Caso bastante peculiar veio a lume naquilo que tange a atenção que nosso Judiciário tem dado aos processos: uma receita de pamonha no lugar de uma jurisprudência, como se lê[1]:
“Senhores julgadores, espero que entendam o que faço nestas pequenas linhas, e que não seja punido por tal ato de rebeldia, mas há tempos os advogados vem sendo desrespeitados pelos magistrados, que sequer se dão ao trabalho de analisar os pleitos que apresentamos. Nossas petições nunca são lidas com a atenção necessária. A maior prova disso, será demonstrada agora, pois se somos tradados como pamonhas, nada mais justo do que trazer aos autos a receita desta tão famosa iguaria. Rale as espigas ou corte-as rente ao sabugo e passe no liquidificador, juntamente com a água, acrescente o coco, o açúcar e mexa bem, coloque a massa na palha de milho e amarre bem, em uma panela grande ferva bem a água, e vá colocando as pamonhas uma a uma após a fervura completa da água, Importante a água deve estar realmente fervendo para receber as pamonhas, caso contrário elas vão se desfazer. Cozinhe por mais ou menos 40 minutos, retirando as pamonhas com o auxílio de uma escumadeira (sic)”.
Isso vem tomando repercussão e muitas pessoas têm trazido seu ponto de vista – fundamentado ou meramente opinativo. Alguns questionam o fato de o processo ter sido extenso o que inviabilizaria a leitura, tendo em vista o volume de trabalho concentrado nas mãos dos magistrados – o que é inquestionável. Outros apontam para a necessidade de se fixar um número máximo de laudas para os pleitos, esbarrando naqueles que creem haver impossibilidade de fazer tal limitação, pela própria complexidade exigida em certos casos. Outros ainda são mais agressivos e não economizam em críticas, tanto para a classe dos advogados que, supostamente, estaria se rebaixando ao adotar tal postura, quanto a dos juízes, que não estariam fazendo jus ao cargo que ocupam. Ainda há aqueles que enveredam seu discurso na falta de objetividade e no excesso de procrastinação, complementados por aqueles que atestam não haver sequer essa objetividade entre os operadores do Direito. Mesmo que fosse falsa a notícia, inúmeras são as observações (e implicações) acerca desse polêmico acontecido. Então, como agir?
Haveria um número ideal de páginas?
Por um lado seria interessante fixar um limite, retirando o pretexto de demasia, contudo engessaria casos singulares, merecedores de atenção detalhada, seja pela extensão do dado, pelo ineditismo ou qualquer outra razão. Além disso, se a necessidade de normatização e limitação for vir a calhar para todo procedimento – por mais simples que seja –, haverá deveras uma receita de bolo em cada canto e a espontaneidade perderá espaço para a robotização.
Existe mesmo essa questionada objetividade? Poder-se-ia dizer que ela viria ratificar o princípio constitucionaL da eficiência[2], mas até onde isso é verdade?
Esbarra aí um tema controverso e de difícil destrinchamento. Porcentagem expressiva das pessoas com curso superior, no Brasil, enquadra-se no analfabetismo funcional, ou seja, consegue até ler e escrever, no entanto sem capacidade de compreensão e interpretação. Isso favorece a necessidade, cada vez maior, de reforçar o simplismo das peças processuais, empobrecendo e reduzindo uma língua tão rica a apenas vocábulos mais corriqueiros ou “neologizados”; ou possibilitar rodeios – extensos e infrutíferos – para se atingir o ponto desejado.
A linguagem descomprometida, informal, e até desrespeitosa, tem extravasado para as peças jurídicas, como se vê exemplificado nos seguintes fragmentos, cujas fontes serão preservadas:
“... não houve relação sexual, por inocorrer tchaca tchaca na butchaca...”; ou
“... a bem fundamentada exordial não alcançou o tchan da verdade...” (grifou-se).
Do lado oposto, não se espera haver entre os operadores do Direito um espelhamento no estilo dos escritos de Machado de Assis, Eça de Queiroz, Camões, Padre Vieira. O que se espera é uma valorização da língua, sem uma exploração exagerada e desconexa de seus termos.
Pode-se sim dizer tudo sem falar muito.
“Se é muito longo, estou enchendo linguiça; se é muito curto, está sem fundamento”, o que fazer nesse caso?
É impossível, como afirmam alguns, que os juízes tenham plena ciência de todos os julgados acerca do tema, muito embora com vasta experiência em determinados assuntos[3]. Estes com a possibilidade de vir recheados de variações e tipificações próprias, estando sempre fundados em uma tentativa de assegurar os direitos de uma parte que se sente lesada.
Deve assim, o advogado que fundamenta o pleito, poder navegar pelo mar de possibilidades que desejar para o convencimento do juiz, conforme se dimana do § 2º, art. 2º, da lei que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Ao advogado, cabe a circunscrição da causa, com a maior concisão possível, sem o sacrifício de questões indubitavelmente relevantes. Caberá, consequentemente, ao juiz o indeferimento das diligências inúteis ou meramente protelatórias (art. 130, Código de Processo Civil – CPC), competindo-lhe velar pela rápida solução do litígio (art. 125, CPC). Isso não ocorrendo, deverá ser respeitada a amplidão do direito de defesa (art. 5º, LV, CF/88)[4].
OS ADVOGADOS ERRAM AO TENTAR DESMORALIZAR O JUDICIÁRIO?
O ato não merece um julgamento externo que exponha severidade além da que reclama a situação, mesmo porque, na senda pessoal, nada impede (e tudo indica) se tratar de situação estrutural que vem corporificando um descontentamento generalizado. Isso não ocorre apenas nos tribunais e casas legislativas, mas vem sendo observado em todos os setores – comércio, telemarketing, prestação de serviços autônomos, serviços terceirizados. Descrença geral, revolta certa.
Não fica, com isso, justificada qualquer atitude desrespeitosa. Inclusive, sob a ótica do art. 2º, do Código de Ética e Disciplina da OAB, poderia tal feito ser interpretado por algumas vertentes:
- Amparando-se no inciso V - contribuir para o aprimoramento das instituições, do Direito e das leis:
Tanto benéfico, quanto prejudicial. Benéfico, porque estaria chamando atenção para situação recorrente na condução processual, o que forçaria uma mudança de postura. Por outro lado, prejudicial por desmoralizar uma classe de singular importância para a sadia administração da justiça (cf. art. 1º, do Magistratura">Código de Ética da Magistratura Nacional; e Capítulo III, Seção I, CF/88), tal como o é o advogado (cf. art. 1º, do Código de Ética e Disciplina da OAB; e art. 133, CF/88).
- Com base no inciso II - atuar com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé:
O advogado agiu, sem dúvida, com destemor, intentando publicizar o caso que já foi observado, semelhantemente, em outros julgados. Também agiu com independência para buscar a melhora estrutural, hodiernamente, tão criticada e desacreditada. Na contramão, o decoro cai na situação comentada anteriormente, qual seja a desmoralização de outra classe. Em se tratando da boa-fé e honestidade, a interpretação de sua conduta – abrindo-se uma chave dicotômica – levaria para uma ação com a intenção otimizadora ou, tão somente, movida pelo descrédito e descaso, o que abriria margem para ferir sua reputação profissional (art. 2º, III, do Código de Ética em comento).
Poderia se considerar que erram os advogados no momento em que tentam desmoralizar qualquer que seja a esfera, porque não se converge com seu dever ético. Não significa que um ato chamativo, como o em tela, por si só, tenha essa intenção desmoralizadora. Outras variáveis devem ser sindicadas para conclusões desse jaez.
OS JUÍZES ESTÃO CADA VEZ MAIS RELAPSOS?
Sabe-se que as atribuições conferidas aos magistrados – como dito anteriormente – podem exorbitar do seu limite de atuação, além do fato de que sobressaem processos esdrúxulos que atravancam a celeridade de outros cujos pedidos são de extrema importância e urgência. Muitas vezes, os juízes têm nas mãos, como exemplo, a decisão sobre uma intervenção cirúrgica imediata, a demolição de empreendimentos, o desabrigo de cidadãos.
Diversos são os magistrados descomprometidos com a profissão que ocupam e com a demanda daqueles que elaboram suas súplicas, mas seria a maior de todas as injustiças totalizá-los, já que a classe goza de profissionais excepcionais, e que acabam não ganhando a mídia por se tratarem de cumpridores fiéis de seus deveres – o que não é motivo de exaltação, porque deveria ser o normal.
Tanto é verdade o exarado, que se expõe, a seguir, o despacho da Ministra Nancy Andrighi, quando deparada com uma receita de risoto em meio aos autos[5]:
“Faculto aos advogados que subscreveram a petição de desistência o desentranhamento do documento de fl. 601, e-STJ (uma receita de risoto), pois o mesmo não integra e nem tem relação com o presente processo.”
Nota-se, pelo emprego do verbo (facultar), uma postura educada e cortês por parte da ministra – atenta ao Capítulo VII, do Código de Ética da Magistratura Nacional.
Sem entrar no mérito – muito menos generalizar –, outro ponto relevante se encontra nos Tribunais Estaduais carecem de contratações com maiores exigências de qualificação, ao revés do que se dá com o Poder Judiciário Federal – um fator que pode desaguar em menor envergadura dos auxiliares do juízo (o que não é necessariamente verdade). Porém isso está longe de significar que no âmbito federal não ocorra o mesmo, resultando em eventuais descasos na leitura de autos, como destacado no artigo “Leia meu processo: é o que o povo clama!”[6].
Ler processo implica melhor munir o juiz para arguição das partes e testemunhas; fixar pontos controvertidos da demanda (art. 331,§ 2º, CPC); fundamentar sua sentença com exatidão, aplicando a lei aos fatos existentes (art. 131, CPC), jamais tergiversando. Ser juiz, portanto, é não abrir mão da imparcialidade, da independência, do esmero profissional e funcional, da prudência, dentre outros nobres predicamentos[7].
Do outro lado está, além de uma infinidade de atributos, a parcialidade do advogado (por estar representando uma parte), que não a deve utilizar como meio para mero atingimento do objetivo. O resultado de sua ação jamais haverá de apartar-se da legalidade, da moralidade e da ética (art. 14, CPC).
Vale frisar que “ninguém prestou concurso para ser juiz, a não ser o próprio magistrado” – nas palavras de uma juíza do trabalho. Excluem-se assim as afamadas teorias de assessorcracia e estagiariocracia, porque toda delegação que extrapolar os limites do art. 93, XIV, da Carta Primaveril são inconstitucionais.
Considera-se, ainda, o destaque dado por Lenio Luiz Streck[8], quando traça uma crítica à onda que incute e incita o mergulho dos juízes no universo da gestão e relaxa sua atenção para a doutrina, jurisprudências e o estudo, de uma forma geral, como se tudo fosse questão de aprender otimizar a circulação e o julgamento das pilhas de documentos que se acumulam constantemente. O juiz, como afirma o autor, deve ter um conhecimento substancioso, afinal é o mínimo que se espera daquele que julgará uma causa.
Nesse viés, discute-se a ideia do Banco de Sentenças – amigável a uns, perigosa a outros. Por um lado, daria chances para favorecer a celeridade dos julgamentos, no entanto seu uso indiscriminado gera uma frieza e um distanciamento com os casos particulares, ficando cada vez mais maquinal. Eficiência – muito materializada na velocidade das respostas – é um fator que todo aquele que tem uma causa em curso espera, e para se atingí-la o magistrado não pode olvidar ou malbaratar os outros princípios.
Assim sendo, tal como os advogados que erram quando com clara intenção de desmoralizar, os juízes não fazem diferente ao delegarem competências a estagiários ou assessores – mesmo que o volume de trabalho seja além da conta –; ao não lerem as peças processuais por estarem extensas, cheias de citações ou por carecerem delas – vide exemplo da Ministra Nancy Aldrighi –; ao buscarem agilizar o processo para cumprir uma cota que muito pouco reflete a qualidade e, sem dúvida, causa prejuízos aos diretamente interessados (inclusive e principalmente aos próprios magistrados).
E, também retomando a comparação com a classe dos advogados, os juízes apresentam-se como ferramentas imprescindíveis à movimentação da máquina pública.
Considerações finais
O caso da pamonha, do risoto, de receitas de bolo ou qualquer que seja a iguaria, pode parecer brincadeiras, entretanto não é. Trata-se de triste realidade, onde fica revelada a fragilidade de um sistema como um todo. Criticar um juiz relapso, atacar um advogado insolente ou culpar um sistema e utilizar isso como generalidade é, no mínimo, ingenuidade ou frivolidade. O que não é justificativa para se calar ante a impunidade.
Cabe ao advogado fazer seu papel, seguindo os princípios de ética que regulam sua atividade. Da mesma forma os juízes. Ambos[9] têm o dever de ir além, no que tange a moralidade. Mesmo havendo enorme beleza nos textos legais (no campo real ou abstrato), eles ainda não conseguem encerrar todo o potencial que dispõe o ser humano para sua expressão de “o bom proceder”. Esse potencial serve sempre como norte para qualquer um que almeje desenhar uma história digna e coerente. Não é tudo que se resume a lei, embora tudo o que a subverta deva ser devidamente julgado e pertinentemente qualificado.
Mudar leis não melhora pessoas, educação sim. Mudar leis não constrói seres humanos, educação sim. Educação é apontada como a salvadora de um sistema adoecido, contudo até se dar seu atingimento pleno, cada indivíduo necessita percorrer um caminho que ultrapassa qualquer normativa social. Uma pamonha bem feita requer tempo, tempero e dedicação, tudo na medida exata. Não é diferente com o ordenamento jurídico e com aqueles que o controlam.
A crítica, pura e simples, chega a ser um vício, principalmente com a facilidade tecnológica e o acesso à informação que se tem na atualidade, mas é tão negativa quanto o objeto criticado (quando pertinente). As soluções já fogem desse caminho, por requererem conhecimento mais aprofundado, estudo do assunto e dedicação, bem como tempo para sua elaboração. Eis aí uma das razões de as soluções serem muito pouco vistas, ao contrário das críticas. Só erra quem crê em o problema estar fora, quando na verdade sempre esteve dentro, mesmo que os olhos tentem iludir do contrário.
Notas
[1] Pires. J. Advogado escreve receita de pamonha na petição para provar que juiz não lê os autos. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/topicos/27449386/receita-de-pamonha. Acesso em: 03/06/2014.
[2] O art. 37 da Carta da República coloca tal princípio como sendo inerente a toda Administração. Em especial, no campo do Judiciário, tal cânone foi elevado a um pilar de direito fundamental, como expresso no art. 5º, LXXVIII: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)”.
[3] Em que pese a consolidação do princípio iura novit curia, na contemporaneidade, mormente a pletora legislativa, isso não é (mais) verdadeiro. Expandindo-se o mesmo entendimento, a temática controvertida não se limita ao Judiciário, como expresso no art. 3º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, cujo alcance é humanamente impossível.
[4] A preocupação, nesse tocante, reside na morosidade que se tem observado atualmente no curso processual – a chamada taxa de congestionamento no trâmite dos feitos.
[5] Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/despacho-receita-risoto.pdf. Acesso em: 04/06/2014.
[6] Publicada em 10 de fevereiro de 2012, na revista eletrônica Jus Navigandi, onde ficou expresso o descaso por parte de dois juízes federais – resultante, no mínimo, pela falta de prudência (Capítulo VIII, do Código de Ética da Magistratura Nacional).
[7] O juiz está obrigado a cumprir a lei com exatidão (art. 35, I, Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979 – LOMAN).
[8] Juiz não é gestor nem gerente. Ele deve julgar. E bem! Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-ago-08/senso-incomum-juiz-nao-gestor-nem-gerente-juiz-julgar-bem#_ftn1_5044. Acesso em: 04/06/2014;
[9] Não há hierarquia entre eles, embora os magistrados tenham o dever de presidir a condução processual (cf. art. 6º, Lei nº 8.906, de 04 de julho de 1994 – Estatuto da Advocacia), tal como ocorre em uma presidência de comissão, que não torna o presidente superior aos demais membros.