as recém vivenciadas situações de flagrante violação da sua condição enquanto pessoa; enquanto sujeito. Isso não significa, contudo, que a proclamação dos direitos humanos - numa declaração instrumentalmente política - trouxe à consubstanciação efetiva dos ideais nela proclamados, apesar desse apelo conjuntural.
A resistência à consagração de uma ordem internacional verdadeiramente humanitária refletia, em parte, um ceticismo universalizado que se instalara na mente das pessoas em relação aos direitos fundamentais e, em outra parcela, traduzia uma descrença com as bases textuais que alicerçaram a formulação do corpo declaratório – muito análogo, por sinal, ao utilizado nas sociedades de proteção aos animais da época. Hannah Arendt, de forma extremamente direta e lúcida, disparou:
O pior é que as sociedades formadas para a proteção dos Direitos do Homem e as tentativas de se chegar a uma nova definição dos direitos humanos eram patrocinadas por figuras marginais — por alguns poucos juristas internacionais sem experiência política, ou por filantropos apoiados pelos incertos sentimentos de idealistas profissionais. Os grupos que formavam e as declarações que faziam tinham uma estranha semelhança de linguagem e composição com os das sociedades protetoras dos animais. Nenhum estadista, nenhuma figura de certa importância podia levá-los a sério; e nenhum dos partidos liberais ou radicais da Europa achava necessário incorporar aos seus programas uma nova declaração dos direitos humanos. Nem sequer as próprias vítimas, em suas numerosas tentativas de escapar do labirinto de arame farpado no qual haviam sido atiradas pelos acontecimentos, invocaram — nem antes nem depois da Segunda Guerra Mundial — esses direitos fundamentais, que tão evidentemente lhes eram negados. Pelo contrário, as vítimas compartilhavam o desdém e a indiferença das autoridades constituídas em relação a qualquer tentativa das sociedades marginais de impor os direitos humanos em qualquer sentido elementar ou geral.5 (Grifos nossos)
Isso apenas mostra que a concepção de um direito humanitário foi construída sobre um conglomerado de escombros da segunda grande guerra e, até que os fantasmas desaparecessem; até que o descrédito cedesse espaço para uma afirmação ativa e atuante dos direitos fundamentais da pessoa humana, foi preciso um período duro de longas rupturas paradigmáticas para além das quebras de padrões meramente conceituais; foi preciso inventar um novo modo do homem vislumbrar o homem dentro da sua atividade de pensar, agir e querer - fora e no interior do Estado ao qual se encontrava inserido.
A realidade é que, na construção histórica dos direitos humanos, muitos povos foram excluídos do processo de elaboração declaratória dos “seus” direitos. E, embora se advogue uma universalidade desses direitos humanitários, com o objetivo de ofertar titularidade global a todas as pessoas para que elas possam vindicá-los - a qualquer tempo - em suas defesas, é preciso não perder de vista que, como bem observa Boaventura de Sousa Santos, “as pessoas têm o direito de serem iguais sempre que a diferença as tornarem inferiores, mas elas também têm o direito de serem diferentes sempre que a igualdade comprometer a sua identidade”6. Principalmente, porque também não se deve esquecer que “as políticas de direitos humanos em geral têm estado a serviço dos interesses econômicos e geopolíticos dos Estados capitalistas hegemônicos”7 e “o discurso generoso e sedutor sobre os direitos humanos permitiu atrocidades indescritíveis”8.
Da análise histórica, depreende-se que a proclamação “universalizante” dos direitos fundamentais emerge em contextos de arrocho, de esganadura da condição humana. A monarquia escorchou o povo que se revoltou e derrubou a monarquia, afirmando posse e estado de direitos. As grandes guerras reduziram o homem ao nada, retirando-lhes a própria condição de ser; negando-lhes o atributo de ser-algo-no-mundo e os países, após uma longa lentidão que rendeu o custo de milhares de mortos no holocausto e em Hiroshima, despertaram para a possibilidade de serem os próximos preteridos; acordaram para o risco de se tornarem, um dia, os novos proscritos de viver, formulando – assim, (e por isso) uma nova Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma nova afirmação de valores essenciais inerentes à pessoa.
Foi na crise que o homem promoveu as suas escolhas, portanto. É, na crise, que ele normalmente o faz. A própria palavra crise, do grego Krisis, é radicada numa noção de escolha, advinda da medicina hipocrática. A crise era então, para Hipócrates, o preciso ponto em que uma doença evoluía favorável ou contrariamente a vida de um enfermo. E qual seria a grande escolha ou a grande crise do momento? Indubitavelmente, a ambiental.
A crise ambiental é, nessa atual conjunção de acontecimentos, a crise humana de repercussão global sobre todas as espécies vivas, porque o meio ambiente é o palco no qual se radica a vida – não somente humana – mas também a vida humana e, consequentemente, onde se frutificarão ou serão abolidos os direitos do homem. Daí decorre a pergunta elementar: seria possível falar em um direito humano ambiental?
Como propugna Flavia Piovesan em “Direitos Humanos e Justiça Internacional”, “na condição de reivindicações morais, os direitos humanos nascem quando podem e devem nascer”9 e, por mais desconfortável que pareça a relação existente entre os direitos do homem e os discursos ambientais, esse elo apresenta visibilidade incontestável. Sem dúvidas, o instante é de crise e impõe decisões, mas, se tudo historicamente for uma questão de escolha mesmo, só resta saber por qual caminho a humanidade seguirá daqui para frente ou se vagará sem rumo e sem destino como refugiada das condições que criou.
2. O MEIO AMBIENTE COMO PALCO DA CRISE DA HUMANIDADE E O FRACASSO DA COP 19
De Fuyang na China - com suas nuvens de poluição - até São Paulo no Brasil, com seu céu eternamente cor de sampa poética que Caetano cantou. Não há como escapar dessa realidade. Residindo em um grande centro urbano, será inevitável pagar o alto preço do progresso desassociado de um ideal de sustentabilidade. Mas, hoje, mesmo nas menores cidades, as perspectivas (fora dos parâmetros de desenvolvimento sustentável) também não andam tão boas, considerando-se que há a questão climática e esse problema afeta a todos – com ou sem engarrafamento de 3 horas. Enchentes, secas prolongadas, chuvas com índice pluviométrico completamente fora dos parâmetros de normalidade não são privilégios de regiões geográficas, são os sortilégios do capital.
Na tentativa de preparar o terreno para a Conferência das Partes de 2014 que será em Paris (lugar em que se poderá chegar – talvez/miraculosamente - a um substituto para o Protocolo de Kyoto10, realizou-se em novembro de 2013 a Conferência das Partes de 2013. O resultado, infelizmente, foi uma enorme falta de vontade política e a profunda sensação de que “vivemos num mundo diversificado e polifônico, onde toda tentativa de inserir consenso se mostra somente uma continuação do desacordo por outros meios”11. Bauman mais uma vez acertou sem ver.
Não adiantou filipino comovendo o mundo com a tristeza do seu país, não adiantou Greenpeace e World Wildlife Fund (WWF) se retirarem num ato histórico, conjuntamente com outras organizações da própria Conferência das Partes. O diálogo, que não preponderou até ali, não estava pronto mesmo para ocorrer. Os ricos queriam acumular mais riqueza (Japão, Canadá e Austrália) e jamais cederiam a algo em suas metas produtivas para diminuírem as emissões de carbono. A solidariedade se restringiu – então - aos três minutos de silêncio. E, forçosamente, Balandier acertou por ver que se vive nessa “Des-natureza” que coloca o homem no centro de tudo e o ambiente em que ele vive na condição de palco escravizado dos desígnios de um senhor exigente e ávido por mais produção:
a modernidade atual, mais que nenhuma outra época, subverteu a relação com a natureza e a maneira de exprimi-la – pela fascinação, pela dúvida, pela contestação. Esta nasce da refutação do produtivismo, da recusa a uma submissão crescente e consideração nefasta ou mortífera das riquezas e forças naturais. A constatação geradora das reações individuais e coletivas é a de uma des-natureza sempre e cada vez mais exacerbada. Os espaços urbanos e industriais continuam sua expansão preservando espaços naturais que parecem mantidos unicamente por artifícios. Os danos e a poluição progridem degradando as espécies vegetais, agredindo tudo que é dotado de vida animal; uma nova imagística do mal e da fatalidade se cria, substituindo as entidades de antigamente – á água (suspeita), o ar (impuro), a luz solar (velada) e o alimento (falsificado) podem se tornar as figuras de uma simbólica negativa [...] A natureza torna-se aparentemente um registro sob o qual se inscreve a dinâmica da ordem e da desordem, da vida (do que contribui para a sua qualidade) e da morte (do que pode provocá-la maciçamente)12
É justamente nessa conjuntura de refutação do produtivismo, contrastada com a constatação do esgotamento das forças naturais da própria terra que se torna indispensável o reconhecimento do direito humano ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como forma, inclusive, de pressionar a comunidade internacional como um todo; forçando-lhe ao debate com cessões (e concessões) que apenas virão espontaneamente – talvez – num ponto de degradação do planeta em que já não se possa mais invocar o Cavaleiro da Esperança, mas apenas lidar com os cavaleiros de um apocalipse catastrófico.
3. A SUBSTANTIVAÇÃO DO DIREITO HUMANO AMBIENTAL À LUZ DE RODRIGUEZ-RIVERA
A realidade é que substantivar o direito humano ambiental tem importância elementar, sobretudo para a esfera do Direito Internacional, mas, inevitavelmente, os efeitos internos serão sentidos de modo positivo na proteção ao meio ambiente. E, em que pese a existência de argumento no sentido de que não se deveria falar num direito humano ambiental por excluir desse contexto os animais, sabe-se do quão falacioso é esse discurso; na medida em que (como já visto) o nascedouro dos direitos humanos foi as disposições das sociedades protetoras dos animais. Sem elas, não teríamos boa parte das construções relativas aos direitos do homem da atualidade, já que os direitos humanos são indubitavelmente uma edificação histórica daí provinda.
E a defensabilidade de um direito humano ao meio ambiente ecologicamente equilibrado - e sua repercussão na efetiva proteção (trans)nacional ambiental, edifica-se na própria percepção de que as fontes do direito internacional não se resumem àquelas classicamente elencadas pela doutrina tradicional. De acordo com Luis Rodriguez-Rivera:
A resposta para a questão de saber se o direito humano ao meio ambiente é reconhecido pelo direito internacional: Depende! Se as fontes do direito internacional são expandidas em conformidade com a evolução do direito internacional moderno, reconhecendo, assim, que a vontade do povo pode ser evidenciada através de outras fontes além das fontes clássicas propostas por estudiosos no tradicionalismo jurídico, a resposta é um sim definitivo. Mas, se a comunidade jurídica internacional continua restringindo a evolução da teoria das fontes, então a resposta é "ainda não".13
Indubitavelmente, adotar a concepção moderna fornece azo ao entendimento do processo de “humanização” de um direito; do caminho pelo qual um direito atravessa até ser içado à categoria de direito humano sem o risco de se creditar aos desígnios dos Estados (muitas vezes contrários aos interesses humanitários) a responsabilidade exclusiva pela partenogênese dos direitos humanos). De qualquer forma, ainda que recorrêssemos ao Sistema Global de proteção dos direitos humanos - ou mesmo ao Sistema Regional protetivo – encontraríamos disposições capazes de sustentar o direito humano ao meio ambiente.
In casu, objetivando uma interpretação dos instrumentos internacionais lastreada no princípio internacional pro homine (dignidade da pessoa humana), torna-se possível detectar o direito expansivo ao ambiente, seja de forma implícita na Declaração Universal dos Direitos Humanos, Pactos de Nova York; seja explicitamente na Declaração de Biskaia sobre o Direito ao Meio Ambiente e na Carta de Banjul (Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos).
É, inclusive, de se indagar o porquê dessa não previsão direta em documentos de relevo no cenário internacional. É de se pensar a quem serve esse direito humano dito, mantido escondido e falado em segredo - tão baixo; tão baixo que não chega a ser um silêncio, mas encorpa de forma escusa a argumentação de desenvolvimentistas (“não sustentáveis”) contrários ao direito humano ambiental. Mas, para o bem do ser humano, para o bem da natureza, é a visão humanitária que deve preponderar; é a visão de um direito humano ao meio ambiente ecologicamente equilibrado que deve (e precisa) prevalecer. E há mecanismos para isso.