1. Introdução.
No final de 2012, com o objetivo de aumentar a arrecadação do Estado da Bahia, foi editada a Lei Estadual nº 12.609, de 27/12/2012, para instituir taxa “pela utilização potencial do serviço de extinção de incêndios” que, desde o início, levantou uma série de discussões.
A criação do tributo deu-se por meio de uma alteração na Lei de Taxas Estadual (Lei Estadual nº 11.631/2009) e o Estado da Bahia fê-la como uma modalidade de taxa pelo exercício regular do poder de polícia, na área da Secretaria de Segurança Pública, no âmbito do Corpo de Bombeiros, mas pela utilização potencial do serviço de extinção de incêndios[1].
A categorização da taxa como uma espécie de contraprestação pelo exercício de poder de polícia era problemática. O serviço de extinção de incêndio não possui nenhuma relação com criação de limites e/ou exercício de fiscalização próprios do poder de polícia (CTN, art. 78) e no melhor cenário poderia enquadrar-se como espécie de serviço público. Nada obstante, foi essa a natureza que a legislação estadual lhe atribuiu.
Em paralelo, outro ponto controverso era a forma pela qual se estabeleceu o aspecto quantitativo do tributo: a Lei Estadual nº 12.609/2012 optou pelo uso de alíquotas específicas – R$ 0,50 para imóveis residenciais e R$ 0,90 para imóveis residenciais – aplicáveis sobre base de cálculo representada por cada 100 kWh de consumo de energia elétrica no ano imediatamente anterior[2].
Os problemas de concepção do novo tributo deram azo a uma série de ações judiciais com a finalidade de impedir a cobrança da taxa e, na maior parte delas, houve deferimento de liminares para obstá-la[3] Os questionamentos em face da taxa multiplicaram-se, ao ponto de a Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Bahia (OAB/BA) ingressar, no Tribunal de Justiça da Bahia, com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. Portanto, havia fortes indícios de que a cobrança em tela, na forma em que concebida, encontraria óbice no Judiciário.
Então, o Estado da Bahia, com o objetivo de resolver os principais pontos de controvérsia, alterou sensivelmente o regime do tributo com a edição da Lei nº 12.929/2013, que trouxe novas modificações à Lei Estadual de Taxas. Entre outras, retificou o enquadramento da exação, para incluí-la entre as taxas de serviço (art. 1º, II, da Lei Estadual nº 11.631/2009); também, mudou a sistemática de cálculo, ao estabelecer que “o valor da taxa é determinado pelo coeficiente de risco de incêndio do imóvel[4]”. Enfim, o objetivo foi claramente adotar a estrutura jurídica de tributo idêntico cobrado pelo Estado de Minas Gerais, cuja legitimidade já fora avalizada em algumas decisões judiciais[5].
2. Fundamentos da inconstitucionalidade.
Há diversos fundamentos que sugerem a inconstitucionalidade da exigência de taxa “pela utilização potencial do serviço de extinção de incêndios”, seja na forma originária (Lei Estadual nº 12.609, de 27/12/2012), seja na atual (Lei Estadual nº 12.929/2013, de 28/12/2013).
A Constituição Federal permite União, Estados, Municípios e Distrito Federal instituírem “taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos e específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição” (art. 145, II da CF).
O texto constitucional autoriza a criação dessa espécie tributária em decorrência de alguma das duas atividades estatais que especifica, sempre quando diretamente relacionadas à pessoa do contribuinte: (i) a efetiva prestação de serviço público específico e divisível, ou disponibilidade dele, quando compulsório (uso potencial), ou; (ii) o exercício do poder de polícia.
O Código Tributário Nacional – CTN reitera os requisitos constitucionais para a instituição das taxas (art. 77), discrimina as atividades que caracterizam o exercício do poder de polícia (art. 78) e enumera os pressupostos para se exigi-la sobre os serviços (art. 79). A legislação dispõe:
Art. 77. As taxas cobradas pela União, Estados, Municípios e Distrito Federal, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição.
Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.
Art. 79. Os serviços públicos a que se refere o art. 77 consideram-se:
I – utilizados pelo contribuinte:
a) efetivamente, quando por ele usufruídos a qualquer título;
b) potencialmente, quando, sendo de utilização compulsória, sejam postos à sua disposição mediante atividade administrativa em efetivo funcionamento;
II – específicos, quando possam ser destacados em unidades autônomas de intervenção, de utilidade ou de necessidade públicas;
III – divisíveis, quando suscetíveis de utilização, separadamente, por parte de cada um dos seus usuários.
As duas situações em tela – exercício de poder de polícia e prestação de serviço – possuem em comum o vínculo com alguma ação do Estado. É inerente à espécie tributária, ao contrário do imposto, caracterizar-se como uma exação bilateral ou contraprestacional, de modo que “em qualquer das hipóteses previstas para a instituição de taxas (...), o caráter sinalagmático deste tributo haverá de mostrar-se à evidência[6]”.
Entretanto, não é toda e qualquer atuação da Administração Pública que autoriza instituir-se essa espécie de exação: a cobrança dela não prescinde: (i) da especificidade e divisibilidade do ato estatal em razão da qual a taxa é exigida, e; (ii) do uso efetivo, por um lado, ou potencial e compulsório, por outro. Os requisitos se encontram discriminados nos arts. 77 e 79 do CTN e, ao analisar os dois primeiros deles, EDUARDO SABBAG[7], com amparo em vasta doutrina, explica:
“Assim, o serviço público estipendiado pela taxa de utilização em comento será:
a) Específico: também intitulado serviço público ‘singular’ (ou ut singuli), é aquele destacável em unidades autônomas de utilização[8], permitindo-se identificar o sujeito passivo ou discriminar o usuário. Direciona-se, assim, a um número determinado de pessoas;
b) Divisível: é aquele passível de individualização ou ‘suscetível de utilização individual pelo contribuinte’[9], ou seja, o serviço quantificável, que traz um benefício individualizado para o destinatário da ação estatal. Conforme aduz Luciano Amaro[10], ‘o imposto é o modo de financiamento próprio dos serviços públicos indivisíveis, e a taxa, dos serviços divisíveis’. Com efeito, a divisibilidade ‘pressupõe que o Estado os destaque ou especialize, segregando-os do conjunto de suas tarefas para a eles vincular a cobrança das taxas[11]’.
Aliás, o serviço público, mostrando-se específico, será, necessariamente, divisível, manifestando-se este atributo como corolário daquele. Todavia, há entendimento doutrinário oposto: ‘Se o serviço for indivisível descabe taxá-lo, se divisível, a taxa pode ser instituída. Ou seja, o que importa é a ‘divisibilidade’, e não a especificidade do serviço[12]’.”
Os pressupostos normativos para a instituição do tributo atrelam a (i)legitimidade da taxa de incêndio ao tipo de atividade ao qual ela vincula-se: por um lado, se atividade estatal corresponde a uma prestação divisível (ut singuli) não há óbice à exigência do tributo; contrariamente, se a utilidade é disponibilizada para toda a coletividade – o benefício é genérico ou geral – não há amparo para a cobrá-lo, pois o custeio deve-se realizar por impostos.
O serviço de extinção a incêndios é executado institucionalmente, em regra, pelos Corpos de Bombeiros estaduais, que fazem parte dos órgãos administrativos responsáveis pela Segurança Pública, por expressa previsão constitucional, como se verifica no art. 144 da CF/88:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
[...]
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
[...]
§ 5º - às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.
Na Bahia, nos termos do art. 46 da Constituição do Estado, a prevenção e combate a incêndio, busca e salvamento é imputado ao seu Corpo de Bombeiros Militar que, por sua vez, integra a Polícia Militar, cujas atribuições são especificadas no art. 1º da Lei Estadual nº 9.848/2005. O texto da redação estadual é o seguinte:
Constituição Estadual:
Art. 148 - À Polícia Militar, força pública estadual, instituição permanente, organizada com base na hierarquia e disciplina militares, competem, entre outras, as seguintes atividades:
I - polícia ostensiva de segurança, de trânsito urbano e rodoviário, de florestas e mananciais e a relacionada com a prevenção criminal, preservação, restauração da ordem pública e defesa civil;
II - a prevenção e combate a incêndio, busca e salvamento a cargo do Corpo de Bombeiros Militar;
Lei nº 9.848/05:
Art. 1º - A Polícia Militar da Bahia - PM/BA, órgão em regime especial de administração direta, nos termos da Lei nº 2.428, de 17 de fevereiro de 1967, da estrutura da Secretaria da Segurança Pública, tem por finalidade preservar a ordem pública, a vida, a liberdade, o patrimônio e o meio ambiente, de modo a assegurar com equilíbrio e eqüidade, o bem estar social, na forma da Constituição do Estado da Bahia , competindo-lhe:
I - exercer a missão de polícia ostensiva de segurança, de trânsito urbano e rodoviário, de florestas e mananciais, além do relacionado com a prevenção criminal, preservação e restauração da ordem pública e defesa civil;
II - promover a prevenção e combate a incêndios, busca e salvamento, bem como realizar atividades auxiliares de socorro de urgência e atendimento de emergência pré-hospitalar;
III - promover a participação da comunidade no Corpo de Bombeiros, em forma de cooperação e de modo voluntário;
Os dispositivos da Constituição Federal, da Constituição do Estado da Bahia e da Lei Estadual nº 9.848/05 mostram, à evidência, que a extinção de incêndios é uma atividade que se inclui no gênero “segurança pública”, com o objetivo declarado de indistintamente preservar, entre outros, a vida, o patrimônio e o meio ambiente.
O combate de incêndios representa, no âmbito das funções de segurança pública, atividade exercida pelo Estado no campo da defesa civil, como se conclui da Lei da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil – PNPDEC (Lei nº 12.608/2012). A legislação registra que “é dever da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios adotar as medidas necessárias à redução dos riscos de desastre” (art. 2º) e, ao regulamentá-la, o Decreto nº 7.257/2010 fixa conceitos que elucidam a natureza do serviço que se pretende taxar. Neste rumo, dispõe:
Art. 2º Para os efeitos deste Decreto, considera-se:
I - defesa civil: conjunto de ações preventivas, de socorro, assistenciais e recuperativas destinadas a evitar desastres e minimizar seus impactos para a população e restabelecer a normalidade social;
II - desastre: resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem sobre um ecossistema vulnerável, causando danos humanos, materiais ou ambientais e conseqüentes prejuízos econômicos e sociais;
[...]
V - ações de socorro: ações imediatas de resposta aos desastres com o objetivo de socorrer a população atingida, incluindo a busca e salvamento, os primeiros-socorros, o atendimento pré-hospitalar e o atendimento médico e cirúrgico de urgência, entre outras estabelecidas pelo Ministério da Integração Nacional;
VI - ações de assistência às vítimas: ações imediatas destinadas a garantir condições de incolumidade e cidadania aos atingidos, incluindo o fornecimento de água potável, a provisão e meios de preparação de alimentos, o suprimento de material de abrigamento, de vestuário, de limpeza e de higiene pessoal, a instalação de lavanderias, banheiros, o apoio logístico às equipes empenhadas no desenvolvimento dessas ações, a atenção integral à saúde, ao manejo de mortos, entre outras estabelecidas pelo Ministério da Integração Nacional;
VII - ações de restabelecimento de serviços essenciais: ações de caráter emergencial destinadas ao restabelecimento das condições de segurança e habitabilidade da área atingida pelo desastre, incluindo a desmontagem de edificações e de obras-de-arte com estruturas comprometidas, o suprimento e distribuição de energia elétrica, água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana, drenagem das águas pluviais, transporte coletivo, trafegabilidade, comunicações, abastecimento de água potável e desobstrução e remoção de escombros, entre outras estabelecidas pelo Ministério da Integração Nacional;
VIII - ações de reconstrução: ações de caráter definitivo destinadas a restabelecer o cenário destruído pelo desastre, como a reconstrução ou recuperação de unidades habitacionais, infraestrutura pública, sistema de abastecimento de água, açudes, pequenas barragens, estradas vicinais, prédios públicos e comunitários, cursos d'água, contenção de encostas, entre outras estabelecidas pelo Ministério da Integração Nacional; e
IX - ações de prevenção: ações destinadas a reduzir a ocorrência e a intensidade de desastres, por meio da identificação, mapeamento e monitoramento de riscos, ameaças e vulnerabilidades locais, incluindo a capacitação da sociedade em atividades de defesa civil, entre outras estabelecidas pelo Ministério da Integração Nacional.
A partir do Decreto nº 7.257/2010 e da legislação de defesa civil, é correto afirmar que, por definição, incêndio é uma ocorrência de fogo não controlado, perigoso para seres vivos e as estruturas – um desastre, portanto (art. 2º, II) –, capaz de demandar medidas da defesa civil (idem, I), entre as quais ações de socorro imediatas para amparar a população atingida (ibidem, V), que evidentemente incluem a adoção de medidas para extingui-lo.
Neste contexto, não parece haver fundamento para incluir a extinção de incêndios entre os serviços públicos e divisíveis que, por sua vez, são os únicos que legitimam a cobrança de taxas. De fato, a atividade possui características próprias das utilidades disponibilizadas uti universi pelo Poder Público, pois é impossível distinguir a 'quantidade' fruída por cada cidadão. Por conseguinte, não se trata de modalidade de serviço público ut singuli, mas sim um tipo de funções públicas[13]. Neste ponto, é precisa de ALESSI:
"Devem ser excluídas do conceito de serviço público as atividades que, malgrado voltadas a beneficiar genericamente os cidadãos, não têm como conteúdo uma prestação em sentido próprio, em sentido técnico. Devem ser excluídas, assim, todas aquelas atividades que traduzem apenas uma vantagem oferecida e usufruída pelos cidadãos enquanto membros da coletividade. Ou seja, nos referimos àquelas atividades uti universi, como, por exemplo, as atividades voltadas a garantir a segurança interna e externa; o serviço de iluminação dos logradouros públicos, etc. Isso porque o desenvolvimento por parte da Administração Pública de tais atividades é insuscetível de gerar qualquer relação jurídica concreta entre o Estado e os cidadãos que de fato vierem a delas se beneficiar. Não se pode, portanto, conferir a essas atividades o caráter de prestação em sentido técnico, o que só é possível em relação àquelas atividades pessoais que sejam o objeto de uma relação jurídica obrigacional concreta[14]".
Em outros termos, a extinção de incêndio é uma atividade de segurança pública, com o objetivo de garantir indistintamente a incolumidade de pessoas e bens, realizada no âmbito da defesa civil. O serviço é prestado para toda a coletividade, precipuamente porque a utilidade dele não se limita ao bem ou local no qual o fogo se iniciou: beneficia também o patrimônio e a integridade física de terceiros e, sem prejuízo de igualmente preservar a higidez do meio ambiente, direito difuso por natureza (art. 225, caput, da CF/88[15]).
Por tudo isso, não há falar-se em prestação especificamente imputável a algum contribuinte e/ou em serviço público divisível, de modo que as despesas com a atividade apenas admitem custeio por impostos, como, aliás, decidiu o STF em controvérsias semelhantes:
“Em face do art. 144, caput, V e parágrafo 5º, da Constituição, sendo a segurança pública, dever do Estado e direito de todos, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através, entre outras, da polícia militar, essa atividade do Estado só pode ser sustentada pelos impostos, e não por taxa, se for solicitada por particular para a sua segurança ou para a de terceiros, a título preventivo, ainda quando essa necessidade decorra de evento aberto ao público. Ademais, o fato gerador da taxa em questão não caracteriza sequer taxa em razão do exercício do poder de polícia, mas taxa pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, o que, em exame compatível com pedido de liminar, não é admissível em se tratando de segurança pública.” (ADI 1.942-MC, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 5-5-1999, Plenário, DJ de 22-10-1999.)
“Ação direta de inconstitucionalidade. Medida liminar. 2. Incisos I e II do art. 2º da Lei n.º 13.084/2000, do Estado do Ceará, e dos arts. 3º a 12, do inciso I, do art. 13,bem como do Anexo Único da referida Lei, que cria a "Taxa de Serviços Prestados pelos órgãos de Segurança Pública e Defesa da Cidadania". 3. Alegação de que a atividade é indivisível, devida a todos os cidadãos da coletividade e que não pode vir a ser especificada para cada contribuinte, que para tanto paga impostos. 4. Precedente da Corte que concedeu a liminar, dada a relevância da argüição em causa. Adotada a fundamentação acolhida pela Corte no julgamento de matéria similar, na ADIN 1942-2/PA. 5. Liminar deferida e suspensa, até o julgamento final da ação, com efeitos ex nunc, a vigência dos incisos I e II do art. 2º, da Lei n.º 13.084/2000, do Estado do Ceará, e, em conseqüência, dos arts. 3º a 12; inciso I do art. 13, bem como do Anexo Único da referida Lei estadual”. (ADI 2424 MC, Relator(a): Min. NÉRI DA SILVEIRA, Tribunal Pleno, julgado em 06/03/2002, DJ 07-06-2002 PP-00081 EMENT VOL-02072-01 PP-00162)
“1. TRIBUTO. Taxa de Segurança Pública. É inconstitucional a taxa que tenha por fato gerador a prestação de serviço de segurança pública, ainda que requisitada por particular. Serviço Público indivisível e não específico. Agravo regimental improvido. Precedentes. Dado seu caráter uti universi, o serviço de segurança pública não é passível de ser remunerado mediante taxa, atividade que só pode ser sustentada pelos impostos. 2. RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Jurisprudência assentada. Ausência de razões consistentes. Decisão mantida. Agravo regimental improvido. Nega-se provimento a agravo regimental tendente a impugnar, sem razões consistentes, decisão fundada em jurisprudência assente na Corte. (RE 536639 AgR, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Segunda Turma, julgado em 07/08/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-170 DIVULG 28-08-2012 PUBLIC 29-08-2012)
A indivisibilidade do “serviço” de extinção a incêndios não é o único óbice à legalidade do tributo em questão. A cobrança das taxas não prescinde igualmente da utilização efetiva ou potencial dos serviços aos quais vinculadas, segundo os conceitos e alcance que lhes atribuem a doutrina e a jurisprudência. Mais uma vez, resumindo-os, observa SABBAG[16]:
“Sendo assim, a utilização do serviço público deflagrador da taxa de serviço será:
a) Efetiva: se o serviço for concretamente prestado à coletividade, com fruição fática e materialmente detectável. Vale dizer, um serviço fruído, a qualquer título;
b) Potencial: se o serviço, sendo de utilização obrigatória, for colocado à disposição do usuário-contribuinte, sem a correspondente utilização. Diz-se serviço fruível ou potencialmente utilizado. É que ‘certos serviços trazem vantagens pela sua existência mesma (...), representam vantagem efetiva para quem pode dispor deles’[17]. Em outras palavras, ‘a razão de ser da taxação do uso potencial está, a nosso ver, em que há atividade para cuja execução o Estado se aparelha, mas que podem não estar à disposição de todos os indivíduos da comunidade[18]’.”
A partir do momento em que a exação se autodeclara uma “taxa anual pela utilização potencial do serviço de extinção de incêndios”, a ausência de contraprestação efetiva exige, para legitimá-la, que a atividade estatal seja de uso compulsório do contribuinte. Inclusive, é o que observa Luciano Amaro:
"O que a Constituição Federal (e O Código Tributário Nacional) quer dizer quando menciona 'utilização potencial de serviço público' (ou a circunstância de ser 'posto à disposição' do contribuinte) é que a lei administrativa, por razões de interesse público, pode tomar certos serviços obrigatórios, como o de esgoto, de fornecimento de água, de energia elétrica etc.[19]."
Na falta de lei aprovada pelo Poder Legislativo Federal ou Estadual que imponha a utilização compulsória do serviço de extinção de incêndios, como exige o art. 5, II, da CF/88 – “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;” – é problemático admitir-se a compatibilidade do tributo com a legislação. É o que defende a doutrina:
“Reconhece-se a distinção entre serviços públicos de fruição facultativa e de fruição compulsória. Os primeiros são aqueles em que os usuários dispõem de sua utilização, mas não estão obrigados a fazê-lo. Não há, quanto a eles, qualquer constrangimento jurídico a que os usuários obtenham a prestação. Já os de fruição compulsória estão marcados pela obrigação da utilização. A distinção está consagrada pelo texto constitucional (inciso II, art. 145) e vem prescrita pelo art. 79 da Lei n. 5.172/66 (CTN). O texto legal alude a serviços públicos utilizados efetivamente pelo contribuinte, quando por ele usufruídos a qualquer título, e a serviços apenas potencialmente utilizados pelo usuário, “quando, sendo de utilização compulsória, sejam postos à disposição mediante atividade administrativa em efetivo funcionamento”. A fixação do caráter compulsório ou facultativo da fruição ocorrerá por decisão legislativa[20]”.
Decerto, poder-se-ia argumentar que a própria instituição da taxa pela utilização potencial do serviço é suficiente para torná-lo imperativo, como uma consequência implícita de sua criação ou de vedações correlatas à atividade. Contudo, mesmo nesta hipótese, o caráter de compulsoriedade da fruição de certo serviço em qualquer caso dependerá da inexistência de outros meios de obtenção da prestação, seja por impossibilidade fática ou mediante proibição legal de fazê-lo. Explica HUGO DE BRITO MACHADO:
“Se há norma jurídica proibindo a instalação de grupo gerador ou unidade de captação de energia solar em residências ou estabelecimentos comerciais ou industriais, de sorte que o atendimento da necessidade de energia elétrica por qualquer outro meio que não seja o serviço público torna-se impossível sem violação da ordem jurídica, tem-se que a utilização do serviço, e por isto mesmo o pagamento da remuneração correspondente, é compulsória. Neste caso, essa remuneração correspondente é taxa.
[...]
Se há norma proibindo o atendimento da necessidade de água e de esgoto por outro meio que não seja o serviço público, a remuneração correspondente é taxa. Se a ordem jurídica não proíbe o fornecimento de água em pipas, nem o uso de fossas, nem o transporte de dejetos em veículos de empresas especializadas, nem o depósito destes em locais para esse fim destinados pelo Poder Público, ou adequadamente construídos pela iniciativa privada, então a remuneração cobrada pelo serviço público de fornecimento de água e esgoto é preço público. Se, pelo contrário, existem tais proibições, de sorte a tornar o serviço público o único meio de que se dispõe para o atendimento da necessidade de água e de esgoto, então a remuneração respectiva será taxa.
[...]
Se a ordem jurídica obriga a utilização de determinado serviço, não permitindo o atendimento da respectiva necessidade por outro meio, então é justo que a remuneração correspondente, cobrada pelo Poder Público, sofra as limitações próprias dos tributos. O contribuinte estará seguro de que o valor dessa remuneração há se ser fixado por critérios definidos em lei. Terá, em síntese, as garantias estabelecidas na Constituição[21]”.
Ora, a Lei nº 11.901/2009, que “dispõe sobre a profissão de Bombeiro Civil” expressamente não só faculta ao particular a contratação de profissionais para exercer a “função remunerada e exclusiva de prevenção e combate a incêndio”, como também prevê a existência de empresas[22] especializadas em fazê-lo. Os seus arts. 2º e 4º são expressos sobre o tema:
“Art. 2º Considera-se Bombeiro Civil aquele que, habilitado nos termos desta Lei, exerça, em caráter habitual, função remunerada e exclusiva de prevenção e combate a incêndio, como empregado contratado diretamente por empresas privadas ou públicas, sociedades de economia mista, ou empresas especializadas em prestação de serviços de prevenção e combate a incêndio.
[...]
§ 2º No atendimento a sinistros em que atuem, em conjunto, os Bombeiros Civis e o Corpo de Bombeiros Militar, a coordenação e a direção das ações caberão, com exclusividade e em qualquer hipótese, à corporação militar”.
“Art. 4º As funções de Bombeiro Civil são assim classificadas:
I - Bombeiro Civil, nível básico, combatente direto ou não do fogo;
II - Bombeiro Civil Líder, o formado como técnico em prevenção e combate a incêndio, em nível de ensino médio, comandante de guarnição em seu horário de trabalho;
III - Bombeiro Civil Mestre, o formado em engenharia com especialização em prevenção e combate a incêndio, responsável pelo Departamento de Prevenção e Combate a Incêndio”.
A legislação faculta ao particular tanto a contratação de terceiros para lhe prestarem a utilidade de extinção de incêndios, como igualmente permite o próprio exercício privado dessa atividade por empresários ou sociedades empresárias. Nestas circunstâncias, é impossível falar-se em serviço compulsório e, por via reflexa, em legitimidade para imposição da taxa. Consequentemente, também por esse motivo, o tributo não pode subsistir.
3. Conclusão.
Em razão de tudo isso, é possível afirmar que o ordenamento jurídico nacional desautoriza a cobrança de taxa pela utilização potencial do serviço de extinção de incêndios, porque: i) não é serviço público específico e divisível, pois integra as atividades de segurança pública, no âmbito da defesa civil, prestado indistintamente à população, e; ii) tampouco é compulsória, na medida em que a legislação permite obter-se a prestação por outros meios, inclusive pela contratação de bombeiros civis, nos termos da Lei nº 11.901/2009, deslegitimando a instituição de tributo em razão de serviço potencial.