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Estado de direito revolucionário.

Luís Roberto Barroso - sem essa de cordialidade

19/06/2014 às 15:15
Leia nesta página:

Nem a cordialidade é o que o nome sugere que seja e nem há e nem nunca houve nenhuma democracia racial no Brasil.

Temos de concordar com o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao afirmar que o brasileiro passou de homem cordial a um ser social truculento. Devemos pensar na série infindável de justiciamentos, grupos de extermínio e de linchamentos, com a justiça pública transformada em vingança privada. Na verdade esse negócio de homem cordial sempre foi muito mal compreendido no país, na academia e junto ao senso comum. Vejamos, por exemplo, um comentário postado por Fábio de Oliveira Ribeiro em direção a esta afirmação do ministro:

Brasileiro cordial sempre foi um mito. Os brasileiros despedaçaram índios na boca do canhão, chicotearam e acorrentaram negros-coisas, degolaram miseráreis em quase todas as rebeliões populares ocorridas durante o período colonial e imperial. O regime republicano degolou nordestinos em Canudos e maragatos no Rio Grande do Sul durante a revolta federalista. Brasileiros torturaram prisioneiros políticos na década de 1930 e na de 1960. A cordialidade nunca foi a regra no trato entre brasileiros[1].

Também concordo com esta reflexão, um pouco de história sempre refresca a memória. Porém, o homo cordialis – na criação do tipo ideal do clássico pensamento da década de 1930 – nunca foi cordial no sentido tradicional da expressão e nem como quer acreditar a maioria – e nisto se inclui o nobre ministro e os demais críticos, como afixado acima.

Sérgio Buarque de Holanda

Então, para seu criador – o historiador Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, na publicação de 1936 –, o que é ou do que se compõe esta criatura social?

Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o “homem cordial” [...] Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no “homem cordial”: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas sua sensibilidade e suas emoções [...] Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo (Holanda, 1995, pp. 146-147 – grifos nossos).          

É uma máscara, uma defesa ante o social, uma armadura espiritual, cultural, ideológica e que se torna aparente diante das necessidades sociais. A cordialidade serve-nos de carapuça para escapar da escaramuça social. Também é impossível não retomar a clássica interpretação de Antônio Cândido:

Formado nos quadros da estrutura familiar, o brasileiro recebeu o peso das “relações de simpatia”, que dificultam a incorporação normal a outros agrupamentos. Por isso, não acha agradáveis as relações impessoais, características do Estado, procurando reduzi-las ao padrão pessoal e afetivo. Onde pesa a família, sobretudo em seu molde tradicional, dificilmente se forma a sociedade urbana de tipo moderno [...] O “homem cordial” não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva, inclusive suas manifestações externas, não necessariamente sinceras nem profundas, que se opõem aos ritualismos da polidez (1995, p. 16-17).

A polidez é uma arma, um meio ou recurso de sobrevivência voltada contra o agressor externo (social) e que pode ser a formalidade burocrática do Estado – se esta for entendida como perigosa à segurança das relações pessoais:

Ao que se poderia chamar de “mentalidade cordial” estão ligados vários traços importantes, como a sociabilidade apenas aparente, que na verdade não se impõe ao indivíduo e não exerce efeito positivo na estruturação de uma ordem positiva. Decorre desse fato o individualismo, que aparece aqui focalizado de outro ângulo e se manifesta como relutância em face da lei que o contrarie. Ligada a ele, a falta de capacidade para aplicar-se a um objetivo exterior (Holanda, 1995, p. 17).

Ante a formalidade ameaçadora, utilizamo-nos do laivo do jeitinho brasileiro e que é, em suma, uma forma gentil de burlar as regras e tratar as convenções de acordo com o jogo de forças pessoais que se apresentarem úteis naquele determinado momento.


O foco na geração de 1930

No mesmo período (década de1930), Gilberto Freyre escrevia que no Brasil vivemos uma verdadeira democracia racial – perfeito esconderijo moral em que se encobre o racismo que nunca foi disfarçado, apenas camuflado de acordo com as sutilezas da miscigenação ou “boas aparências”. Sérgio Buarque e Gilberto Freyre pertencem à chamada Geração de 30[2]:

A interpretação de Sérgio Buarque de Holanda tem raízes no pensamento alemão moderno, principalmente Dilthey, Rickert e Weber. Desenvolve-se em um conjunto de tipos ideais, configurando épocas, estilos de sociabilidade. Percebe de modo aberto a sociedade civil e o Estado, no passado e no presente. O ‘homem cordial’ sintetiza uma parte expressiva da forma pela qual apanha momentos da história, em moldes supra-históricos. Uma interpretação bastante presente em meios universitários e artísticos [...] E a interpretação de Caio Prado Júnior tem raízes no pensamento marxista. Analisa a formação social brasileira em termos de forças produtivas e relações de produção, expropriação do trabalho escravo e trabalhador livre, desigualdades sociais e contradições de classes. Apanha a história como um caleidoscópio de ‘ciclos’ e épocas, diversidades e desigualdades sociais, econômicas, políticas e culturais, complicadas pelas diversidades e desigualdades raciais e regionais. Desvenda as lutas, as reformas e rupturas que demarcam épocas e perspectivas da história social brasileira” (Ianni, 1994, p. 41-2 – grifos nossos).

Uma cultura não se faz de aparências e não sobrevive apenas à superfície da necessária formação de uma identidade global. De forma diversa e plural, foi acerca disto que a geração de 1930 chamou a atenção para a formação do Brasil.


Miscigenação e mestiçagem

Desse modo, o Brasil seria construído a partir desse cadinho sociocultural, mas como povo novo verteria uma espécie de neocultura brasileira. Também pode-se dizer que as bases dessa cultura receberiam mais incrementos: qualidade sociocultural diferenciada e com base na miscigenação; coesão cultural e unidade do idioma; relação com a natureza (desbravamento e aculturação); fluxos migratórios; objetivos específicos de produção (extração e monocultura):

Os processos de destribalização e deculturação desses contingentes para plasmar a etnia nacional operaram sob as compulsões da escravidão e, simultaneamente, com a miscigenação de uns com os outros e de todos com o português, sob a dominação deste último, que impôs sua língua, sua religião e uma ordenação social conformada de acordo com seus interesses de nação colonizadora (Ribeiro, 2007, p. 196).

É como se tivesse operado um milagre cultural, pois da miscigenação fabricada no projeto político da colonização e escravidão teria resultado uma democracia racial. A protocélula da sociedade brasileira remontaria a meados do século XVI, quando da implantação dos primeiros engenhos e do escambo intenso do Pau-Brasil. A colonização se deu a partir da costa marítima e o chamado povo novo teve início com o mameluco – filho de pai europeu e mãe indígena. Criado na comunidade matriarcal, o mameluco se identificaria com o pai nos negócios, mas dominaria melhor o idioma materno. Portanto, é claro como a miscigenação decorre da aculturação.

O mestiço resultante seria herdeiro do foco colonizador europeu, além de um saber indígena milenar que lhe asseguraria meios para sobreviver e crescer, sobretudo em meio às adversidades da floresta tropical. Componentes derivados seriam a tecnologia e o conhecimento nativos, bem como uma visão de mundo ímpar.

A par dessa mestiçagem, a matriz cultural predominante era a Tupi-Guarani e que já teria ultrapassado os limites dos primeiros passos da revolução agrícola, tendo dominado a agricultura da mandioca, amendoim, batata-doce. A cultura Tupi-Guarani, devido a sua dispersão em grandes áreas do território nacional, acabou sendo o denominador comum da sociedade nacional.


A cordialidade é um trecho da colonização

A proximidade cultural dos neo-brasileiros com a base Tupi-Guarani produziu um paradoxo – levaria tanto à convivência pacífica quanto à busca da escravização indígena. A própria rota dos trechos da colonização, findo o século XVI, ainda seguiria sobrepondo-se às trilhas e demarcações trazidas pelas aldeias indígenas. O fluxo da primeira fase da escravização, ironicamente sendo nossa matriz cultural e genética, teria como resultado a dizimação indígena.

Rompiam-se, com isso, as relações de convívio amistoso do branco com o índio. Mesmo com o amansamento jesuítico, a rebeldia indígena estava assegurada por seus ethos e habitus: “A rebeldia do índio contra a escravidão fundava-se em sua própria estrutura social igualitária, que, não diferenciando uma camada submissa, nem um estrato superior, tornara inviável a sua determinação global” (Ribeiro, 2007, p. 199). Deste entrechoque não se observou uma aculturação evolutiva do índio. Pois, não se observaria a transformação da tribo em vila, nem da comunidade em uma sociedade. O resultado seria simplesmente o extermínio de grupos indígenas inteiros.


A cordialidade é uma conscrição cultural

O fracasso na conscrição indígena levou à escravização do negro, igualmente tribalista, mas com condição social e cultural mais elevada. Ao índio fugidio do eito bastava entrar no mato para procurar por seu povo; todavia, o negro apressado via-se isolado e excluído do nicho cultural – o que represava sua ânsia pela fuga.

 A produção da cana-de-açúcar levou a um novo patamar socioeconômico, requisitando outra estrutura social – bem como o incremento escravista. Um modo de produção baseado na escravidão e no sistema de fazendas, com incipiente urbanização em pequenos vilarejos, já necessitava de outros profissionais e demais produtores: artesãos, comerciantes, camponeses.

Afora o fetiche loira/negro, o caldeamento cultural é a súmula da defesa da tese da integração racial: “O nascimento de um filho mulato, nas condições brasileiras, não é nenhuma traição à matriz negra ou à branca” (Ribeiro, 2007, p. 208). Eis a democracia racial de Gilberto Freyre: “E está permitido definir uma ideologia racial que tende a atribuir as qualidades positivas do homem brasileiro precisamente à mestiçagem dos três troncos elementares” (Ribeiro, 2007, p. 208).

Desse cadinho adveio o crioulo, o mulato, o sertanejo, o caipira, o gaúcho-sulino, os matutos, o gringo-caipira, o sertanista, o mateiro, o cafuzo, o descendente de imigrantes (aculturado, mas não miscigenado) e outros herdeiros dos povos da floresta. Contudo, como não poderia ser diferente, regularmente formulavam-se duetos e, por vezes, duelos entre membros, grupos e classes sociais representadas por esse disforme e altamente complexo intercâmbio cultural: casa grande & senzala; sobrados e mocambos; ordem x informalidade; casa x rua; popular e erudito; oficial versus malandragem. Aliás, diz a música: “malandro é malandro; mané é mané”.


Desatrelamento do oficial

A tendência é de que haja um folguedo com a formalidade. Nossa identidade acabou avessa ao ritual-institucional (o traficante chama o policial de otário). Por isso, o público é meio-extensão do privado. A informalidade – muitas vezes benéfica – acaba reduzida à flexibilidade da moralidade pública. A corrupção e a desonestidade só agravam as condições de precariedade do povo como um todo. A corrupção, portanto, só reforça o elitismo e acirra o preconceito social (e racial, pois a maior parte da população pobre é mestiça e negra). A corrupção só reforça o velho tom senhorial.

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A corrupção do público seria o modelo aplicado desde a criação da indústria da pobreza (regionalizada no Nordeste como indústria da seca). Vê-se aí outra vez o dueto/duelo antitético entre modernidade institucional e dominação senhorial (Ribeiro, 2007, p. 209). O povo não participa da construção do formal, pois só é convidado para ser coadjuvante da festa: “O povo, rural ou urbano, submetido a essas forças opostas é obrigado a integrar-se no enquadramento que elas estabelecem” (Ribeiro, 2007, p. 209). Mesmo sabedor de que a modernidade traz mudanças sociais benéficas, o povo observa indiferente ao cortejo público. Outra ironia decorrente de nosso eterno dueto/duelo cultural se observa no desatrelamento do oficial, em ação paralela ao desejo de progresso.

Desse ponto de vista, o atraso cultural nem sempre se demonstrará pelas afeições e apegos a valores e tradições. (Atraso cultural no sentido oposto à modernidade e não à cultura erudita). Na verdade, o atraso socioeconômico apenas enxota a cultura tradicional: “Não estando atados a um tradicionalismo camponês, nem a valores de caráter tribal ou folclórico, nada as agrega às suas formas miseráveis de vida” (Ribeiro, 2007, p. 210). Isto se verifica mesmo que na formação da cultura brasileira não vejamos tradições, propriamente ditas, uma vez que nossa história reflete a desagregação dos povos indígenas e o desenraizamento da cultura negra.


O ostracismo do retiro social

A cordialidade se faz entre afago e ostracismo social:

A figura do retirante, celebrado em prosa e verso, inspirou compaixão e algum desprezo, compaixão porque ele era evidentemente infeliz, desprezo por ser um indivíduo inferior, vagabundo e meio selvagem [...] Essa gente prolífica e tenaz, amontoada numa terra pobre, de agricultura rotineira e indústria atrasada, naturalmente vive mal (Ramos, 2005, pp. 186-190).

A cordialidade nordestina não é a mesma, ipsis litteris, da presumida no sul do país. Além da seca e da miséria, há o despotismo dos coronéis que levava os pobres à mendicância e à luta sangrenta. Ainda lemos os subterrâneos da luta da civilização e da organização pública, o avanço do capitalismo contra as tradições e os arcaísmos. A pobreza e a indústria da seca produziram, secularmente, o coronelismo e o mandonismo e seus derivados: a injustiça social, a fome, o crime e a criminalidade social, o cangaço, o êxodo rural.

O POVO também queria reler Teresa Batista Cansada de Guerra ou Capitães de Areia (Jorge Amado, 2003) porque se dizia amargamente, amarguradamente envolvido, enlutado, apaixonado pela personagem — a menina-mulher criara vida após a tristeza do despertar da sexualidade da menina-moça, no estrupo do coronel, e que não passava de valor de uso. Sem a virgindade, perdera o valor de troca. Nesse esforço cultural, o POVO certa vez ficou extasiado, contemplando um quadro muito belo, inusitado, forte e engraçado, em uma exposição que achou por acaso[3]. Era a marca de sua criatividade e só assim sobreviveu, desenvolvendo a cordialidade para não morrer de desgosto.

Este entorno antropológico revela que primeiro contabilizamos o legado da escravidão e os quilombos fomentaram a miscigenação, formando o cafuzo e o mameluco (Norte/Nordeste); depois, o êxodo rural nordestino praticamente concluiu esse processo. Há muito de nordestino em cada um dos brasileiros.

O Povo Nordestino em luta pela sobrevivência, servindo de mão de obra barata para a colonização da região Norte e a urbanização da região Sul, aproximaria as duas “cordialidades”. Há problemas de longa data que herdamos dessa cruzada colonizadora, desde os idos de Portugal, e uma das principais parece ser a estrutura de poder cultural que sempre impingiu aos brasileiros uma perversa dualidade. Temos no interior de nossa cultura uma clivagem quase insolúvel pelos caminhos de mudança tradicionais.

Na alma do Povo Brasileiro, infelizmente, há os que se creem colonizadores/superiores e os que são submetidos à condição cultural, social, econômica de colonizados, inferiorizados. Como se se quisesse que o Povo viesse a se conformar e a acreditar que realmente é inferior em toda a ordem da vida social.

Por isso, uma característica do brasileiro é a baixa entropia cultural, sentindo-se deserdado como migrante em sua própria terra. A febre do ouro sempre provocou uma ânsia por partir. Nossa cultura é de mosaico, nossa vida é de ensaios e nossa alma sempre voa. Como ensinou Sérgio Buarque de Holanda (1995), não fomos habituados a ladrilhar nossas paisagens. O brasileiro é errante no próprio país: Todos prontos a se incorporar a novos modos de vida. Além disso, o espasmo de poder social sempre seria comandado pelo coronel de plantão:

Joaquim Prestes era assim. Caprichosíssimo, mais cioso de mando que de justiça, tinha a idolatria da autoridade. Pra comprar o seu primeiro carro fora à Europa, naqueles tempos em que os automóveis eram mais europeus que americanos. Viera uma “autoridade” no assunto. E o mesmo com as abelhas de que sabia tudo. Um tempo até lhe dera de reeducar as abelhas nacionais, essas “porcas” que misturavam o mel com a samora [...] Mas se mandava nos homens e todos obedeciam, se viu obrigado a obedecer às abelhas que não se educaram um isto (Mário de Andrade,1999 , p. 57 – grifos nossos).

Neste caso, nossa história deveria se enredar em um novo tipo social a que se chama POVO, um misto do todo da cultura, uma simbiose, uma mistura nativa, o resultado da miscigenação melhorada desde Macunaíma. Mas, o Macunaíma era negro e excluído.


A versão de Damatta

Assim, se a República e a democracia são meras ficções, se o que temos é uma situação de total injustiça social, então, o Estado de Direito no Brasil seria revolucionário. Pois, não temos nem mesmo o grau elementar da igualdade perante a lei – ainda é uma prática social e antijurídica a velha expressão: “— sabe com quem está falando?”. Com a expressão, o indivíduo quer afastar justamente a igualdade formal, porque se ele é mais do que os demais, então, supõe-se estar acima da lei. A negação do formal é a principal característica de quem nega o Direito ou segue apenas as leis criadas por si e par si. Será este o sentido dado por Damatta:

Leituras pelo ângulo da casa ressaltam a pessoa. São discursos arrematadores de processos ou situações. Sua intensidade emocional é alta. Aqui, a emoção é englobadora, confundindo-se com o espaço social que está de acordo com ela. Nesses contextos, todos podem ter sido adversários ou até mesmo inimigos, mas o discurso indica que também são ‘irmãos’ porque pertencem a uma mesma pátria ou instituição social. Leituras pelo ângulo da rua são discursos muito mais rígidos e instauradores de novos processos sociais. É o idioma do decreto, da letra dura da lei, da emoção disciplinada que, por isso mesmo, permite a exclusão, a cassação, o banimento, a condenação (Damatta, 1985, p. 16).

Entre a casa e a rua, o doméstico e o oficial, o amigo e o inóspito, o informal e o formal, há um choque institucional, cultural e isso ajuda a entender porque o direito positivo (e também o doutrinário) sempre andou tão distante de nossa história social e política. O brasileiro deixou de ser cordial, como polidez armada para negociar uma relação de troca de favores com o capital, por várias razões: da luta pelo direito, para sair da miséria social em que sempre estivera inserido, ao aumento da criminalidade que expropria a sociedade civil de seus direitos.

Contudo, mesmo com manifestações aqui e acolá de indignação com o dinheiro público, no cotidiano, há enorme complacência com a corrupção, em pequena ou grande envergadura. Prova disso é o fato de que o Ministério Público aprontou cadastro nacional com 32 mil (trinta e dois mil) potenciais candidatos barrados na Lei da Ficha Suja[4]. A cordialidade é um ângulo da ação política racionalista e desprovida de qualquer indício de convivência política ou mínima pacificação social. A cordialidade é a corrupção da política.

Por isso, nossa cordialidade talvez seja uma forma bem refinada por séculos de história cultural da mais famosa hipocrisia, porque escondemos entre a ironia e o cinismo quais são nossas reais intenções. Em suma, o brasileiro não é e nunca foi “bonzinho”; a não ser que seja uma bondade oportunista, uma “bondade-malsã”, à espera de vantagens diante de uma oportunidade ou para se safar de uma contrariedade.

O Estado e o Direito sempre foram feitos, realmente, para um grupo seleto de pessoas – para os demais, para a imensa maioria, restaria a cordialidade ou a violência social que evidencia uma guerra civil:

Segundo o estudo, que se baseia em dados Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde (MS), em 2012, o país registrou 56.337 homicídios, a maior taxa anual no período analisado, de 2002 a 2012 [...] Para o responsável pela análise, Julio Jacobo Waiselfisz, coordenador da Área de Estudos da Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, as políticas para redução das mortes não tiveram o efeito esperado a longo prazo. “Resulta evidente, pelos dados até aqui arrolados, que nas três áreas analisadas [mortes por homicídios, acidentes de trânsito e suicídios] os esforços até aqui dispendidos resultaram insuficientes” (grifos nossos)[5].

Foi nosso particular capitalismo que revogou oficialmente, formalmente a escravidão, mas que expandiu e multiplicou o racismo e o ostracismo social, a exploração das energias sociais e a expropriação da vida e da cultura popular. Cordial vem de “cordis” e tudo acaba em coração, mas no Brasil sempre tivemos outro batimento. Afinal, como é que um povo cordial pode matar 56.337 compatriotas? Pode sim, desde que não sejam considerados cidadãos.


Cordialidade e sociabilidade classista

Pois bem, nem a cordialidade é o que o nome sugere que seja e nem há e nem nunca houve nenhuma democracia racial, porque nossa miscigenação esteve marcada pela violência do estupro das mulheres negras pelos coronéis brancos ou senhores de escravos. Para muitos, talvez o racismo advenha desse sentimento de culpa, desse resquício perverso. De qualquer modo, o mais importante é chamar a atenção não para a escrita das palavras no corpo da lei, no simples texto, mas sim alertar para a sua escritura, para o seu contexto, para o espírito global da lei que se revela pela análise do currículo oculto do legislador.

Principalmente o magistrado, quem sabe até mais do que o legislador, é resultado direto do que leu, mas ainda mais do que viu e viveu. Por isso, é tão necessária essa sensibilidade para o mundo exterior da política, da sociologia, da antropologia e para a vida social; é o que mais o jurista brasileiro precisa ter em conta e sempre presente na consciência. Em outras palavras, buscar a consciência da injustiça sistêmica e sistemática que sempre recobriu as instituições políticas, sociais e jurídicas brasileiras é o que tornaria o Estado de Direito revolucionário no Brasil. Estamos tão distantes que para a integralidade formal do Estado de Direito precisamos ver a existência de preceitos constitucionais elementares: condenar a corrupção da República; reconhecer a existência e a eficácia da lei; anotar a igualdade perante a lei; cumprir com a isonomia e a equidade; não sabotar o espaço público; promover a inclusão e a Justiça Social; contribuir/construir a dignidade humana.

Enfim, neste cadinho de revogação das vontades coletivas, a cordialidade pode ser resumida como um tipo de conscrição cultural, um trecho da colonização que se apropriou das perspectivas do processo civilizatório, com uma cultura e um povo que ora se rebelam, revoltando-se, ora amargam o cinismo e as trocas entre o capital e a dignidade.


Bibliografia

AMADO, Jorge. Capitães da Areia. 110ª ed. Rio de Janeiro : Record, 2003.

ANDRADE, Mário de. Contos Novos. 17ª ed. Belo Horizonte : Rio de Janeiro : Itatiaia, 1999.

CANDIDO, Antônio. O significado de Raízes do Brasil. IN : HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo : Companhia das Letras, 1995, pp. 09-24.

CASTRO, Osório Alves de. Porto Calendário. São Paulo : Livraria Francisco Alves, 1961.

DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. São Paulo : Brasiliense, 1985.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. (2ª edição). São Paulo : Companhia das Letras, 1995.

IANNI, Octávio. A ideia de Brasil moderno. 2ª ed. São Paulo : Brasiliense, 1994.

RAMOS, Graciliano. Linhas Tortas. Rio de Janeiro-São Paulo : Record, 2005.

RIBEIRO, Darcy. As Américas e a Civilização: processo de formação e causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos. São Paulo : Companhia das Letras, 2007.


Notas

[1] http://www.blogdokennedy.com.br/brasileiro-cordial-virou-meio-truculento-diz-barroso/.

[2] A todos esses clássicos deve-se acrescentar o nome do carioca Nelson Werneck Sodré.

[3] De certo modo, POVO será o típico narrador social da cultura continental brasileira, dessa brasilidade que invade a todos. Vimos ocorrer um milagre cultural, por exemplo, com o carinhosamente chamado Velho Osório (Castro, 1961), um alfaiate-escritor que embalou a cultura brasileira desde Marília, interior de São Paulo.

[4] http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2014/05/23/cadastro-com-potenciais-fichas-sujas-ja-tem-mais-de-32-mil-nomes-diz-mpf.htm.

[5] http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2014-05-28/brasil-tem-recorde-na-taxa-de-homicidios-em-2012-diz-mapa-da-violencia.html.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado de direito revolucionário.: Luís Roberto Barroso - sem essa de cordialidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4005, 19 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29124. Acesso em: 22 dez. 2024.

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