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Ensaio sobre a eutanásia, distanásia e ortotanásia:

a morte como condição de vida

21/05/2014 às 14:15
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Todo ser humano tem direito à vida, mas não uma vida qualquer, uma vida que seja digna, ou seja, que abranja os aspectos de humanização das condições humanas.

Resumo: O presente ensaio tem por escopo abordar, de forma simplificada, a questão da morte, saúde e o Princípio da Dignidade Humana, relacionados entre si na perspectiva da Eutanásia, Distanásia e Ortotanásia. O propósito é apontar a morte como fase da vida e possíveis motivos que fazem a Distanásia ser tão utilizada atualmente por associar à ciência [medicina] um papel de infalibilidade. Buscar-se-á mostrar que a vida não seria um direito por si só [absoluto], ou seja, como um fim em si mesma, mas que, para ser digna, deve ser amparada por outras circunstâncias que tornem o ser alguém humano. Para tanto leva-se em consideração o paradigma condição humana de Hannah Arendt, para expor que digna seria a vida que atendesse a tais condições, e que, como outras, a morte também é uma delas.


Para que se fale, ou ao menos, tente falar sobre eutanásia, distanásia e ortotanásia é preciso considerar fatores sobre vida, vida humana e dignidade humana. Estar vivo e ser humano nem sempre são considerados mesmo lado da moeda, para muitos o simples fato de um ser estar vivo e ter características biológicas da espécie humana não o torna humano, isso porque há a consideração de que, para ser humano é preciso ser, antes, humanizado, tornando assim, a questão biossocial.

Desde Aristóteles, com a visão do animal político, até os pensadores contemporâneos, tal concepção de homem com um conceito não em si puramente, mas construído a partir do outro é algo que prepondera nas ciências sociais. Assim, o homem é construído socialmente através de condições, de acordo com Hannah Arendt, que possibilitam o desenvolvimento de características inerentes ao contexto sócio-humano em que o mesmo habita.

Tal ideia é o que será usado para basilar o princípio da “dignidade da pessoa humana”, segundo o qual a existência do homem deve ser digna, não bastando estar vivo. A vida torna-se, pois, não um direito com fim em si mesmo, mas com fim na dignidade.

Assim, todo ser humano tem direito à vida, mas não uma vida qualquer, uma vida que seja digna, ou seja, que abranja os aspectos de humanização das condições humanas. Uma questão importante acerca de tais condições é a morte, pois a mesma também é uma condição ou uma fase da vida, sendo algo inerente à própria vida, com o compreender da morte e, morte (assim como a vida deve ser) digna fala-se em um direito de morte.

A eutanásia é encarada como a abreviação da morte, com finalidade humanística de interromper o sofrimento da vítima e da família. O tratamento jurídico da mesma, atualmente no ordenamento brasileiro, é de criminalização, tipificada na parte do Código Penal que trata do crime de homicídio, estando enquadrada no homicídio privilegiado por relevante valor moral, também sendo chamada, segundo o professor Bitencourt, homicídio piedoso. O anteprojeto do “novo código penal” trouxe a eutanásia como crime autônomo, sendo previsto da seguinte forma:

“matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave.”

“Pena – prisão de dois a quatro anos”

Ou seja, a eutanásia é criminalizada e tende a prosseguir assim. Essa situação é motivada por muitas questões, tanto sociais, quanto jurídicas. Socialmente há uma grande influencia religiosa de não interferência na vida humana e também um certo tradicionalismo. Juridicamente há a influência de princípios como de supremacia de direitos, no caso, o da vida (que seria direito absoluto) e indisponibilidade da vida como direito da personalidade. Tais princípios, porém, são questionados da forma como são aplicados ao caso.

Com relação à mudança prevista na situação jurídica da eutanásia, não se percebe avanço, a não ser com sentido simbólico de “soar melhor” ser condenado não mais por homicídio, mas agora por eutanásia. Isso porque a esfera penal sai, mais uma vez, da ultima ratio e entra na esfera da vida privada, interferindo, nesse caso, inclusive na autonomia da vontade, tanto da vítima, quanto de familiares.

Se normalmente crime é associado à violência, nesse caso há o inverso. A violência que há na eutanásia consiste justamente na situação de sofrimento a qual a vítima é submetida, abreviar a morte de uma vida condenada à morte, que sobrevive pelo sofrimento, é uma prática humanista. Isso porque a vida não é o bem supremo, não possui fim em si mesma, como se viver bastasse e pronto, mas deve ser agregada por outros valores que a tornem digna e humana, questão exemplificada pela “a luta pelo direito” 1 dos indivíduos que, ao vêem seus direitos fundamentais suprimidos, arriscam a própria vida em nome dos mesmos, como ocorre nos tempos de Revoluções.

O argumento de que a vida é absoluta, e que sem ela não advém nenhum outro direito, é um silogismo, normalmente empregado para defender práticas contrárias ao aborto, eutanásia, e outros crimes que interferem na vida. Aceitar, porém, que sem determinados direitos não há vida humana (em sentido profundo e filosófico) aparece como um desafio de compreensão, mas como algo determinante para se compreender o porquê estar vivo não basta, pois se bastasse cessariam as lutas. Relacionando-se à morte, o sofrimento prolongado ao doente sem perspectivas de continuidade de vida, por meios artificiais e o empecilho de se retardar esse sofrimento, é não menos que tortura, visto que, por motivos naturais, as condições e direitos humanos fundamentais são impossíveis de serem satisfeitos. A situação fica mais clara ao se tratar da distanásia.

Em admirável mundo novo, romance distópico do sociólogo Huxley, vê-se a tentativa, pela ciência, de tornar todos os seres escolhidos geneticamente com padrões de desenvolvimento que os tornassem “super-homens”, os personagens faziam uso de uma droga (soma) que os impediam de envelhecer, ficar doentes, e morrer de forma “morrida”, era o ápice que a ciência poderia chegar. Tal exemplo não é apenas uma visão pessimista do futuro, mas também um espelho da visão e tentativa da sociedade atual em cientifizar as práticas de tratamento com relação à vida.

Após o positivismo, em que a ciência torna-se a “mãe de todos” ou, ao menos, a centralização de todo conhecimento e prática intelectual, ocorre uma espécie de troca de Divino, pois o lugar que antes a religião ocupava, agora é ocupado pela ciência. Isso porque há uma relação de fé na ciência também, afinal, se a ciência comprova o que está certo, então o que comprova que a ciência está certa? De forma que acreditar nela é uma questão de fé também, baseada no próprio conceito bíblico presente em Hebreus, como convicção nas coisas que não se pode ver. Alan Chalmers, professor físico, demonstra isso ao escrever “O que é ciência, afinal?”, concluindo que nem ao menos há uma definição para tal, ao mesmo tempo em que há diversas teorias para explicar qual seria a verdadeira ciência, não se pode alcançar um significado satisfatório, pois cada uma das teorias possuem seus problemas e falhas.

Isso explica um pouco do porque da distanásia ser muito praticada e, inclusive, defendida por tantos. A distanásia é o contrário de ortotanásia, é a protelação, ao máximo, da vida de paciente em estado terminal, por diversas técnicas, sem benefícios para ele. Na distanásia não há outra finalidade a não ser a de mantê-lo vivo pelo maior tempo possível. Considera-se que a distanásia ocorre quando o paciente já não possui expectativas de vida, é o que ocorre, por exemplo, no estado vegetativo, em que muitas vezes nem há a consciência social presente. Para a doutrinadora Maria Helena Diniz, não se trata de prolongar a vida, mas sim o processo de morte.

De fato, a fé construída na ciência faz o individuo coletivizado, ou seja, o ser como parte de um contexto social, crer que ela é capaz de tudo, de forma que, eventos naturais passam a não aceitos e até insuportáveis. A compreensão de que a ciência tecnológica não é capaz de tudo, e que as pessoas ainda morrem (pois morrer faz parte de viver) ainda assusta e inquieta, sendo uma ideia nem sempre bem aceita. O problema também seria a interferência que aceitar tal fato geraria na fé construída, pois se veria uma espécie de falha no sistema. Sendo assim, a postura de muitos é por manter, ao máximo de tempo possível viva a pessoa que está próxima da morte. Aparentemente, torna-se um sonho o “viver para sempre”, a imortalidade, infinitude tão temida entre os gregos.

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Outro problema que subsidia a distanásia é a visão acerca dos profissionais da saúde e, por muitas vezes, orgulho do mesmo, que se vê treinado para “salvar vidas”. O salvador de vidas que perde uma, deixa de ser o herói, mesmo quando tal vida estava fadada ao fim. Neste sentido, o pensamento de tais profissionais é um empecilho para o término de dor, pois se vê na morte o insucesso do profissional da saúde, bem como da ciência, uma espécie de falha, e não mais um processo e fato natural e social, apesar do disposto nos princípios fundamentais do “código de ética médico”, com passagem aqui transcrita:

“XXII – nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.”

Assim, percebe-se uma preocupação da própria ética da profissão em evitar que a vida seja mantida sem o próprio fim de viver e ser vivida. Isso porque a medicina e qualquer outra ciência da saúde não podem ter o fim genérico de salvar vidas ou de ser aplicada indiscrimidamente, sem que se analisem as circunstancias fáticas às quais serão aplicadas ou não. O resultado é uma vida biologicamente considerada viva, mas morta social, sentimental, psicologicamente, e em diversos outros sentidos.

O contrário desses dois conceitos trabalhados – eutanásia e distanásia – é a ortotanásia. Esta sim é a “morte digna”, sem nenhum tipo de influência em abreviar ou retardar, apenas podendo contar com auxílio em acompanhamento profissional para que seja o menos sofrível o possível. Aparecendo como a morte ideal, ou o processo de ideal.

Em relação ao direito a morrer dignamente, ou direito de morte digna, ou seja, uma morte não prolongada e sofrida, há o “Princípio das Diretrizes antecipadas”, defendido por Hans Kunk, filósofo e teólogo, segundo o mesmo, o ser deve ter a escolha de escolher (decidir) antecipadamente que tipo de tratamento deseja ter no caso de um dia estar submetido à situação de “quase morte” ou proximidade da mesma, como em doenças terminais, estado vegetativo, entre outros. O direito de morte traz à tona o conflito de interesses, pois mexe com questões sociais, religiosas e científicas. Entende-se, porém, que devem ser ponderados os direitos de vida com os de liberdade e capacidade de decidir sobre a morte com dignidade, incluindo aí o auxílio de profissionais na escolha.

A questão é complexa, pois o ser humano é o único que de diversas formas tem a capacidade de interferir no processo de morte, seja antecipando ou postergando. E esse fato é algo que tem que ficar claro, é extremamente duvidoso falar em morte natural em meio a tantas interferências que os avanços da indústria médica e farmacológica possuem na vida do ser humano do século XXI, boa parte de tais influências antecipam ou postergam em algum nível a morte, sendo algo utópico a “morte natural”, mesmo aquelas que não tiveram nenhuma ação direta de tais influências. Tal conscientização responde a questionamentos de origem ética de não-interferência humana em relação à vida (como já dito, algo que vem sendo praticado), fora o fato de que, manter por aparelhos uma vida inconsciente, que não desenvolve nenhuma outra atividade e que sem eles não sobreviveria, é uma forma extremamente violenta de interferência.

A morte é fase da vida, talvez o fim, talvez não. Mas como fase, deve ter a mesma característica exigida para as demais: ser digna e humana. Assim, conclui-se pela não tipificação dos meios que viabilizem isso, seja a eutanásia ou a ortotanásia, em situações nas quais o indivíduo ou, quando impossibilitado, a família manifeste a escolha. Ressalta-se a importância no acompanhamento profissional em tais casos e o parecer de uma junta capacitada, composta pelos devidos profissionais de saúde.


Bibliografia

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. São Paulo: Editora Forense Universitária, 2007.

BIONDO, Chaine Amorim; DA SILVA, Maria Júlia Paes; DAL SECCO, Lígia Maria. Distanásia, eutanásia e ortonásia: percepções dos enferemeiros de unidades de terapia intensiva e implicações na assistência. Rev Latino-americana de enfermagem. 2009. Disponível em <WWW.eerp.usp.br/rlae>.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Vol. 2. Editora Saraiva. 2012.

HUXLEY, Aldouls. Admirável Mundo Novo. Editores Associados – LISBOA.

JÚNIOR, Emanuel de Oliveira Costa. Ortotanásoa, distanásia e eutanásia na consciência médica.

MENDES, Filipe Pinheiro. A tipificação da eutanásia no projeto de Lei n. 236/12 do Senado Federal (novo código penal). 2012. Jusnavigandi.

VON ZUBEN, Newton Aquiles. Questões de Bioética: Morte e Direito de Morrer. Apresentado na Mesa Redonda “Dialogos”. 1998. Disponível em: <WWW.fae.unicamp.br/vonzuben/morte.html>


Nota

1 Ihering, Rudolf Von. A luta pelo direito

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Sobre a autora
Thaís Ferreira de Souza

Acadêmica pela Universidade Federal de Rondônia Técnica Judiciária no Tribunal de Justiça de Rondônia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Thaís Ferreira. Ensaio sobre a eutanásia, distanásia e ortotanásia:: a morte como condição de vida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3976, 21 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28696. Acesso em: 25 nov. 2024.

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