Limites e possibilidades de disposição do direito à privacidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro atual

25/05/2014 às 22:38
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O presente artigo busca discutir a conformação atual dos direitos de personalidade e a suficiência dos limites estabelecidos no código civil brasileiro para a efetiva tutela dos direitos de personalidade, com ênfase no direito à privacidade

1 A CONSTRUÇÃO DA TEORIA DA TUTELA GERAL DA PERSONALIDADE

A ideia de pessoa e de personalidade é fundamental para a compreensão do fenômeno jurídico na medida em que o direito é concebido tendo como destinatários os seres humanos em convivência.

Contudo as relações entre direito e personalidade humana só veio a despertar no cenário jurídico a partir das elaborações doutrinarias germânicas e francesas do século XIX.

Nesse sentido, alguns antecedentes históricos merecem ser trazidos a lume, ainda que sucintamente, no intuito de contextualizar a temática na sua trajetória evolutiva.

1.1 A proteção da pessoa na antiguidade

 

A construção da teoria dos direitos da personalidade é recente, embora se verifique na antiguidade manifestações isoladas da proteção da personalidade individual, especificamente com a hybris gega  e na iniura romana.

Cantali (2009, p.28) observa que a hybris grega

(...) tratava-se de uma ação punitiva de caráter penal que vedava qualquer ato excessivo cometido por um cidadão contra o outro, investidas ofensivas ou maus tratos e ainda rejeição contra qualquer situação que caracterizasse alguma forma de injustiça.

Nesse período, a maior contribuição para a construção de uma teoria dos direitos da personalidade foi da filosofia grega, que, com Sócrates, sustentou que a lei e a justiça decorrem da natureza do homem e emanam da razão.

 Esta compreensão de que o homem é destinatário primeiro e final da ordem jurídica deu novo sentido à personalidade e seus inerentes direitos.

Contudo, é no período clássico que parte da doutrina assenta o desenvolvimento da teoria jurídica da personalidade, uma vez que, como pontua Pereira (2005, p. 01).

“através da actio iniuriarum protegia-se as pessoas contra qualquer atitude injuriosa, abrangendo qualquer atentado à pessoa física ou moral do cidadão. Nesse passo, fundamental a figura do pretor, vez que tinha total liberdade para julgar a extensão da injúria, graduando, assim, uma sanção em pecúnia”.

Bittar (2008, p.18) adverte que embora existisse tal proteção jurídica essa tutela se dava em manifestações isoladas.

Portanto, a hybris grega e a iniura romana constituíram o embrião do direito geral da personalidade, assumindo uma feição de cláusula geral protetora da personalidade do ser humano. No entanto, se tratava de uma proteção totalmente diversa da atual haja vista o contexto histórico-social em que sedimentadas e da forma fragmentária e isolada com que se dava essa tutela.

Nestes termos, pontua Cantali (2009, p.32) que

através de uma análise perfunctória do contexto social e valorativo da antiguidade, tendo se em conta as diferenças dos grupos sociais, o próprio termo “dignidade da pessoa humana” dizia respeito, em regra, a posição ocupada pelo indivíduo e seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade. A “personalidade” em Roma apenas era atribuída aos cidadãos.

1.2 O medievo e a proteção da pessoa

 

O pensamento cristão, ao difundir as idéias de fraternidade universal e igualdade de direitos e inviolabilidade da pessoa, contribuiu para a noção de homem como sujeito portador de valores.

São Tomás de Aquino afirmava que “a noção de dignidade encontra fundamento na circunstância de que o ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus, mas também radica na capacidade de autodeterminação inerente à natureza humana” (Samaniego, 2000, p.01). Foi dele a criação da expressão dignidade humana no sentido em que hoje é empregada.

Beltrão (2005, p.50) partindo de uma análise etiológica afirma que

O termo dignidade, do latim, dignitas, atis, designa tudo aquilo que merece respeito, consideração, mérito ou estima. Apesar da língua portuguesa permitir o uso tanto do substantivo dignidade quanto do adjetivo digno para falar das coisas ( quando dizemos, por exemplo, que uma moradia é digna) a dignidade é acima de tudo uma categoria moral que se relaciona com a própria representação que fazemos  da condição humana, ou seja, ela é a qualidade ou valor que atribuímos aos seres humanos em função da posição que eles ocupam na escala dos seres.

 

 

Embora o pensamento medieval tenha lançado as sementes de um conceito moderno de pessoa humana baseado na dignidade e na valorização do individuo como pessoa e que o fim do direito estava radicado no homem, e não no Estado, nele ainda não se conferiu relevo aos direitos da pessoa.

  1.  A teoria do ius in se ipsum na renascença

 

O conceito moderno de pessoa humana, inaugurado pelo pensamento medieval, baseado na dignidade e na valorização do individuo como pessoa, não teve o condão de conferir necessária proteção aos direitos da pessoa.

Essa situação reverteu-se com a contribuição do movimento humanista que defendia a personalidade humana como um valor próprio, inato, expresso justamente na dignidade do ser humano, que nasce na qualidade de valor natural, inalienável e incondicionado, com cerne da personalidade do homem.

Capelo de Souza (1995, p.62) a respeito leciona que

o ius in se ipsum teve defensores no século XVII, através do qual o homem teria o direito de fazer de si o que melhor lhe conviesse, ressalvadas apenas as proibições expressas em lei, como suicídio, automutilação e sujeição voluntária à tortura.

Essas premissas conduziram os juristas da época à formulação do direito geral da personalidade como um ius in se ipsum - a teoria do direito sobre si mesmo.

De relevo, o pensamento da Escola de Direito Natural, ao afirmar que a existência de direitos que nascem com o homem, estando assim indissoluvelmente ligados à pessoa e, portanto, preexistentes ao seu reconhecimento pelo Estado.

A teoria dos direitos inatos, atrelada a um sentimento de reivindicações políticas, transmudou a teoria dos direitos inatos em matriz ideológica político-revolucionária que culminou com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão pela Assembléia Constituinte Francesa em 1789, que institui o Estado Liberal com base no individualismo.

Essa doutrina “serviu de inspiração à Revolução Francesa, contribuindo, para a conformação do constitucionalismo moderno e do Estado de direito, fazendo com que os direitos naturais fossem incorporados em diversas constituições, como direitos fundamentais individuais” (Cantali, 2008, p.36).

1.4 A proposta da modernidade

 

Com a ascensão da burguesia como classe dominante no campo econômico e também politico, ainda nos séc. XVII e XVIII, torna-se evidente a separação entre interesses econômico-privados e interesses politico-públicos, o que contribuiu para acirrar a dicotomia entre as duas esferas.

No campo jurídico, surge um direito jusracionalista e iluminista, culminando com a ampla sistematização do Direito privado inaugurado pelo Código de Napoleão, em 1804, seguindo-se, quase cem anos mais tarde pelo Código Civil alemão, BGB. Tratava-se pois, da Era das Codificações.

Facchini Neto (2003, p.19) traz uma síntese dessa era ao pontuar que

os códigos pretendiam ser completos, regulando aprioristicamente todas as relações em sociedade, sem que houvesse lacunas; claros, cujas disposições seriam facilmente interpretáveis e jamais ambíguas ou polissêmicas; bem como coerentes, ou seja, sem contradições, sem antinomias.

 

 

O código napoleônico atendia aos interesses burgueses, pois, com os fundamentos do liberalismo econômico e a distinção clara entre esfera pública e privada aniquilar-se-ia paulatinamente os privilégios nobiliárquicos. Nesse passo, um dos postulados fundamentais do estado de Direito Liberal era a concepção abstrata de homem, alheia ao meio social e considerado como sujeito de direito.

Dutra (2008, p.02) diz que “a igualdade formal, calcada na ideia abstrata de pessoa, desprezando reais desigualdades econômicas e sociais, baseava-se nos pressupostos de autonomia de vontade e de iniciativa privada”.

Contudo, essas concepções revelam prevalência de valores relativos à apropriação de bens do que propriamente a valores existenciais, o que impossibilitou a proteção do ser simplesmente por que dotado de dignidade, o respeito à igualdade material e à justiça distributiva.

Bittar (2008, p.21) esclarece que nesse período

Os direitos de personalidade ainda não se encontravam suficientemente estruturados para que se interessasse o legislador em conferir proteção, no âmbito privado, aos atributos da pessoa.

 

Concebeu-se, assim, uma nova ordem social regida através de uma reordenação sistemática e inovadora do Direito, ditado pelo pensamento racional.

 Contudo, Cantali (2009, p.41) oportunamente adverte que

(...) essa nova ordem acabou por gerar o fechamento do Direito em categorias estanques que, ao lado do voluntarismo, culminou com a absolutização excessiva da razão individual, desconfigurando o  ius in se ipsum como um mero poder de vontade individual, reivindicado apenas em face do Estado e não em relação aos demais indivíduos, tornando-se assim, uma inócua categoria lógico-formal.

Nesse contexto surgem os posicionamentos da Escola Histórica e posteriormente o Positivismo Jurídico acerca do direito geral da personalidade que se delineava a partir do entendimento do ius in se ipsum. Foi nesse momento que iniciaram as hesitações da doutrina acerca da existência dos direitos da personalidade.

A Escola Histórica do Direito concebeu o direito geral de personalidade como o direito que alguém possui sobre si mesmo e que teria por objeto a própria pessoa.

Nessa senda, logo surgiram as críticas a essa premissa visto que, para alguns, se se identifica personalidade com a titularidade de direitos e obrigações ela não poderia ser considerada como objeto deles, posto encerrar aí uma contradição lógica.

“Outros advogavam que a admissão dos direitos de personalidade baseados na concepção de que qualquer poderia dispor livremente sobre si levaria a legitimação do suicídio e da automutilação”. (Nicolodi, 2003, p.01).

Havia ainda aqueles que sustentavam que a vida, a saúde, a honra, etc., não se enquadravam na categoria do ter, mas do ser, o que os tornaria incompatíveis com a noção de direito subjetivo, predisposto à tutela das relações patrimoniais.

Em suma, emergia uma teoria negativista, uma corrente doutrinária que negava a categoria de direitos da personalidade e não reconhecia aos eventuais atributos, arrolados na lei, a natureza de direitos subjetivos.

Todavia, o problema da teoria do direito sobre o próprio corpo resultou na identificação do sujeito com o objeto dos direitos da personalidade. De Cupis (1950), citado por Cantali (2009, p.43) assim preleciona sobre o tema:

O objeto dos direitos da personalidade encontra-se em um nexo estreitíssimo com a pessoa, a ponto de poder dizer-se orgânico; nessa medida, não é exterior ao sujeito como outros bens são possíveis objetos de direito, porém, esta não-exterioridade não significa identidade, já que não se pode confundir o modo de ser da pessoa com a própria pessoa.(DE CUPIS, ....P.23).

Nesta perspectiva, a ampliação da noção de direitos subjetivos para atender a esse espaço desregulamentado no âmbito do Estado de Direito era necessária. Isso acabou fomentando a formulação do conceito de direito personalíssimo de caráter extrapatrimonial, passando-se a reconhecer o vínculo entre os indivíduos e o prolongamento de sua personalidade, corpóreos ou incorpóreos, juridicamente definidos como bens da personalidade.

De outra parte, o positivismo jurídico concebia o Estado como a única fonte criadora do Direito. Esta concepção fragmentava o direito geral da personalidade em diversos direitos de personalidade autônomos, tipificados em lei, negando a existência de um direito geral da personalidade.

Bem oportuna a arguição de Szaniawski (2005, p. 44), ao comentar a acirrada dicotomia entre as searas de direito público e privado e as diferenças de concepção entre a escolas Histórica e Positivista, nos termos abaixo:

 

(...) de um lado a Escola Histórica de Direito, negando a existência de uma categoria jurídica destinada à proteção da personalidade da pessoa, qualificada como direito subjetivo e, de outra parte, o positivismo jurídico, que mediante expurgo de tudo o que dizia respeito aos juízos de valor e de noções de metafisica da ciência jurídica e reconhecendo como fonte única do direito aquela dada pelo Estado, contribuíram decisivamente para a estagnação da evolução da tutela da personalidade humana e do declínio do direito geral da personalidade. A nova ordem constituída e a sistematização fechada do direito, conduziu o direito geral de personalidade a passar por um estado de dormência, até meados do séc. XX, havendo, neste curto período, a proteção do homem contra atentados do poder público, através da atuação dos direitos fundamentais, contidos nas declarações internacionais, e positivados nas constituições. Sob o aspecto privado, a tutela se dava a partir de alguns poucos direitos de personalidade fracionados e tipificados em lei.

 

Contrárias à essas concepções, ainda durante o sec. XIX começou a tomar corpo teses que defendiam a existência de um único e genérico direito de personalidade, principalmente na Alemanha, que se fundamentavam no fato de que cada homem possui uma única personalidade e, portanto, somente existe um único e geral direito de personalidade (Cantali, 2009, p.46).

Esse corpo teórico alemão, contudo, experimentou retrocesso com a entrada em vigor do BGB, código civil alemão de 1900 que, influenciado pela Escola Histórica, não consagrou o direito geral de personalidade.

O BGB permitiu a tutela da personalidade apenas enquanto fonte de obrigação de indenizar em caso de lesão a certos bens e interesses jurídicos de personalidade o que, “além de não solucionar o problema da insuficiência legislativa, deu um cunho estranhamente patrimonial à esses bens” (Cantali, 2009, p.47).

1.5 A emergência do direito geral da personalidade no século XX

 

O primeiro passo para uma mudança efetiva de perspectiva veio com a Promulgação da Constituição de Weimar em 1919, que colocou-se no centro do sistema jurídico e trouxe em seu corpo previsão de institutos característicos da seara privada.

No entanto, Cantali (2009, p.50) defende que a construção da teoria do  direito de personalidade tomou corpo com o debate

(...)da necessária esfera de proteção pessoal frente à interferência na vida privada dos cidadãos e a necessidade de afirmar no meio social, depois das atrocidades cometidas contra a pessoa humana “a partir do segundo pós-guerra, com o desenvolvimento tecnológico e a opressão pela mídia, a pressão do consumismo, a utilização da informática, o acirramento da competitividade e a agressividade nas relações intersubjetivas.

A Constituição Alemã de 1919, ao se colocar no vértice normativo inclusive para o Direito privado, iniciou o processo de ofuscamento da summa diviso entre o espaço público e o privado, passando o Poder Público a assumir um caráter intervencionista e regulamentador das relações privadas, o que contribuiu para publicizar o privado.

Doneda (2006, p.77) em síntese conclusiva afirma que

(...) a relação entre direito civil e constituição a partir desse momento passa a ser reavaliada. Não somente em torno de uma relação entre código civil e Constituição, porém a partir da conscientização da unidade do ordenamento jurídico, que passa por um processo de reestruturação em torno de uma tábua axiológica na qual desponta como valor fundamental a dignidade humana.

 

 

As constituições, no curso do séc. XX, seguindo a linha da Constituição de Weimar, passaram a trazer no seu corpo institutos de direito privado, provocando um deslocamento normativo no sentido da unidade jurídica, calcado no principio da dignidade humana e nos direitos fundamentais, em respeito à hierarquia das fontes normativas.

A valorização da pessoa humana como ser dotado de dignidade recoloca o individuo como primeiro e principal destinatário da ordem jurídica. Assim, em sendo o homem e os valores que traz em si mesmo a ultima ratio do ordenamento, reconhece-se a inexorável repersonalização do Direito Privado, abandonando-se a ideia de simples protetor dos interesses patrimoniais para tutelar o patrimônio apenas como um suporte ao livre desenvolvimento da pessoa.

O fenômeno da constitucionalização do Direito Privado, bem como seu processo de repersonalização e despatrimonialização, orientam, inexoravelmente, o estudo do direito de personalidade, que nada mais são do que direitos fundamentais, consagrados nas constituições. Pode-se, portanto, dizer que os direitos de personalidade representam a expressão máxima da repersonalização do direito, uma vez que trata da tutela dos próprios atributos inerentes a condição humana.

Oliveira (2002, p. 02) ao abordar o inicio da sistematização no direito civil, adverte:

 

(..) Já no âmbito do direito civil, a primeira disciplina sistemática acerca dos direitos de personalidade, ainda que na esteira do fracionamento e tipificação desses direitos, se deu no código italiano de 1942, que trouxe no seu texto a tutela do nome, do sobrenome, de disposição do corpo e da imagem.

Os civilistas franceses, ainda na primeira década do séc. XX sustentavam a inexistência dos direitos de personalidade, sob o argumento de que estes não se enquadravam na definição clássica de direitos subjetivos, e tratava apenas de situações jurídicas nas quais se faz presente a responsabilidade civil do autor do dano.

Gediel (1997, p.34) adianta que “as novas situações fáticas fizeram com que, a partir 1951 na França, começasse a se discutir com mais veemência a questão dos direitos de personalidade, através de uma proposta de reforma do Código, que acabou sendo efetivada, como o que inseriu-se uma cláusula geral do direito de personalidade.

A previsão constante do artigo 70º, nº 1, do Código Civil Português de 1966[1] exprime uma cláusula geral de proteção da personalidade, cuja tutela dá-se tanto de forma preventiva como ressarcitória em caso de lesão. Além disso, a Constituição Portuguesa de 1976 trouxe no art. 1º a garantia da dignidade da pessoa humana como valor social básico e regulamentar da proteção e incidência direta dos direitos fundamentais, e ainda, no ar. 26,  nº 1, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, seguindo a linha da Constituição de Weimar.

No ensinamento de Szaniawski (2005, p.62):

(...) constata-se, assim, que foi tendência do final do século XX, e torna-se realidade no século XXI, a firmação do direito geral de personalidade, mediante a inserção na Constituição e nas normas infraconstitucionais, da cláusula geral de tutela da personalidade humana, uma vez que a estreita visão privatística dos direitos de personalidade, que não estejam vinculados à categoria ampla dos direitos do homem, se mostra insuficiente para a tutela da personalidade. A ordem jurídica deve ser entendida como um todo, onde, dentro de uma hierarquia de valores, tenha um local primacial a noção de que o homem é pessoa dotada de inalienável e inviolável dignidade. Somente a leitura da norma civil à luz da Constituição e de seus princípios superiores é que revelará, à noção de direito de personalidade, a sua verdadeira dimensão.

 

 

É inegável, portanto, a emergência do direito geral de personalidade no século XX, que é extraído diretamente das Constituições, seja expressamente, seja através do valor da dignidade humana, bem como em nível ordinário sempre informado pelos valores e princípios constitucionais.

 

 

 

  1.  A tutela geral da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro

 

A literatura brasileira destinada a analisar os direitos de personalidade não enfrenta com profundidade as temáticas tormentosas a seu respeito. Afirmam apenas a existência de direitos subjetivos da personalidade, mas os analisam levando em consideração os fragmentados direitos de personalidade tipificados e positivados, o que não mais se sustentam após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual elegeu a dignidade da pessoa humana como fundamento da República, dando a todas as situações jurídicas subjetivas um papel primário.

Destaca-se o vanguardismo paranaense que em pleno regime de exceção defendia uma noção personalista do Direito baseado na categoria dos Direitos do Homem, ou seja, de que a noção de dignidade da pessoa humana decorria de sua própria natureza, sendo dados anterior e superior à ordem legislada.

O novo marco jurídico-constitucional, a Constituição Federal de 1988, trouxe em seu corpo diversos princípios através dos quais se instaurou uma nova ordem jurídica que impôs um repensar de todo o sistema, na medida em que o ser humano, diante da eleição da dignidade da pessoa humana como fundamento do próprio Estado Democrático de Direito, passou a ocupar o centro referencial do ordenamento.

A constitucionalização da proteção da personalidade, no entender de Cantali (2009, p.85) se deve ao fato de os Códigos de feição liberal não se ocuparem desta temática, eis que seu enfoque principal era a proteção dos interesses patrimoniais da pessoa.

Desde o preâmbulo e os artigos 1° e 2º da Constituição da República constata-se o delineamento de um Estado garantidor dos direitos individuais e sociais cujos principais fundamentos são a dignidade humana e os valores sociais, objetivando, ainda, uma sociedade pautada na liberdade, na justiça, na solidariedade e na igualdade formal e material para, assim promover o bem de todos, já que o fim último é a tutela da pessoa humana em todas as suas dimensões.

A construção científica acerca da dignidade da pessoa humana é de tal sofisticação que se fala hoje nas suas diferentes dimensões. Na lição de Sarlet  (2005, p.18)

Há uma dimensão ontológica que, seguindo a doutrina clássica, entende a dignidade como algo inerente a qualquer pessoa, ligada a condição humana. Há uma dimensão comunitária ou social, que leva em consideração a dignidade de cada uma e de todas as pessoas, já que todas as pessoas são iguais em dignidade e direitos. A dimensão histórico-cultural, por sua vez, aduz que um conceito vago e aberto como o de dignidade da pessoa humana está em permanente processo de construção e desenvolvimento, inclusive para atender às necessidades sociais. E por fim, há uma dupla dimensão: a negativa e a prestacional, significando que a dignidade se manifesta simultaneamente como a expressão da autonomia da pessoa, ou seja, o direito de autodeterminação que cada pessoa tem para tomar suas decisões que digam com a sua própria existência, bem como a necessidade de o Estado prestar assistência, protegendo-a.

 

 

Essa multiplicidade de dimensões implica em dificuldade de se estabelecer uma conceituação jurídica de dignidade, donde Sarlet (2005, p. 22) propõe um possível conceito ao aduzir que

 

(...) a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venha lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover a sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

 

 

Nesse sentido, o principio da dignidade da pessoa humana é considerado um principio matriz, do qual irradiam todos os direitos fundamentais do ser humano, constituindo-se no mais importante fundamento de todo o sistema constitucional brasileiro, primeiro fundamento e estrutura de proteção dos direitos individuais.

No que reporta a forma de proteção da personalidade adotada na Constituição, Szaniawski (2005, p.137) afirma que ordenamento jurídico brasileiro adotou o sistema misto:

reconhece um direito geral de personalidade já no primeiro artigo, bem como tutela no caput e em muitos incisos do quinto artigo, rol de direitos individuais fundamentais, diversos direitos de personalidade como vida, liberdade, igualdade, integridade psicofísica, privacidade intimidade, honra, imagem, dentre outros.

 

Também esse é o entendimento de Tepedino (2004, p.50), ao concluir que

 

 

(...) a prioridade conferida à cidadania e à dignidade da pessoa humana (artigo 1º, I e III, CF/88) como fundamento da República, aliados à garantia da igualdade substancial (artigo 3º, III, CF/88) e formal (artigo 5º, CF/88), bem como a garantia residual consagrada no § 2º do artigo 5º da CF/88, no sentido da não exclusão das garantias e direitos que mesmo não expressos decorram dos princípios do texto maior, além de condicionarem o interprete e o legislador ordinário, modelando todo o tecido normativo infraconstitucional com a tábua axiológica eleita pelo constituinte, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da personalidade humana, tomada como valor máximo do ordenamento.

Passando à análise dos direito de personalidade no âmbito privado, tem-se que o reconhecimento no Direito Civil foi bem posterior à proteção jurídica dispensada aos direitos fundamentais. O código civil de 1916 tutelava alguns direitos de personalidade de forma assistemática e fragmentária não havendo nenhuma regra da qual se pudesse extrair uma fonte básica da proteção desses direitos.

 O código civil de 2002 trouxe um capítulo destinado à proteção dos direitos de personalidade, o que representou uma inovação bastante importante, ainda que o projeto datasse de 1975 e vindo a entrar em vigor só anos após a Constituição de 1988. Esse fato fez com que a inserção do capítulo destinado a tutelar os direitos de personalidade no Código Civil não fosse algo inovador diante do sistema constitucional.

No código civil de 2002, os artigos 11 a 21 destinam-se aos direitos de personalidade. O artigo 11 trata da natureza desses direitos, e o 12, da sua tutela. Os artigos 13 a 15 enunciam o direito à integridade psicofísica; os artigos 16 a 18 referem-se ao direito ao nome, e o 19, ao pseudônimo; o artigo 20 regula o direito à imagem e a honra; e por fim, o artigo 21, onde se consagra o direito à privacidade, à vida privada.

Desses, o artigo 12[2] é o mais festejado pela doutrina, muito embora sua existência não tenha alterado a tutela que já era concebida a estes direitos através dos preceitos constitucionais. Tal norma prevê a tutela preventiva dos direitos de personalidade, permitindo que cesse a ameaça de lesão, bem como albergando a tutela ressarcitória para os casos de ocorrência de dano. Nessa medida, certo é que essa norma foi concebida para ser a cláusula geral de proteção e promoção dos direitos de personalidade do código civil e assim é reconhecida pela doutrina civilística.

2 CONCEITO E ATRIBUTOS DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

 

A análise anterior sobre a existência de um direito geral de personalidade decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana e sua disciplina na legislação civil brasileira objetivaram demonstrar a construção da teoria e seu assento atual no ordenamento jurídico brasileiro. Todavia, parte da teoria dos direitos da personalidade ainda não foi objeto de esclarecimento, qual seja: conceituação e atributos intrínsecos, o que se passa a expor no presente capítulo.

2.1 O conceito de Direito da Personalidade

 

Os direitos e garantias fundamentais instituídos no art. 5º da Constituição Federal têm como fonte ética a dignidade da pessoa humana como forma de proteção e desenvolvimento da pessoa.

Não há valor que supere o valor da pessoa humana. É nesse sentimento de valor que se fundamenta o direito de personalidade como projeção da personalidade humana (Beltrão, 2005, p.23).

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Nesse sentido, Messineo (1950) citado por Beltrão (2005, p.24)  apresenta uma conceituação desses direitos ao afirmar que

(...) designam direitos privados fundamentais, os quais devem ser respeitados, os quais devem ser respeitados como conteúdo mínio para a existência da pessoa, impondo limites à atuação do Estado e demais particulares.(Messineo, apud Beltrão,2005, p.24).

 

Por ouro lado, defendendo uma posição naturalista, Bittar (2008, p.07) entende que os direitos de personalidade

Constituem direitos inatos, cabendo ao Estado apenas reconhecê-los e sancioná-los em um outro plano do direito positivo, dotando-o de proteção própria contra o arbítrio do poder público ou contra as incursões de particulares.

 

Tepedino (2004, p.24) oferecendo um conceito amplo, como reclama a mais moderna doutrina sobre os direitos de personalidade aduz que sob a denominação de direitos de personalidade estão “os direitos atinentes a tutela da pessoa humana, considerados essenciais à sua dignidade e integridade”.

Vê-se, portanto, que a nota comum à tentativa de conceituação desses direitos é o seu caráter de essencialidade à pessoa como forma de garantir o gozo e o respeito ao seu próprio ser, em todas as suas manifestações espirituais ou físicas.

2.2 Atributos intrínsecos

 

A temática das características dos direitos de personalidade é apresentada pela doutrina clássica de forma inquestionável, sem se dispor a enfrentar questões tormentosas que porventura exsurgem na divagação de tais temáticas.

De toda sorte, há a certeza de que, diante do fenômeno da publicização e constitucionalização do Direito Privado, a linha demarcatória entre direitos de personalidade e direitos fundamentais se torna cada vez mais tênue a ponto de se poder mesmo conceituá-los como direitos fundamentais de personalidade.

De outra parte, a ligação desses direitos aos direitos fundamentais torna-se imprescindível dada a insuficiência do Código Civil[3] para a construção da doutrina sobre os direitos de personalidade e explicação das mais variadas situações fáticas que hodiernamente se apresentam.

A doutrina dominante, sem maiores vacilos, qualifica os direitos de personalidade como direitos originários (ou ainda, inatos) vez que os seres humanos os adquirirem pelo simples fato de nascerem, sem necessidade de concurso de qualquer meio de aquisição ou condição posterior.

Cantali (2009, p.131) oportunamente destaca que o fato de alguns desses direitos que são adquiridos - “o direito moral do autor, o direito ao sigilo de correspondência e o direito ao nome”, não os descaracteriza, de per si, como direitos inerentes ao ser, vez que são adquiridos em decorrência do status pessoal.

A generalidade é outra característica dos direitos de personalidade que decorrem da personalidade ontológica, do fato de estar vivo.

Tamanha a importância desse atributo da personalidade que Bittar (2008, p. 6) chegar a afirmar que “a ausência de direitos da personalidade torna a pessoa irrealizável” e ainda que “sua essencialidade se mostra na medida em que tais direitos forma a medula da personalidade”.

 São ainda direitos vitalícios e necessários. São vitalícios porque acompanham o ser humano por todo o curso de sua existência, inclusive transcendendo a ideia de vida vez que a proteção se estende  ao momento anterior ao nascimento e reflete além da morte. “Necessários porque indispensáveis a plena afirmação do ser humano e desenvolvimento de sua personalidade em uma comunidade de pessoas” (Tartuce, 2005, p. 02).

Em sendo originários, necessários, essenciais e vitalícios, não podem ser destacados de seu titular. São direitos inerentes à própria pessoa e, portanto, inalienáveis (Tepedino, 2005, p.33). Os direitos de personalidade não podem ser vendidos nem doados por completo a outras pessoas e, no mesmo sentido, a contrario sensu, não podem ser adquiridos por outrem. Portanto, não há aquisição ou extinção de direitos da personalidade através de negócio jurídico, o que o retiraria por completo da esfera de seu titular.

Nesse sentido, opõem-se aos direitos subjetivos na sua definição liberal, os quais tinham como objetivo sempre bens patrimoniais, aferíveis economicamente. Os direitos de personalidade não têm como objeto um bem patrimonial, eis que seu objeto são os bens inerentes à subjetividade humana.

Inobstante o bem objeto não seja externo ao sujeito, pontua Cantali (2009, 133), não há mais espaço para a negação de que os direitos de personalidade caracterizam-se como direitos subjetivos, e não só como tal, mas em qualquer situação jurídica existencial.

Nesse passo, andou bem a doutrina vez que essa característica não impede que os direitos de personalidade produzam efeitos ou conseqüências patrimoniais, fazendo como que a ofensa ilícita a qualquer dos bens da personalidade é pressuposto de fato gerador da obrigação de indenizar.

Destaca-se que, diferentemente dos outros direitos subjetivos que sofrem a incidência da prescrição pela desídia do titular no exercício do direito em delimitado lapso temporal, os direitos de personalidade, por serem inerentes a pessoa, a pretensão que nasce com a lesão jamais convalesce.

Ademais, como adverte Bittar (2008, p.11) “não submetem a prescrição aquisitiva, muito menos a prescrição extintiva, uma vez que sua aquisição não resulta do curso do tempo e não se extingue pelo não uso”. Por fim, a prescrição se vincula às pretensões de natureza patrimonial, o que exclui os direitos extrapatrimoniais da personalidade dos seus efeitos.

Os direitos de personalidade têm natureza de direitos absolutos, no sentido de serem oponíveis contra todos, ou seja, possuem eficácia erga omnes, gerando em todos os demais integrantes da sociedade um dever geral de abstenção, uma obrigação negativa.

Esse dever jurídico abstencionista de observância a esses direitos impõem um dever do Estado, da comunidade e os demais particulares em respeitá-los, o que implica em prestações positivas que se revelam em um dever geral de auxílio, diante de outro dever: o dever de solidariedade social. Portanto, a natureza de direitos absolutos que recai sobre os direitos de personalidade impõem dever jurídico negativo e positivo, cujo intuito é tutelar os bens protegidos por esses direitos.

Conquanto tenham esse caráter absoluto não podem ser compreendidos como geradores de imposição ilimitada e em qualquer circunstância. Na perspectiva da relação do ser com os demais, o caráter absoluto dos direitos de personalidade se relativiza. Sarlet (2005,p.137) afirma, quando enfrenta a temática dos limites aos direitos fundamentais, a existência de entendimento pacificado de que, ao menos em princípio, não existe nenhum direito que seja absoluto, totalmente imune a qualquer tipo de restrição.

No entanto, essa possibilidade de restrição está também sujeita a um limite, no sentido de assegurar ao menos um núcleo essencial dos direitos fundamentais, coibindo, assim, abusos que possam levar a supressão desses direitos.

O limite dos direitos e limite dos limites, na lição de Cantali, (2009, p.137) “é a própria dignidade da pessoa humana, princípio em que os direitos fundamentais encontram pressuposto e fundamento”, ou seja, a barreira última contra a atividade restritiva dos direitos fundamentais. Nesse sentido, o caráter absoluto dos direitos de personalidade deve perpassar por essas constatações, na medida em que posicionamentos acríticos poderiam gerar graves distorções.

Sendo o direito dos outros a pedra angular que explica os limites imanentes dos direitos fundamentais, nem mesmo a dignidade humana, que figura como valor supremo do ordenamento jurídico, fica completamente imune, não possuindo uma absoluta intangibilidade, ainda que não se possa cogitar do seu sacrifício por completo.

Nesse passo a lição primorosa de Sarlet ao aduzir que “até mesmo o princípio da dignidade da pessoa humana acaba por sujeitar-se, em sendo contraposto á igual dignidade de terceiros, a uma necessária relativização”.

Contudo, esclarece Sarlet que, embora haja possibilidade de relativização ou restrição da dignidade pessoal,

 

(...) necessária se faz a preservação de um núcleo essencial que é efetivamente intangível, vedando-se, nesse sentido, qualquer conduta que importe coisificação ou instrumentalização do ser humano (Sarlet, 2004, p. 130).

 

Dessas considerações se percebe que, quando se afirmar o caráter absoluto dos direitos de personalidade, deve-se ter em mente a sua oponibilidade erga omnes, mas jamais entender esse caráter relacionado com o conteúdo dos direitos, o que é sempre relativizável. Não fosse assim, sequer se poderia cogitar a possibilidade de conduta geradora de dano a direito de personalidade.

2.3 Intransmissibilidade, irrenunciabilidade e indisponibilidade

A regra insculpida no artigo 11 do Código Civil brasileiro, que trata da natureza dos direitos de personalidade, dá conta de que estes seriam intransmissíveis, irrenunciáveis, alem de indisponíveis por limitação voluntária de seu exercício, salvo aquelas autorizadas por lei[4].

Essa interpretação literal e estrita do código deixa a entrever que os direitos de personalidade não seriam passíveis de qualquer forma de restrição. No entanto, interpretação semelhante destoa da essência dos direitos de personalidade, além de ter o agravante de poder mesmo inviabilizar a própria tutela. Daí a importância da releitura da legislação infraconstitucional através da ótica constitucional.

Pontes de Miranda (2000, p.07) no trato da questão explica que a intransmissibilidade

(...) resulta da infungibilidade mesma da pessoa e da irradiação de efeitos próprios, quais sejam, os direitos de personalidade. Estes não podem ser transmitidos para outro sujeito, já que a transmissão pressupõe que uma pessoa se ponha no lugar da outra e, se isso pudesse ocorrer, o direito não seria de personalidade.

 

 

Contudo, defender a absoluta intransmissibilidade desses direitos seria ao menos um dado tormentoso tendo em vista que muitos interesses relativos à personalidade podem continuar sendo tutelados mesmo após a morte de seu titular, a exemplo da disposição expressa na legislação civil de titularidade dos familiares para pleitear indenização por dano injusto ao falecido.

Nesse passo, explica Capelo de Souza, (2005, p.404) que

a morte gera uma mutação profunda no ciclo da personalidade, já que os direitos que são ligados à vida do titular inexoravelmente se extinguem. Todavia, pode haver sucessão ou aquisição derivada translativa mortis causa dos demais direitos da personalidade, como um regime diferenciado porque funcionalizado aos interesses pessoais do falecido como se vivo fosse, o que se dá através da legitimidade processual para exercer pretensões na sua defesa.

 

 

Assim, pode se falar em transmissibilidade dos direitos de personalidade em razão da morte de seu titular, permitindo que os sucessores, em nome próprio, promovam sua defesa contra ingerências de terceiros.

Em síntese perspicaz, Fachin (2003, p. 17) sustenta que, “embora sejam os direitos de personalidade essencialmente intransmissíveis, os seus efeitos patrimoniais são transmissíveis”. Isso é factível haja vista que, no plano prático, verifica na possibilidade de postulação, pelos sucessores, de reparação por danos morais quando a imagem ou a honra de pessoa falecida for violada. A honra e a imagem do falecida merecem ser garantidas mesmo que para além da vida do titular, o que somente será viável com a passagem desse direito a terceiro.

Infere-se, portanto que a transmissibilidade, em determinadas situações, é fundamental para a própria garantia de tutela dos direitos de personalidade e da dignidade da pessoa humana.

A irrenunciabilidade é a segunda característica dos direitos de personalidade mencionada no artigo 11 do Código Civil de 2002. Diz-se que em função da essencialidade dos direitos de personalidade, o titular não pode renunciá-los.

Nesse sentido é a lição de Pontes de Miranda (2000, p.08) quando afirma que (...) os direitos de personalidade são direitos irrenunciáveis; a razão de ser desta característica é a mesma da intransmissibilidade, ou seja, a ligação íntima desses direitos com a personalidade, com a pessoa e seu titular.

 

 

Seguindo essa linha de entendimento, Chaves (1994, p.113) fazendo a ligação entre intransmissibilidade e indisponibilidade acaba por concluir que não é possível renunciar a tais bens posto que

São inseparáveis de seu titular e dessa intransmissibilidade decorre a indisponibilidade que se revela na ausência de faculdade de disposição do particular e, em não sendo possível dispor destes direitos, também não é possível renunciar a eles, já que a renúncia exige a faculdade de dispositiva por parte do renunciante.

Em outra perspectiva, afirma-se que o titular pode, em determinadas circunstancias e com certa limitação, “renunciar ao exercício de um direito de personalidade, mas não pode renunciar ao direito em si” (Ascenção, 2006, p. 34).

Canotilho (2003, p.464), diante do processo de relativização, através da ideia de renúncia de direitos fundamentais, sustenta que

(...) os direitos fundamentais da personalidade são irrenunciáveis; todavia, há que se considerar aceitável, sob certas condições, a limitação voluntária do exercício de um direito no caso concreto que não compreenda a uma renuncia geral ao exercício, já que isso é inadmissível, preservando-se também o núcleo essencial do direito afetado, na medida em que a renuncia ao núcleo substancial do direito é constitucionalmente proibida.

 

Contrário a esse entendimento, Reis Novais sustenta a possibilidade de renuncia em ambas as situações e corrobora sua arguição citando como exemplo a “eutanásia consentida” que, para ele, representa o exemplo mais típico de renúncia ao direito a vida em sua totalidade (Novais, 2003, p.278).

Nesse passo, renunciar à titularidade de um direito fundamental, é renunciar total e irrevogavelmente á capacidade de exercício das faculdades e poderes decorrentes do direito. O importante é que o ato de renúncia, seja a titularidade ou apenas ao exercício do direito, seja total ou parcial, sendo temporária ou definitiva, será legítima ou não dependendo das circunstâncias fáticas que envolvem o fato concreto.

Portanto, afirma-se serem os direitos de personalidade essencialmente irrenunciáveis e indisponíveis, mas este último atributo pode ser relativizado em face dos atos de disposição no que toca à faculdade do exercício do direito.

No que toca à indisponibilidade, a doutrina conservadora caracteriza indiscriminada os direitos de personalidade como indisponíveis, já que a regra do artigo 11 do Código Civil proíbe renúncia e limitações voluntárias, salvo as autorizadas por lei. No entanto a que se enfrentar a possibilidade de disposição desses direitos vez que a própria lei os relativiza.[5]

Capelo de Souza (1995, p.404) quando analisa a questão, nomeia a característica como “indisponibilidade com limitações” ao sustentar que

 

(...) em princípio, não são reconhecidos aos titulares dos poderes jurídicos decorrentes da tutela geral da personalidade a faculdade de destruição ou abandono total, a renúncia, a faculdade de disposição do exercício em favor de outrem, a transmissão, nem mesmo a faculdade de obrigar-se perante outrem sobre o exercício de tais poderes, a disposição, já que, em regra, são direitos que recaem sobre bens que estão fora do comércio.

 

 

O titular, em regra, afirma Cantali (2009, p. 149), não pode se despir por completo dos seus direitos da personalidade através de atos de disposição, mas se a própria ordem legal concede uma abertura quando permite a limitação autorizada por lei, fica clara a possibilidade de relativização desta característica.

No mesmo sentido, Bittar (2008, p.12) admite um temperamento da característica da indisponibilidade dos direitos da personalidade diante de seu ingresso na circulação jurídica.

Tratando da possibilidade de disposição dos direitos da personalidade, o enunciado 4, aprovado na Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal, no período de 11 a 13 de setembro de 2002, ao se referir ao artigo 11 do Código Civil, ficou assim expresso: “o exercício dos direitos de personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral”.

Embora festejado, o enunciado traz a tona a discussão em torno da possibilidade de uma limitação permanente, mesmo que não expressamente autorizado por lei como ocorre, por exemplo, com a cirurgia de transgenitalização, a qual importa em extirpação de parte do corpo humano. Tal limitação é possível tendo em vista o próprio direito ao livre desenvolvimento da personalidade, haja vista sofrer o transexual de patologia denominada disforia de gênero e a cirurgia intenta justamente tal adequação[6].

Por fim, a disponibilidade deverá estar sempre atrelada ao ato voluntário, consciente e que respeite os limites de sociabilidade e ordem pública, e os limites dos limites que é o respeito ao núcleo mínimo da dignidade da pessoa humana.

3 LIMITES E POSSIBILIDADES DE DISPOSIÇÃO DA ESFERA DE PRIVACIDADE DA PESSOA.

Na parte anterior deste trabalho, se confrontou o texto do código civil que trata dos direitos de personalidade com a necessária possiblidade de disposição dos direitos de personalidade frente à realidade fática atual.

Nesta última parte, abordaremos a abrangência do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, bem como os contornos atuais do principio da autonomia privada, do direito à privacidade e, por fim, analisaremos a suficiência dos critérios postos pelo código civil brasileiro como limitadores de atos de disposição de direitos de personalidade.

3.1 O livre desenvolvimento da personalidade como direito fundamental

A autonomia e a liberdade, juntamente com a propriedade, formavam a base da estruturação de todo o pensamento civilístico clássico. Nesse sentido, Fachin (2008, p. 356) destaca que

 

(...) calcada na igualdade formal e na soberania individual, a autonomia reconhecida aos indivíduos desempenhava papel predominante que se traduzia na liberdade, como valor individual na propriedade, como senhorio de bens; e na autonomia privada, como poder de auto-regulamentação jurídica dos próprios interesses por meio do negócio jurídico, principalmente no que toca ao contrato.

Hodiernamente, a autonomia é tida como a faculdade ou poder conferido pelo ordenamento jurídico aos privados para autorregularem seus interesses.

Pinto (1998) citado por Sarlet (2000, p. 378) diz que

 

esta é a forma de se entender  a autonomia privada sem que se tenha uma preocupação de afinamento conceitual, a qual, a grosso modo,  corresponde ao sentido etimológico de autonomia, palavra que deriva do grego autos (próprio) + nomos ( regra, lei), que significa o poder de modelar por si e não por imposição externa, possibilidade de o sujeito determinar-se com sua vontade, por livre escolha.

De igual modo, Cantali (2009, p. 203) entende que “trata-se de poder conferido às pessoas para livremente conformarem seus interesses, governando sua esfera jurídica, o que é garantido pela tutela positiva reconhecida pela ordem jurídica”.

Portanto, a autonomia atualmente persiste como princípio básico da ordem jurídica, conferindo aos particulares poder de disposição sobre seus interesses; todavia não é mais considerada como poder absoluto.

Embora haja essa limitação, “os atos de autonomia foram ampliados passando a ter trânsito nas situações subjetivas existenciais” (Cantali, 2009, p. 204).

Como antes referido, essa mudança de perspectiva resulta do processo de personalização do direito civil, seara onde os direitos patrimoniais de outrora devem estar funcionalizados aos interesses existenciais da pessoa humana.

Diante dessa tendência socializante, diz Amaral (2006, 363) “os institutos jurídicos civilísticos sofreram um processo de relativização, passando a incidir sobre as situações jurídicas de maneira funcionalizada aos interesses sociais e à justiça”.

Nessa perspectiva, relativizada, a autonomia passa a se compreendida como valor com limites, ou seja, se e enquanto responder a um interesse digno de proteção por parte do ordenamento.

Portanto, a imposição de certos limites à autonomia não leva ao aniquilamento, mas tão somente supera o enlace histórico com o individualismo exacerbado, substituindo-o pela coexistencialidade. (Fachin, 2008, p. 145).

De outro modo, Cantali (2009, p. 217) aduz que “a busca pela efetividade do principio da dignidade da pessoa humana impõe que sua atuação se dê de forma a garantir o imperativo de assistência por meio de ação estatal ou coletividade, ao tempo em que garanta uma esfera de autodeterminação pessoal”.

E nessa parte, embora o direito ao livre desenvolvimento da personalidade não esteja expressamente consagrado no ordenamento jurídico brasileiro, “na medida em que a Constituição reconhece a dignidade humana, que tem como substrato material o postulado da liberdade e de autodeterminação pessoal, não há como discordar que daí se possa extrair tal direito, ainda que implícito” (Sarlet, 2004, p. 155).

O problema é saber a medida, ou seja, até que ponto se pode permitir a disposição de direitos de personalidade, em respeito ao postulado do livre desenvolvimento da personalidade. É o que passaremos a tratar adiante.

3.2 Contornos atuais do direito à privacidade

A Constituição e o Código Civil brasileiros determinam que a vida privada e a intimidade são invioláveis. Serão mesmo invioláveis? Simples análise do cotidiano das pessoas leva à conclusão de que a privacidade das pessoas está sujeita a sistemáticas violações.

 

“Vive-se numa sociedade vigiada, com câmeras, revistas em aeroportos, bancos de informações virtuais que armazenam dados pessoais, e mesmo a mídia, que a cada dia se torna mais agressiva, devassando a vida das pessoas, principalmente dos famosos, nas atitudes corriqueiras” (Cantali, 2009, p. 195).

Embora os ataques à vida privada causem maior repercussão, não há como negar que essa “sociedade transparente” acaba gerando comportamentos sociais amplamente aceitos e corriqueiramente praticados que importam na devassa da vida privada provocada pelas próprias pessoas. Ademais, o impacto que a revolução tecnológica vem causando também reflete no direito à privacidade, principalmente em função da internet e o seu fluxo de trocas de informações.

As pessoas, por vontade própria e em legítimo ato de disposição da privacidade, relatam suas vidas em diários eletrônicos, os Blogs, disponibilizam vídeos, inclusive de cenas mais íntimas, em sites como o Youtube, descrevem seu perfil em sites de relacionamentos como o Orkut, permitem a filmagem de sua vida íntima em tempo real através de webcams, sem falar naqueles que ingressam no fenômeno mundial de audiência Big Brother, situação em que os indivíduos têm a sua privacidade completamente suprimida, transmitindo ao vivo o cotidiano das pessoas.

Nesse sentido, Viera (2003, p.01) argumenta que

(...) As transformações pelas quais perpassa a humanidade nas últimas décadas, porém, criaram desafios à eficácia dos direitos da personalidade, notadamente ao direito à privacidade. Além de o indivíduo passar a ser visto não mais isolado de seu contexto, a explosão das comunicações veio trazer à tona novos debates, que chegam tarde dada a velocidade astronômica com que as novidades tecnológicas se incorporaram ao dia-a-dia das pessoas.

 

 

Os novos recursos abriram um leque de possibilidades, mas as revistas que se destinam a mostrar a vida privada de pessoas famosas e as biografias autorizadas são exemplos de práticas completamente incorporadas na sociedade.

Nesse cenário, necessária uma análise da concepção atual do direito à privacidade frente a essa realidade nova que se apresenta.

A concepção de privacidade, na sua visão tradicional, sempre esteve sempre ligada ao pensamento norte-americano, que implicava apenas em direito negativo, o direito de ser deixado em paz ou right to be alone (Lima, 2007, p.01).

Atualmente, por impulso da doutrina europeia, a privacidade passou a ser encarada de forma mais ampla, para além do direito negativo; é também direito ativo, as pessoas têm o direito de controlar a circulação de suas informações pessoais. Trata-se de gestão das próprias informações.

O conceito de privacidade é compatível com diferentes concepções, e o adotar de uma ou outra concepção pelo titular do direito é algo que não pode ser condenado, já que não pode impor uma determinada concepção fixista sobre algo quando a sociedade é composta de milhões de pessoas com diferentes visões de mundo.

Aliás, na medida em que a privacidade passa a ser compreendida também como um poder de controle sobre a circulação de informações pessoais, ofuscam-se as fronteiras entre o direito à privacidade e o direito à imagem. Esse é o entendimento de Cantali (2009, p.197) quando aduz que “não há duvidas que as fotografias veiculadas nas revistas mostrando a vida íntima das pessoas, mesmo os reality shows e os vídeos colocados na internet, são situações que envolvem tanto a privacidade como a imagem”.

Embora esta concepção positiva do direito à privacidade seja relativamente recente na construção doutrinária jurídica, já há algum tempo se sustentava que a privacidade tem como um de seus fundamentos o princípio da exclusividade, o qual enuncia essencialmente três exigências: a solidão ou o desejo de estar só, o segredo ou a exigência de sigilo e a autonomia, da qual deflui a liberdade de decidir sobre si mesmo como centro emanador de informações.

Pontes de Miranda (2000, p.126) já anunciava que a privacidade, por ele denominada intimidade, “consiste em um exercício da liberdade que se manifesta no fazer e no não fazer, revelar ou não revelar os assuntos de sua vida privada”. O titular tem o direito de velar a intimidade ou o direito de expô-la ao público.

Nessa medida, ao direito sobre a vida privada se agrega um componente de liberdade. Todavia, se é verdade que a disposição da privacidade por parte do titular do direito abranda a tutela negativa, é sempre necessário avaliar, em concreto, se de tal uso não possa derivar ofensa à honra, depreciando sua reputação.

Diante do intenso comércio que gira em torno da vida privada das pessoas, como venda de fotografias, exposições da vidas cotidiana em revistas, jornais, cinema, internet e televisão, observa Szaniawski (2005, p.148) que

(...) não há como negar que a pessoa pode explorar sua vida privada, seja de forma gratuita, seja remunerada. Claro que a ideia de remuneração pode gerar uma perspectiva patrimonializante destes direitos, e isso deve ser evitado. Mesmo que haja possibilidade da realização de negócios jurídicos com efeitos patrimoniais envolvendo bens ligados à personalidade, há que se atentar que os valores envolvidos são de cunho existencial, atinente ao ser primordialmente.

 

 

Nessa perspectiva, o direito à privacidade consiste em tutela indispensável ao exercício da cidadania, seja tutela negativa, seja positiva, ou seja, protegendo contra atentados indevidos e garantindo uma esfera de gestão das próprias informações.

Diante dessas duas direções resulta a impossibilidade de definir contornos específicos sobre a privacidade. Trata-se de um direito aberto, de calibração e repercussão concretas, o que suscita uma proteção dúctil.

Embora os contornos sejam maleáveis e diversas podem ser as peculiaridades dos casos concretos, a análise de cada situação fática deve ter como norte os valores constitucionais primordiais e unificadores de todo o sistema: a dignidade da pessoa humana e o respeito à personalidade de cada um.

Essa mudança de perspectiva que acabou delineando um direito que assegura a cada pessoa a tomada de decisões sobre sua vida privada, gerando um controle sobre as informações pessoais, permite que as pessoas compartilhem sua vida privada e, portanto, não há que se falar em violação à privacidade.

Isso demonstra o papel da vontade, da autonomia privada na seara dos direitos fundamentais da personalidade. A privacidade é essencialmente inviolável, mas aquele que possui o controle de suas informações pessoais pode sim dispor delas, consentindo com a sua divulgação, desde que isso não afete sua integridade moral e sua dignidade.

Se o titular pode controlar as informações que dizem com sua vida privada, pode viver uma vida mais resguardada, reduzindo o nível de sua interação social, ou viver uma vida mais mundana, sem reservas sobre a sua vida privada.

Por essa razão, Pinto (1999, p. 28) sustenta que

 

(...) é o titular do direito que tem o poder de modelar o objeto de proteção de seu direito, ressalvando o fato de que neste momento apenas se está a delimitar o objeto desse direito, não se tratando ainda de uma limitação voluntária propriamente dita, já que esta importa divulgação pelo titular ou ainda autorização para terceiros para a divulgação das informações.

Logo, a disposição de um bem ligado à personalidade pode ter efeitos patrimoniais quando da exploração, mas isso não retira o caráter eminentemente existencial desses direitos.

Nessa medida, torna-se necessário que estas relações negociais sejam documentadas detalhadamente, expondo todas as condições e limites da exibição da vida privada alheia. Aliado a isso, há o consentimento do titular, o qual neste caso é suficiente para o exercício do direito de personalidade através do direito de disposição garantido pela tutela positiva desses direitos.

A divulgação de informações pessoais da vida privada pelo próprio titular do direito representa legítimo ato de disposição sobre a privacidade e a intimidade, que se traduz, justamente, em uma forma de exercício desses direitos, na expressão da liberdade, da autonomia e do livre desenvolvimento da personalidade.

Há quem sustente, inclusive, que a vida privada é um princípio de autonomia do indivíduo na sociedade, ou seja, não somente o direito de resguardo de sua intimidade, mas também o seu livre arbítrio.

3.3 O insuficiente critério dos bons costumes como limite ao livre desenvolvimento da personalidade

O código civil brasileiro de 2002, no capítulo II, quando trata dos direitos da personalidade, partindo do pressuposto de que os direitos da personalidade são indisponíveis, salvo se os atos de disposição forem autorizados por lei, não traz menção a qualquer limite que possa ser imposto à atuação dos particulares nesta seara:

LEI No 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002.

Institui o Código Civil.

 (...)

CAPÍTULO II

DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.

Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.

Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.

Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.

Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.

Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.

Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.

Art. 16. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.

Art. 17. O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.

Art. 18. Sem autorização, não se pode usar o nome alheio em propaganda comercial.

Art. 19. O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome.

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

O artigo 13 é o único que faz referência a uma limitação de disponibilidade voluntária de direito de personalidade e se reporta ao critério dos bons costumes, o qual justamente traz reserva legal para disposições do próprio corpo.

Miranda (1998) citado por Cantali (2009, 224) refere que a título de estudo comparado, na Alemanha, a norma que consagra o livre desenvolvimento da personalidade impõe como limites os direitos de terceiros, a ordem constitucional e a lei moral; na Espanha os limites são os direitos alheios, a ordem política e a paz social; já o texto constitucional português não faz referência expressa a qualquer limite.

Todavia, limitações existem, mesmo que não expressamente previstas, já que é insustentável a concepção de um direito fundamental ilimitado.

É certo que quando da concepção do código civil, negava-se trânsito à autonomia privada nas situações jurídicas existenciais. Por isso, não há qualquer menção aos limites a esta atuação nas normas que tratam dos direitos da personalidade.

A par da carência legislativa, já se logrou demonstrar que a vontade e a autonomia privada também incidem sobre os interesses existenciais.

Para além das fronteiras que outras normas específicas poderiam impor à atuação dos particulares no exercício de sua autonomia privada, a ordem pública e os bons costumes também são invocados como limites. Calcados nestes critérios se poderia perguntar: até que ponto a autonomia privada e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade podem ir sem atingir a ordem pública e os bons costumes?

Para Amaral (2006, p.347) “0s bons costumes compreendem o conjunto de regras morais que formam a mentalidade de um povo e que se expressam em princípios como a lealdade contratual, a proibição de lenocínio, dos contratos matrimoniais, do jogo, etc”.

A seu turno, Capelo de Souza (1995, p. 530) sustenta que “bons costumes é noção de base sociológica que se traduz nos usos e costumes valorados como bons conforme o conjunto de regras morais impostas pela consciência social”.

A contrariedade aos bons costumes, portanto, relaciona-se com o comportamento imoral. Nesse ponto se pode questionar: o que é imoral, ou o que reflete um mau costume?

Como se percebe, bons costumes é um conceito bastante nebuloso e, muitas vezes, apegado a noções ultrapassadas. Ademais, se trata de algo absolutamente subjetivo diante de uma sociedade diversificada e multicultural, e, nessa medida, não há como deixar a cargo da consciência social a sua definição.

Quando se trata dos atos de disposição do próprio corpo, logra-se demonstrar o quão subjetivo é o conceito de bons costumes. Nesse particular é o raciocínio de Cantali (2009, p. 226) ao reforçar a fluidez do conceito de bons costumes quando deixados a cargo do imperativo social:

 

(...) Aos olhos de uma pessoa conservadora, transformar um corpo para que este se assemelhe a uma vaca ou a um lagarto pode ser atentatório aos bons costumes. No entanto, para a pessoa que assim age certamente se trata de um bom costume. Inclusive, no grupo de relação destas pessoas, a modificação corporal pode ser tida, inclusive, como fator de aceitação e inclusão. O mesmo ocorre com a imagem. Há quem entenda que fotografias de pessoas nuas sejam atentatórias aos bons costumes. Todavia, trata-se de prática com larga aceitação social.

 

 

De outra parte, existem grupos atuantes que levantam severas contrariedades em relação à fertilização in vitro, à eutanásia, mesmo quando consentida, à gestação por substituição e outras possibilidades que a revolução tecnocientífica coloca a disposição da sociedade. Estas hipóteses se traduzem em bons ou maus costumes?

Ora, diante do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, são hipótese plenamente aceitáveis e legítimas diante da tutela positiva que é conferida pelo ordenamento jurídico. Apenas seriam condenáveis se atentatórias a direito de terceiros e à dignidade da pessoa humana.

Diante dessa dificuldade de estabelecer o que é um “bom costume”, Capelo de Souza (1995, p.531) afirma que

 

“ao desenvolvimento da personalidade, em uma sociedade eminentemente personalista, em que se garante também o direito fundamental à liberdade, impõe-se severa cautela para limitar uma atuação particular sob o argumento de violação dos bons costumes”.

 

 

Novamente, chega-se ao mesmo questionamento: esta cautela deve levar em consideração quais critérios para definir se um determinado comportamento é imoral, contrário aos bons costumes?

No mundo jurídico, os conceitos não podem ser pautados a partir de rígidas classificações ou modelos arcaicos, já que um direito excessivamente dogmático é inadequado porque não é suficiente para abarcar a diversidade da realidade fática que se apresenta. Como explica Konder (2003, p. 52),

 

crer “na existência de uma ordem conceitual perfeita, fruto de uma racionalidade atemporal” representa um raciocínio errôneo calcado em uma dogmática que se pretende neutra e racional, como a do liberalismo jurídico. O Direito, como qualquer ciência, deve ser compreendido dentro do contexto social em que se insere e, dessa forma, qualquer qualificação jurídica é sempre marcada pelas opções históricas, culturais e ideológicas. Não existem conceitos absolutos, a relatividade é a marca da contemporaneidade.

 

 

Faz coro, nesse sentido, as considerações de Perlingieri (2002, p.64), para quem:

(...) não existem instrumentos válidos em todos os tempos e em todos os lugares: os instrumentos devem ser construídos pelo jurista levando-se em conta a realidade que ele deve estudar. (...) O conhecimento jurídico é uma ciência jurídica relativa: precisa-se levar em conta que os conceitos e os instrumentos caracterizam-se pela sua relatividade e por sua historicidade.

 

 

Pensar que, para todas as épocas e para todos os tempos, haverá sempre os mesmos instrumentos jurídicos é um grave erro: cada lugar, em cada época, terá os seus próprios mecanismos. Portanto, a noção de bons costumes, fruto de um juízo de valor fundado na moralidade é demasiadamente subjetiva e imprecisa, mostrando-se insuficiente para limitar a atuação dos particulares no desenvolvimento de seu projeto de vida.

O que se deve buscar é o reconhecimento do conteúdo ético dos conceitos jurídicos em uma cultura que se diz pós-positivista, centrada na axiologia constitucional, que valoriza o multiculturalismo e o pluralismo jurídico, buscando a superação das tendências generalizadoras e racionalizadoras da modernidade.

O direito precisa acompanhar as mudanças sociais e, dessa forma, não há como estabelecer um padrão de conduta que se considere como bons costumes.

Ademais, o próprio conceito de dignidade está sempre em processo de construção e desenvolvimento, já que, para além de sua dimensão ontológica ou natural, que é considerada como qualidade inata da pessoa humana, a dignidade conta com uma dimensão histórico-cultural.

O contexto cultural e histórico determina a mobilidade do conteúdo da dignidade humana. Esta, nos dizeres de Sarlet (2004, p.30)

é fruto do trabalho de diversas gerações e da humanidade em seu todo e, assim, não admite conceito fixista, principalmente porque os conceitos rígidos e atemporais “não se harmonizam com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifestam nas sociedades democráticas contemporâneas”.

 

 

O autor, repudiando um conceito universal de dignidade, questiona até que ponto a dignidade poderia estar acima das especificidades culturais diante de muitos atos que para determinadas culturas são atentatórios à dignidade e para outros não. Exemplifica com a aceitação de pena de morte em muitos estados americanos, onde a Suprema Corte entende ser prática constitucional desde que utilizados métodos de execução que não sejam cruéis e desumanos, já que impingir sofrimento desnecessário seria atentatório à dignidade. Outros já diriam que a pena de morte em si é atentatória à dignidade.

Traz também o exemplo de mutilações genitais em diversos estados, as quais, para a maioria dos povos, certamente implica comportamento atentatório à dignidade, mas em outras culturas é plenamente aceito e tutelado pela ordem jurídica.

Sequer é preciso buscar recurso em diferentes sociedades para verificar o quão indeterminado é o conceito de dignidade, já que muitos atos que para uma pessoa podem ser atentatórios à sua dignidade, para outros não o são. Há quem entenda que a exposição da vida privada fere a sua dignidade, outros sequer cogitam que tal exposição teria esse efeito; não fosse assim ninguém se sujeitaria a participar de reality shows.

Nessa perspectiva, “ainda que se pudesse ter o conceito da dignidade como universal não haveria como evitar uma disparidade e até mesmo conflituosidade sempre que tivesse que avaliar se uma conduta é, ou não, ofensiva da dignidade”(Sarlet, 2004, p.32).

A propósito, Fachin afirma que a lógica do sistema jurídico está na congruência da relação que interpenetra o Direito e a sociedade, e que “o sistema jurídico sofre os abalos do dinamismo que compõem a história, pois os valores a ele incorporados estão em constante mutação. E continua o autor:

“Se nem a dignidade pode fixar-se em um conteúdo estático, que dirá os bons costumes. O importante é que a tomada de decisão que implique limitação à atuação dos particulares seja pautada conforme preceitos constitucionais, principalmente em relação aos direitos que emanam do principio da dignidade da pessoa da pessoa humana, levando também em consideração as peculiaridades do caso concreto”( Fachin, 2008,p. 202).

 

 

Afastam-se, pois, os bons costumes como critério de limitação de disposição do direito à privacidade, pois a sua conformação conceitual encerra uma carga axiológica bastante fluida e mutável, já que na teia de relacionamentos sociais intersubjetivos o que é bom para um pode não ser bom para outro; ou mesmo numa perspectiva temporal, o que é bom em determinado momento histórico pode vir a ser considerado mau em outro momento, e assim por diante.

Enfim, nas situações que importem em atos de disposição sobre direitos fundamentais de personalidade, como a privacidade, em face da indisponibilidade desses direitos, legitima-se o ato dispositivo ou não, dependendo das circunstâncias do caso concreto. O julgador deve socorrer-se, nesses casos, dos princípios para que haja uma solução ponderada.

No âmbito específico dos direitos de personalidade, mas em consonância, afirma Szaniaswski (2005, p.106) que “os limites do direito geral de personalidade são fixados, em cada caso concreto, através da ponderação de bens e interesses postos em litigio, aplicando-se o principio da ponderação”.

3.4 Precedentes jurisprudenciais

Nesta parte final do trabalho, colacionamos alguns precedentes da produção jurisprudencial dos tribunais pátrios como forma de apresentar linhas diretrizes que apontem a maneira de decidir dos julgadores das cortes quando se deparam com qualquer violação a direito de personalidade.

Os julgados incorporam a ideia de reparação do dano causado, uma vez que a doutrina do livre desenvolvimento da personalidade, do direito do homem de desenvolver-se conforme o seu projeto de vida ainda é recente e carece de produção jurisprudencial mais robusta para se extrair seus contornos no pensamento das cortes do país.

1. A conduta da prestadora de serviços telefônicos caracterizada pela veiculação não autorizada e equivocada de anuncio comercial na seção de serviços de massagens, viola a intimidade da pessoa humana ao publicar telefone e endereços residências. 2. No sistema jurídico atual, não se cogita de prova acerca da existência de dano decorrente da violação aos direitos de personalidade, dentre eles a intimidade, a imagem, honra e reputação, já que, na espécie, o dano é presumido pela simples violação ao bem jurídico tutelado. 3. Recurso Especial parcialmente conhecido e provido (STJ – RESP 506437 – SP – 4ª T. – Rel. Min. Fernando Gonçalves – DJU 6.10.2003 – p.280)

 

A dignidade é um bem jurídico tutelado, que deve ser preservado e prevalecer em detrimento do excesso de zelo de alguns maus empregadores com o seu patrimônio. O que é preciso o empregador conciliar, é seu legítimo interesse em defesa do patrimônio, ao lado do indispensável respeito à dignidade do trabalhador .A Constituição Federal (artigo 5º, incisos V e X) e a legislação sub-constitucional (artigo 159 do Código Civil Brasileiro de 1916, vigente à época dos fatos) não autorizam esse tipo de agressão e asseguram ao trabalhador que sofrer essas condições vexaminosas, a indenização por danos morais. Importante frisar, ainda, que a inserção do empregado no ambiente de trabalho não lhe retira os direitos de personalidade, dos quais o direito à intimidade constitui uma espécie. Não se discute que o empregado, ao ser submetido ao poder diretivo do empregador, sofre algumas limitações em seu direito à intimidade. O que é admissível, sim, é que a ação do empregador se amplie de maneira a ferir a dignidade da pessoa humana (TRT 2ª R. – RO 18956 – (20030363599) – 6ª T. – Rel. Juiz Valdir Florindo – DOESP 1.8.2003).

 

O uso indevido da imagem impõe o dever de indenizar (art. 5º, V, da CF). O lesado não pode ser obrigado a provar que o autor do ilícito civil objetiva lucro com a divulgação, não consentida, da imagem do autor. A empresa comercial que divulga seus produtos usando imagem de modelo fotográfico sem aquiescência deste, sem duvida, objetiva aumentar suas vendas e consequente lucro. Não se pode negar o resultado da conclusão que se evidencia da prova dos autos (TJRJ – AC 1.738/90 – 3ª C – Rel. Des. José Rodrigues Lema – DJ 20.8.1991).

 

1. Alega o apelante preliminar de nulidade da sentença por ausência de fundamentação, embora tenha o juiz sentenciante acatado os embargos de declaração para fazer inserir os fundamentos que justificam o comando da decisão. Assim, afasta-se a prejudicial levantada.

2. O conflito de interesses, neste apelo, encontra sua delimitação na aplicação dos princípios constitucionais da liberdade de expressão, divulgação do pensamento e o direito à privacidade.

3. Com efeito, a liberdade de pensamento e expressão encontra seu limite na esfera personalíssima da pessoa, cuja inviolabilidade é ampla, abrange o modo de vida doméstico, nas relações familiares e afetivas em geral, fatos, hábitos, local, nome, imagem, pensamentos, segredos, e, bem assim, as origens e planos futuros do indivíduo.

4. A exposição, via internet, de fatos inerentes à vida privada da apelada, transgredindo a liberdade de expressão, o apelante, sem contar com a autorização da recorrida, feriu, sobremaneira, o seu direito de privacidade, emergindo, daí, a responsabilidade civil, uma vez que comprovado o fato decorrente de qualquer das ocorrências por ato de negligência, imprudência ou imperícia praticada, com o elemento culpa como pressuposto da responsabilidade a ser penalizada com o dever de reparar o ofendido, que, neste caso, mesmo envidando esforços e de acordo com as provas trazidas aos autos não se vislumbra qualquer das excludentes de responsabilidade em detrimento ao dano efetivamente comprovado pela apelada, vindo esta a sofrer prejuízos no âmbito de sua integridade moral.

5. O valor fixado a título de indenização, na sentença recorrida decorre das circunstâncias do fato e sua extensão danosa, obedecidos, pois, os critérios de razoabilidade e proporcionalidade.

6. Sentença mantida por votação unânime.(TJ-PI AC 200800010041300 - 2a. C. – Rel. Des. José James Gomes Pereira - DJ 04/05/2010)

 

 

 

 

 

CONCLUSÃO

No pensamento jusfilosófico grego, colocou-se a pessoa como origem e finalidade do direito. No entanto, embora se verificasse algumas manifestações isoladas da proteção da pessoa na antiguidade, não se pode afirmar que tal proteção se assemelhava ao que hoje concebemos a partir da tutela dos direitos da personalidade, posto que neste período histórico a posição da pessoa na sociedade influenciava no tratamento a ela dispensado.

Com o cristianismo, já Idade Média, iniciou-se o desenvolvimento da noção de pessoa e dos direitos da personalidade a partir da ligação entre a ideia de dignidade humana, valorização do indivíduo como pessoa e personificação da imagem de Deus. Ainda que valorizada em sua individualidade e dignidade, não foi neste período que se conferiu relevo aos direitos de personalidade.

O período renascentista traz uma releitura sobre o tema ao erigir a construção da teoria do direito sobre a pessoa – ius in se ipsum -, a partir da qual se permitia que a pessoa fizesse de si o que melhor lhe conviesse, ressalvadas algumas limitações calcadas em proibição legais.

O pensamento jusnaturalista do séc. XVII, exaltando os direitos da personalidade contribuiu para a consagração da ideia de igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade, formando a base para a formulação dos direitos individuais fundamentais.

A teoria dos direitos inatos, atrelada a um sentimento de reivindicações políticas, inspirou a Revolução Francesa e contribuiu para a conformação do constitucionalismo moderno e do Estado de Direito. Mesmo nesse cenário, os direitos de personalidade não contaram com efetiva proteção ao longo do século XIX devido a forte dicotomia entre Direito público e Direito Privado e este identificado basicamente com a regulação da atividade econômica do indivíduo. Assim, não há como falar em proteção efetiva dos direito s de personalidade nesta época.

Ainda no século XIX, a Escola Histórica e o Positivismo Jurídico sustentando teorias que ou negavam a existência dos direitos de personalidade ou relegavam a proteção jurídica somente aos direitos tipificados em lei fez com que a doutrina do direito geral da personalidade ficasse adormecida.

A partir do pensamento positivista de tutelar os direitos de personalidade tipificados em lei, várias foram as tentativas de classificar esses direitos, mas que restaram inexitosas diante das inúmeras situações em que a personalidade se manifesta.

Contudo, as atrocidades cometidas contra o ser humano, a evolução de um estado de Direito para um Estado Democrático de Direito, a publicização e Constitucionalização do Direito Privado e a consequente repersonalização do Direito que restaurou a primazia da tutela da pessoa em função da consagração da dignidade humana como valor fundante das ordens jurídicas fez que com que efetivamente se verificasse a emergência do direito geral de personalidade, recolocando a pessoa dotada de dignidade como sendo a finalidade e função dos ordenamentos jurídicos.

No Brasil, com a consagração da dignidade da pessoa humana Na Constituição Federal de 1988, aliada a garantia residual do § 2º do artigo 5º,que garante a tutela  aos direitos fundamentais não incorporados expressamente, configura-se uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo do ordenamento.

No que toca ao Código Civil de 2002, embora que diferentemente do Código Civil de 1916, tenha consagrado alguns direitos de personalidade, bem como tenha veiculado uma cláusula geral através do seu artigo 12, em verdade tem caráter mais pedagógico que inovador posto que a cláusula geral de promoção da pessoa humana já era garantida pela Constituição Federal de 1988. Ademais sua regulação é tímida e tipificadora, estipulando soluções premoldadas inadequadas frente à tutela geral que tais direitos merecem.

A tarefa que se afigura relevante no caminhar do século XXI é a de conferir aos institutos civilísticos uma interpretação conforme a tábua axiológica da constituição, reconhecendo a publicização, constitucionalização e repersonalização do Direito como fenômenos informadores de toda a ordem jurídica.

Para além das características ditas incontroversas, a indisponibilidade, irrenunciabilidade e intransmissibilidade devem ser problematizadas, reconhecendo-se uma parcela de disponibilidade e relativização dessas características frente a realidade atual da sociedade.

Nesse sentido, a plena realização de um direito fundamental da personalidade inclui a possibilidade de o titular dele dispor, mesmo que este ato importe em restrição do direito, já que tal restrição é a expressão do direito de autodeterminação pessoal, dimensão da própria dignidade humana.

Assim, o exercício dos direitos fundamentais da autonomia privada e da liberdade não são absolutos como outrora já concebidos; sua abrangência encontra limitações, justamente em função de uma perspectiva socializante e igualitária, característica do direito contemporâneo, a qual vem funcionalizando todos os institutos jurídicos.

Diante da indisponibilidade essencial e da disponibilidade relativa no caso concreto, verifica-se que o problema das limitações voluntárias ao direito da personalidade é um problema de limites e medidas, principalmente porque neste tipo de situação em concreto, evidencia-se uma colisão de direitos fundamentais sobre o mesmo titular, o que é solucionada através da necessária utilização da ponderação como método para solucionar conflitos normativos.

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[1] Código Civil Português de 1966: artigo 70º, nº 1. a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.

[2]CCB/2202. Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

[3] O legislador ainda sofre a influência das teorias tipificadoras que pretendiam classificar exaustivamente os direitos de personalidade, inovando de forma muito sutil quanto à veiculação de uma cláusula geral contida no artigo 12. In: CANTALI, Fernanda Borghetti. Ob.cit., p.99.

[4] CCB/2002. Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.

5 A permissão legal de atos voluntários de limitação aos direitos de personalidade pode ser depreendida do teor de diferentes artigos do Código Civil brasileiro de 2002: Artigo 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial. Artigo 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo. Artigo 18. Sem autorização, não se pode usar o nome alheio em propaganda comercial.

[6] O transtorno de disforia de gênero é um transtorno de ordem psicológica e médica, que se manifesta na condição em que a pessoa é de um determinado gênero biológico (homem e mulher), mas se identifica com os indivíduos pertencente ao gênero oposto, e considera isso como desconfortante ou é incapaz de lidar com essa condição.

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Sobre o autor
Fernando Rodrigues da Silva

Formado em Direito Pela Universidade Estadual do Piauí. Advogado.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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O tema publicado assume capital importância face às constantes transformações e limitações à disposição dos direitos de personalidade

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