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A nova Lei de Acesso à Informação e o direito fundamental à privacidade nos casos de divulgação individualizada e nominal dos rendimentos dos servidores públicos

01/09/2014 às 14:33
Leia nesta página:

Defende-se a publicação da remuneração do servidor apenas com sua matrícula funcional, sem nome, como forma de preservar a privacidade.

INTRODUÇÃO

A colisão entre o Princípio da Informação e o Princípio da Privacidade é algo bastante recorrente na realidade brasileira. Caberá ao Poder Judiciário, no caso concreto, verificar qual deles será preponderante, a partir de uma ponderação de interesses.

É neste contexto que se pretende analisar a Lei n.º 12.527/11, assim como o Decreto que a regulamenta, Decreto n.º 7.724/12, no que se refere a obrigatoriedade de se deixar à disposição de todos informações acerca dos rendimentos dos servidores públicos de forma nominal e individualizada.

De antemão, defende-se que tal obrigatoriedade fere preceitos insculpidos em nossa Carta Magna, como a intimidade e a vida privada dos indivíduos. Muito embora a Lei de Acesso à Informação tenha um objetivo nobre, que é o de consolidar a democracia pela efetiva participação popular, além de assegurar a moralidade administrativa, não se pode aceitar que a divulgação da remuneração dos servidores públicos esteja relacionada à supremacia do interesse público sobre o interesse particular.


ASPECTOS GERAIS SOBRE A LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO

A nova Lei de Acesso à Informação (LAI), também conhecida por Lei da Transparência Pública, constitui um avanço para o Princípio da Publicidade. Ela entrou em vigor no dia 16.05.2012, regulamentando o acesso a informações previsto em alguns dispositivos da Constituição Federal. Em seu art. 1º, é elencado o rol daqueles que estão submetidos à referida lei. Veja-se:

Art. 1.º Esta Lei dispõe sobre os procedimentos a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com o fim de garantir o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5.º, no inciso II do § 3.º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal.

Parágrafo único. Subordinam-se ao regime desta Lei:

I – os órgãos públicos integrantes da administração direta dos Poderes Executivo, Legislativo, incluindo as Cortes de Contas, e Judiciário e do Ministério Público;

II – as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Distrito Federal e Municípios.

As empresas públicas e as sociedades de economia mista que exerçam atividades econômicas não estão submetidas à publicidade decorrente da citada lei, em virtude do seu caráter competitivo o que faz necessário que determinadas informações e técnicas produtivas permaneçam em sigilo. E as entidades privadas sem fins lucrativos que recebem recursos públicos, somente estão submetidas a esta lei no que se refere a estes recursos.

Esta Lei estabelece normas gerais sobre o acesso à informação. O Decreto n.º 7.724 já regulamentou a Lei da Transparência Pública no âmbito do Poder Executivo federal, cabendo aos Estados e aos Municípios também regulamentá-la no que diz respeito às suas especificidades regionais e locais.

 É evidente que a Lei n.º 12.527/11 solidifica a democracia em nosso País, garantindo o direito de todos ao acesso de informações sob o domínio do Poder Público. Porém, esse acesso não é irrestrito, sendo permitido somente o daquelas informações que não sejam ultrassecretas, secretas ou reservadas, conforme prescreve o seu art. 23:

Art. 23. São consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam:

I – pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional;

II – prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País, ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais;

III – pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população;

IV – oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País;

V – prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas;

VI – prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional;

VII – pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; ou

VIII – comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou de fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção com a prevenção ou repressão de infrações.

A Lei n.º 12.527/11 não faz qualquer alusão à obrigatoriedade de se divulgar a remuneração individualizada e nominal dos servidores públicos. O Decreto n.º 7.724/12 foi que, no intuito de garantir a moralidade administrativa, previu de forma equivocada a necessidade da referida divulgação. É o que se entende da leitura do seu inciso VI, § 3.º, art. 7º:

Art. 7o  É dever dos órgãos e entidades promover, independente de requerimento, a divulgação em seus sítios na Internet de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas, observado o disposto nos arts, 7º e 8º da Lei nº 12.527, de 2011.

(...)

§ 3o  Deverão ser divulgadas, na seção específica de que trata o § 1o, informações sobre:

(...)

VI - remuneração e subsídio recebidos por ocupante de cargo, posto, graduação, função e emprego público, incluindo auxílios, ajudas de custo, jetons e quaisquer outras vantagens pecuniárias, bem como proventos de aposentadoria e pensões daqueles que estiverem na ativa, de maneira individualizada, conforme ato do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão;

Data venia, o referido Decreto fere o direito fundamental à intimidade e à vida privada ao fazer tal exigência, pois permite a exposição de dados pessoais na rede mundial de computadores, Internet. Isso ficará mais claro no tópico seguinte.


DIREITO FUNDAMENTaL À PRIVACIDADE 

O direito fundamental à privacidade está previsto no inciso X do art. 5º da Constituição Federal. Veja-se:

Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Do exposto no caput e no inciso do artigo transcrito anteriormente, decorre que todas as pessoas devem ser tratadas de maneira igual. Então, da mesma forma que o empregado do setor privado não deseja que a sua remuneração seja averiguada por todos, ferindo a sua privacidade, o servidor público também possui o mesmo direito.

O conceito de privacidade é algo extremamente complexo, pois, assim como diversos outros institutos jurídicos, vai depender de um juízo de valor relacionado ao âmbito pessoal do indivíduo, é algo relacionado à sua dignidade humana. Para George Marmelstein (2009, p. 115):

“A ideia básica que orienta a positivação desses valores é a de que nem o Estado nem a sociedade de modo geral devem se intrometer, indevidamente, na vida pessoal dos indivíduos. Inserem-se, nesse contexto, inúmeras prerrogativas de caráter individual-subjetivo, como o direito de buscar a paz de espírito e a tranquilidade, o direito de ser deixado só (direito ao isolamento), o direito de não ser bisbilhotado, de não ter a vida íntima e familiar devassada, de não ter detalhes pessoais divulgados, nem de ter a imagem e o nome expostos contra a vontade da pessoa”.

Muito embora a publicização dos gastos públicos, inserido neste contexto a receita despendida com o pagamento da remuneração dos servidores públicos, seja uma forma de garantir o interesse social na medida que torna efetivo o princípio da moralidade administrativa, a forma como está ocorrendo, de forma individualizada e nominal, fere o direito fundamental à intimidade e à privacidade.

Para Luiz Roberto Barroso, o direito à intimidade e à privacidade são direitos subjetivos, isso é, ligados à personalidade. Assim sendo, são inalienáveis e irrenunciáveis. Veja-se:

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”De forma simples, os direitos à intimidade e à vida privada protegem as pessoas na sua individualidade e resguardam o direito de estar só. A intimidade e a vida privada são esferas diversas compreendidas em um conceito mais amplo: o de direito de privacidade. Dele decorre o reconhecimento da existência, na vida das pessoas, de espaços que devem ser preservados da curiosidade alheia, por envolverem o modo de ser de cada um, as suas particularidades. Aí estão incluídos os fatos ordinários, ocorridos geralmente no âmbito do domicílio ou em locais reservados, como hábitos, atitudes, comentários, escolhas pessoais, vida familiar, relações afetivas. Como regra geral, não haverá interesse público em ter acesso a esse tipo de informação”.

Certas informações pessoais somente ficam restritas ao seio do âmbito familiar; o contracheque dos trabalhadores é uma delas. A divulgação da remuneração individualizada e nominal dos servidores públicos coloca em risco a sua segurança, uma vez que podem ser alvos mais fáceis de roubos ou sequestros; deixa a vida privada do dito servidor público a mercê da intromissão de curiosos; além de ferir sua dignidade, uma vez que expõe sua intimidade.

José Afonso da Silva (2007, p. 209) ensina que:

O intenso desenvolvimento de complexa rede de fichários eletrônicos, especialmente sobre dados pessoais, constitui poderosa ameaça à privacidade das pessoas. O amplo sistema de informações computadorizadas gera um processo de esquadrinhamento das pessoas, que ficam com a sua individualidade inteiramente devassada. O perigo é tão maior quanto mais a utilização da informática facilita a interconexão de fichários com a possibilidade de formar grandes bancos de dados que desvendem a vida dos indivíduos, sem sua autorização e até sem seu conhecimento.

É possível garantir o escopo da Lei em comento, que é o de garantir a moralidade administrativa, proporcionando a transparência dos gastos públicos, sem que haja o desrespeito à privacidade do servidor público. Para tanto, basta que se desvincule a remuneração recebida ao nome do respectivo servidor.


CONCLUSÃO

Conforme buscou-se demonstrar, a obrigatoriedade da divulgação da remuneração nominal e individualizada dos servidores públicos, na rede mundial de computadores, fere o princípio da dignidade humana, uma vez que enfraquece os direitos fundamentais à intimidade e à vida privada.

Em nenhum momento se criticou a Lei de Acesso à Informação, pelo contrário, acredita-se fielmente tratar-se de uma lei que fortalece o sistema democrático, devido ao incentivo de uma maior participação popular, além de se efetivar direitos previstos em dispositivos da Constituição Federal, a exemplo do inciso XXXIII do art. 5.º, do inciso II do § 3.º do art. 37 e do § 2º do art. 216. E mais, acredita-se que, tanto esta Lei quanto o seu respectivo Decreto Regulamentar, Decreto n.º 7.724/11, são indispensáveis para a real concretização do princípio constitucional da moralidade administrativa.

Para que a transparência dos recursos públicos seja alcançada sem pôr em risco o direito fundamental à privacidade dos servidores públicos, são defendidas formas alternativas de divulgação dos gastos concernentes à remuneração de tais agentes. Como exemplo, cita-se a vinculação da remuneração à matrícula funcional do servidor público, dessa forma, seria de conhecimento de todos quanto um servidor “x” de um Ente da Administração Pública Direta ou Indireta “y” aufere, mas sem identificar nominalmente o referido servidor público.


REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios de Ponderação. Interpretação Constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo. Nº 36, 2001.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2011.

MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2009.

MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 7ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2013

MEIRELLES, Hely Lopes; ALEIXO, Delcio Balestro; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito Administrativo Brasileiro. 38ª ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2012.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007. 

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Sobre o autor
Fabrício Cardoso de Meneses

Procurador Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENESES, Fabrício Cardoso. A nova Lei de Acesso à Informação e o direito fundamental à privacidade nos casos de divulgação individualizada e nominal dos rendimentos dos servidores públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4079, 1 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29364. Acesso em: 21 dez. 2024.

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