Juridicização do afeto.

Responsabilidade civil pelo abandono afetivo na relação filial?

10/06/2014 às 11:14
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Faz-se um breve histórico sobre a evolução do conceito de família, tratando das mudanças dos paradigmas das relações familiares que passam da biologia para o afeto. Para melhor elucidar tais mudanças, discorre-se sobre o valor jurídico do afeto nas entidades familiares contemporâneas. Destaca-se o entendimento de que o afeto figura como um postulado normativo e não como um princípio jurídico. Apresenta-se um panorama geral do instituto da Responsabilidade Civil no Direito de Família atrelada a uma abordagem mais específica e detalhada da admissibilidade da reparação civil pelo abandono afetivo na relação filial. Para tanto, faz-se uma análise apurada das principais correntes doutrinárias que disciplinam sobre a possibilidade de se admitir a reparação civil pelo abandono afetivo, bem como as correntes contrárias, que entendem pela impossibilidade da incidência da responsabilidade civil nos casos referentes às relações afetivas. Em seguida, faz-se uma abordagem das recentes decisões jurisprudenciais acerca da matéria em questão. Conclui-se o presente trabalho com o entendimento de que a incidência do fenômeno da responsabilidade civil é plenamente possível de ser aplicado às relações familiares, contudo, há que se observar as peculiaridades dessas relações, tendo em vista que possuem o elemento afetivo como diferenciador das demais relações jurídicas

             1 DA BIOLOGIA PARA O AFETO – MUDANÇAS DOS PARADIGMAS NAS RELAÇÕES FAMILIARES

Não restam dúvidas de que a família, enquanto agrupamento humano, constitui a mais importante base estruturante da sociedade.
É no seio familiar que toda a dinâmica social se inicia, onde se processam todos os fatos elementares da vida do ser humano, motivo pelo qual deva ser considerada como estrutura básica social A origem da família tem sua raiz na necessidade que o ser humano tem em agregar-se e conviver com seus iguais. Além de ser uma forma de proteção do grupo, há também o instinto de perpetuação da espécie .
Algumas composições familiares obtiveram maior destaque, inclusive, influenciando de forma enfática o direito da época e a organização atual das famílias modernas.
Assim se deu com a família romana organizada sob o princípio da autoridade. Em Roma, era tida como família aquele conjunto de pessoas que se submetiam ao "patrio potestas". Ela era, concomitantemente, uma unidade religiosa, política, econômica e jurisdicional .
Fustel de Coulanges afirmava que a família primordial tinha como base o afeto natural e não apenas a geração, contudo, com o direito greco-romano, essa afeição deixou de ser relevante. O afeto, portanto, poderia existir, mas nada representava em direito.
O Direito moderno revestiu a família de outras características, substituindo o princípio da autoridade, mitigando o “pater potestas”, que fundamentava uma sociedade autocrática, por uma concepção mais democrática das relações familiares. O pátrio poder passou a ser entendido com um poder familiar, ou melhor, um poder-dever.
O Direito de Família passou por uma mudança estrutural; de uma concepção biológica para uma concepção cultural ou afetiva. O Direito de Família, encontra-se, pois, em sua fase pós-moderna , pautado no afeto, não mais os critérios biológicos até então adotados para identificar o vínculo familiar.
A Constituição Federal de 1988  apresenta, por sua vez, uma pluralidade conceitual para a família, passando a tratar a família em capítulo específico e interpretando-a à luz do garantismo. 
Assim, a família seria um meio de promoção da pessoa e não a finalidade em si mesma. Dessa forma, “não há mais proteção à família pela família, senão em razão do ser humano” .

1.1  O AFETO COMO ELEMENTO ESTRUTURAL DA FAMÍLIA

Os paradigmas familiares passaram por profundas transformações nos últimos anos e continuam em constante processo de modificação. Os institutos familiares ganharam mais autonomia ao abarcar o afeto como elemento indispensável às relações familiares.
Nesse momento, então, prospecta-se o conceito de família para o direito, traçando os contornos da evolução histórica e mudança de paradigma do direito de família no Brasil em face do que se tem denominado de “princípio da afetividade”.
Para Rolf Madaleno, “o afeto é a mola propulsora dos laços familiares e das relações interpessoais movidas pelo sentimento [..]” , de modo que os traços sanguíneos não necessariamente estão acima dos laços afetivos. Podendo estes, inclusive, se sobrepor àqueles.
Hoje, o que se observa é a família com instrumento, não mais família como instituição. Ou seja, a família, nesses novos moldes, existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade dos seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado.
A entidade familiar deve ser compreendida, em sua essência, como grupo social estruturado nos laços de afetividade, tendo em vista ser esta a única leitura constitucional que poderá ser feita nessa fase pós-moderna do Direito de Família.

1.2  O AFETO COMO VALOR JURÍDICO TUTELÁVEL

Por oportuno, cumpre indagar: o afeto seria um bem jurídico tutelado pela Constituição?
A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente  acolheram a doutrina da proteção integral. As crianças e adolescentes foram resguardadas de todas as formas de negligência. Foram transformadas em sujeitos de direitos sendo contempladas com uma série de garantias e prerrogativas. Para tanto, a Constituição atribuiu à família, à sociedade e ao Estado a responsabilidade para dar efetividade a todas as garantias e prerrogativas asseguradas.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em capítulo que versa sobre o direito à convivência familiar, no art. 19, dispõe que toda criança tem direito de ser criada e educada no seio da sua família. Sendo-lhe assegurada a convivência familiar e comunitária .
Entende Maria Berenice Dias, que tal diploma legal centra no afeto o elemento agregador do conceito atual de família. Assim, a convivência dos filhos com os pais deveria ser encarada como um dever, não um direito. De modo que a guarda compartilhada e o direito de visita não seriam direitos dos pais, mas uma obrigação.
Na hipótese de inadimplemento desse dever de convívio, quando o filho fosse privado da companhia dos pais, os danos emocionais sofridos pela criança em face desse “abandono” seriam merecedores de indenização.                        
Nessa mesma linha de pensamento, pondera Ana Karina Fragoso que o afeto deveria ser considerado como um elemento a ser revestido por uma tutela jurídica, pois integra relevante aspecto no desenvolvimento sadio das crianças.
Assim, já há posicionamentos como estes que defendem o afeto como valor jurídico tutelável. Contudo, por outro turno, também há quem se posicione de modo contrário, como Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald, Walsir Rodrigues Júnior e Renata Barbosa de Almeida. Estes doutrinadores seguem o entendimento de que o afeto, apesar de ser um elemento de extrema relevância no direito de família, é desprovido de uma exigibilidade jurídica. “Isto por conta do seu inescondível caráter de sentimento humano espontâneo”. Dessa forma, concluem que o afeto, embora seja um elemento inerente às relações familiares e de grande relevo para as decisões judiciais sobre questões que versem a respeito dos relacionamentos familiares, é um elemento “insuscetível de ser entendido como um valor jurídico exigível através do Poder Judiciário, sob pena de martirizar a sua própria essência espontânea”.
O afeto não deve ser exigido juridicamente, pois o valor jurídico da afetividade suplanta a questão do ressarcimento pelo dano afetivo. Esse valor, já incorporado pelo sistema, ultrapassa a visão patrimonial, abrindo espaço para mudanças relevantes no ordenamento. Um exemplo disso é que, como valor incorporado ao sistema jurídico, o legislador já entendeu que o afeto permite a filiação socioafetiva, possibilitando o acréscimo do sobrenome do padrasto/madrasta ao enteado, conforme a estabelece a Lei nº 11.924. Outro exemplo que merece destaque é a Lei nº 12.398/11 que garante o direito de visita dos avós, reconhecendo o vínculo de afeto entre avós e netos.
Sendo assim, o valor jurídico do afeto não deveria ser pensado apenas como um valor jurídico exigível e, portanto, passível de ser objeto de indenização. Deve ser visto como um valor do sistema jurídico como um todo, independente da questão indenizatória.

2 FAMÍLIA COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO DA PESSOA HUMANA

A Constituição Federal estabelece a família como a base da sociedade e, portanto, merecedora de especial proteção do Estado. Afirma ainda que a família tem por fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana, paternidade responsável, planejamento familiar, dentre outros. 
Os princípios são normas de grande relevância para o ordenamento jurídico, na medida em que estabelecem fundamentos normativos para a interpretação e aplicação do Direito, deles decorrendo normas de comportamento.
O Direito de Família apresenta uma principiologia muito particular em virtude das peculiaridades atinentes às relações familiares. Não haveria outra maneira a não ser pensar em um subsistema jurídico informado por princípios próprios, como o melhor interesse da criança e sua proteção integral. 
Deve-se reconhecer, também, a necessidade da constitucionalização do Direito de Família, pois os princípios constitucionais irradiam por todos os ramos do direito.
Dentre todos os princípios constitucionalmente consagrados, voltamos o olhar com maior atenção ao princípio que se convencionou chamar de “princípio da afetividade”.

2.1 PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE (?)

“O afeto é a mola propulsora dos laços familiares e das relações interpessoais movidas pelo sentimento e pelo amor, para ao fim e ao cabo dar sentido e dignidade à existência humana”.
A afetividade se torna mais evidente nas composições familiares espontaneamente constituídas. Flávio Tartuce defende, inclusive, que de tão solidificada na sociedade, a afetividade constitui um “código forte” no Direito contemporâneo, gerando mudanças na forma de se pensar a família.
Para Maria Berenice Dias, apesar de a palavra “afeto” não constar no texto constitucional, ao elencar um extenso rol de garantias e direitos individuais como forma de promover a dignidade e a igualdade de todos, o Estado estaria atraindo para si o compromisso de assegurar o afeto. Deste modo, o primeiro obrigado a assegurar o afeto seria o próprio Estado.
Assim, ao reconhecer e tutelar novas formações familiares, a exemplo da união estável, o Estado estaria constitucionalizando um modelo de família abalizado no afeto e na realização pessoal.   
Compartilhando do mesmo entendimento, Paulo Luiz Netto Lôbo ensina que “o princípio da afetividade é fato jurídico-constitucional, pois é espécie do princípio da dignidade da pessoa humana e emerge das normas acima referidas, que o sistematizam” .
Ressalta ainda, o referido autor, a mudança dos paradigmas quanto as limitações biológicas do vínculo familiar.
Assim, entende que
"O modelo tradicional e o modelo científico partem de um equívoco de base: a família atual não é mais, exclusivamente, a biológica. A origem biológica era indispensável à família patriarcal, para cumprir suas funções tradicionais. Contudo, o modelo patriarcal desapareceu nas relações sociais brasileiras, após a urbanização crescente e a emancipação feminina, na segunda metade deste século. No âmbito jurídico, encerrou definitivamente seu ciclo após o advento da Constituição de 1988 [...] a filiação biológica não é mais determinante, impondo-se profundas transformações na legislação infraconstitucional e no afazer dos aplicadores do direito [...]. Em suma, a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo."

Pois bem, o afeto assume com a Constituição de 1988 papel de destaque como principal fundamento das relações familiares. A valorização constante da dignidade da pessoa humana conduziu a família “no sentido da desbiologização da paternidade, reconhecendo, assim, o vínculo socioafetivo como sendo preponderante ao vínculo biológico [...]”.
Observe que o afeto sempre foi e continua sendo um elemento presente quando se trata de família e relacionamentos familiares, nos seus mais diversos arranjos e composições.
Ocorre que, com a constitucionalização de direitos, o afeto foi elevado ao patamar de elemento estruturante das relações familiares, originando, por si só, consequências no plano do direito.
Com o princípio da dignidade da pessoa humana servindo como fundamento da ordem constitucional, a afetividade passa a ser compreendida como um fato jurídico stricto senso, visto que pode ser percebida no plano real dos acontecimentos – mundo do ser.
Dessa maneira, a eventual exteriorização da afetividade faz desencadear efeitos jurídicos que não devem ser omitidos ou desconsiderados pelo Direito.
Essa exteriorização do afeto não é difícil de ser percebida, basta observar o crescente número de arranjos familiares não matrimoniais. A união estável é um grande exemplo de composição familiar sem qualquer previsão jurídica que está pautada tão somente na afetividade.
A união estável, como relação afetiva, provocou tantas repercussões no mundo do ser, dos fatos, que o Legislativo passou a disciplinar essas relações para conformá-la dentro do próprio ordenamento jurídico pátrio.
Nesse contexto, muitos autores  têm franqueado ao afeto o status de princípio e, como tal, capaz de vincular condutas, uma vez que os princípios, dentro da nova visão constitucional, foram elevados a condição de norma jurídica, portanto, passaram a ser exigíveis.
A reflexão que se propõe é se o afeto deveria ser qualificado como um princípio, mesmo diante de tamanha importância na estrutura da família e, por conseguinte, assaz relevante para o mundo jurídico.
Os princípios são dotados de normatividade, assim, são vinculantes e podem ser exigíveis. Considerar o afeto como um princípio não seria juridicizá-lo?
A doutrina se divide quanto ao assunto. Há que entenda que o afeto é sim um princípio jurídico e, portanto, exigível juridicamente. Lado outro, há aqueles que defendem que o afeto não pode ser qualificado como um princípio-norma, sob pena de desvirtuá-lo, pois uma vez imposto, perderia a sua autenticidade. “O afeto, destarte, é situação relevante para o Direito das Famílias, mas desprovido de exigibilidade jurídica nas relações em que se apresente voluntariamente” . Muitos são os argumentos trazidos pela doutrina, tanto para justificar que o afeto assumiu o status de princípio jurídico, quanto para defender a ideia de que, apesar do seu valor jurídico, o afeto não deve ser visto como norma jurídica. Tal controvérsia, entretanto, será delineada com maior precisão nas linhas que seguem.

2.2 AFETO: PRINCÍPIO OU POSTULADO?

Ante a importância do afeto para a família, ao ponto de ser considerado como “elemento identificador da entidade familiar”, sendo, portanto, de fundamental relevância para a formação dos integrantes dessa entidade, a família se torna um instrumento de realização pessoal com fito na dignidade da pessoa humana e o desenvolvimento da personalidade de cada um dos seus integrantes.
Indaga-se: A negativa de afeto poderia ensejar pedido de indenização por ofensa moral? É possível que a ausência do elemento afetivo, reputado como estruturante do conceito atual de família, ofenda a personalidade e a dignidade dos seus integrantes?
A questão é mais complexa do que parece. Para entender a questão, deve-se compreender qual o papel dos pais e quais são os deveres perante as novas composições familiares que surgem com a evolução do direito de família.
Certo é que a ausência, tanto da figura paterna como da materna, representa um desequilíbrio na estrutura familiar, podendo, em alguns casos, ocasionar nos “abandonados” uma série de distúrbios, doenças psicológicas e até um comportamento mais agressivo e voltado às práticas criminosas.
Contudo, a falta de pai/mãe não deve ser o único, nem o principal argumento para falar sobre uma responsabilidade pelos danos à moral decorrentes da ofensa aos direitos personalíssimos e fundamentais da pessoa humana.
Ocorre que a nova visão familiar, pautada no princípio da dignidade da pessoa humana, que consagra o afeto como elemento basilar da entidade familiar e assim, legitimando a autonomia privada nas relações familiares que passa a aceitar todo tipo de arranjo, desde que pautado no afeto.
Isso significa que hoje se entende como família aquelas constituídas por casais que não se casaram oficialmente, mas que vivem em união estável; casais de homossexuais, entendendo se tratar de uma relação homo(afetiva) e até as chamadas famílias monoparentais, que começa a se tornar muito comum na sociedade que tem consagrado a independência feminina.
Enfim, a “liberdade” de escolher a própria configuração familiar pelos laços afetivos rompeu com a estrutura básica até então considerada: pai-mãe-filhos.
A sociedade escolheu um regramento mínimo do Direito de Família, diminuindo cada vez mais as intervenções estatais para ampliar a liberdade e a autonomia dos indivíduos.
Dentro dessa nova visão, há que se readequar os conceitos de convivência familiar, tendo em vista que a autonomia da vontade permite que a mulher moderna – independente, autônoma e profissionalmente realizada - possa escolher viver só, mas sem abrir mão da maternidade.
Esta é mais uma expressão de comportamento decorrente do princípio da dignidade que proporciona a realização pessoal independentemente de previsão legal ou jurídica, consagrando mais um subprincípio: princípio da pluralidade das entidades familiares.
É certo que o número de casos de produção independente vem aumentando consideravelmente e isto leva o Estado a se adequar à nova realidade social.
Retoma-se a indagação feita anteriormente: A ausência ou a negativa de afeto poderia ensejar pedido de indenização por ofensa moral também nos casos de produção independente? A mãe pode escolher retirar do filho a oportunidade da convivência paterna nos casos de produção independente? Há aqui uma relativização do conceito de convivência?
As situações de mães que optaram por serem “mães solteiras” identificam-se com as situações de abandono afetivo voluntário do pai, no que diz respeito a impossibilidade de uma plena convivência familiar conforme determina a lei.
De fato, a ausência paterna pelo abandono é mais moralmente inaceitável e provoca uma comoção social de repreensão de tal conduta.  Contudo, de igual modo, na produção independente, a criança ficará sem o aparo moral e afetivo reputado como o ideal, que seria a presença de ambos os genitores durante todo o seu desenvolvimento.
Vê-se, com isso, que nem sempre o idealizado pela lei é o que trará a satisfação individual das pessoas. Além do mais, especialmente nas relações familiares, por envolver sentimento e afeto, mais complicado é para o Estado disciplinar tais relações a fim de satisfazer cada pessoa.
Por isso que se dá tanta liberdade para a composição das relações familiares, pois cada um tem o seu próprio ideal de família e o Estado, pela promoção da dignidade da pessoa humana, se compromete a proteger todos.
Essa liberdade, conquistada com a noção de Direito de Família Mínimo, legitima-se com o elemento afetivo das relações de família. Em razão de tamanha relevância para o Direito de Família, importante analisar com mais aprofundamento o papel da afetividade em tais relações.
Antes de tratar especificamente do princípio da afetividade, faz-se necessário traçar algumas diretrizes sobre a influência dos princípios no direito, bem como sua aplicabilidade na hermenêutica jurídica das relações familiares, para que se possa compreender como o afeto passou a integrar a família contemporânea como elemento estruturante.
Durante muito tempo, no sistema positivista, os princípios eram tidos como meros auxiliares do Direito, com aplicação subsidiária e restritos ao papel de integradores da ordem jurídica nos casos de lacuna da lei.
Contudo, com o movimento do pós-positivismo, os princípios ganharam força normativa, ficando superada a distinção entre princípios e normas . As normas passaram a ser gênero, do qual os princípios e as regras são espécies. Estas, consideradas como “normas de primeiro grau” .
Humberto Ávila  traça uma proposta conceitual para qual:
"Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado das coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção."

Na doutrina , não resta dúvida quanto à força normativa dos princípios. A maioria dos doutrinadores defendem o entendimento de que os princípios são normas jurídicas dotadas de normatividade e, por isso, vinculam e obrigam comportamentos.
Deste modo, “a positivação de princípios implica a obrigatoriedade da adoção dos comportamentos necessários à sua realização”. Não representam meras intenções ou valores, mais do que isso, instituem deveres que devem ser efetivados. 
Nessa mesma linha de entendimento, Maria Berenice Dias  defende que o afeto deve ser considerado como um princípio constitucional especial, por ser próprio do Direito de Família. Assim, ensina que a afetividade, bem como os outros princípios do Direito de Família, foi elevada ao patamar de alicerce normativo sobre o qual se assenta todo o ordenamento jurídico.
Paulo Lôbo, por sua vez, entende que o princípio da afetividade encontra-se firmado na evolução social da família durante as últimas décadas do século XX. Sendo assim, ensina Lôbo que o princípio da afetividade, firmado nesse tripé, seria a especialidade do macro princípio da dignidade da pessoa humana nas relações familiares. 
Alude, ainda, o referido autor, que o princípio jurídico da afetividade estaria implícito na Constituição, pois é nela que residem os fundamentos essenciais dessa mudança de percepção quanto ao elemento da afetividade. O princípio da afetividade, portanto, especializa, no âmbito das relações familiares, os demais princípios constitucionais, “evidenciando a natureza cultural e não exclusivamente biológica da família”.
 Assim, dispõe:
"A afetividade, como princípio jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, porquanto pode ser presumida quando este faltar na realidade das relações; assim, a afetividade é dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles. "

Feita essa análise sobre os princípios e após ter discorrido sobre a posição de parte da doutrina que considera que o afeto foi elevado a posição de princípio normativo, cabe agora fazer um contraponto doutrinário. Para tanto, faz-se mister tecer breves ponderações acerca dos postulados normativos. 
Humberto Ávila, ao teorizar sobre a definição e a aplicação dos princípios jurídicos, anuncia a existência de normas de segundo grau: os postulados normativos . 
Os postulados normativos são metanormas; normas metódicas que instituem critérios de aplicação de outras normas situadas no plano de objeto da aplicação. Daí o motivo de serem qualificadas de normas de segundo grau.
Neste sentir, “sempre que se está diante de um postulado normativo, há uma diretriz metódica que se dirige ao intérprete relativamente à interpretação de outras normas” . Assim, os postulados são aplicados sempre em face da aplicação de outras normas.
Desta maneira, os postulados normativos se diferenciam das normas jurídicas, tanto dos princípios quanto das regras. Segundo Ávila,
 Os postulados funcionam diferentemente dos princípios e das regras. A uma, porque não se situam no mesmo nível: os princípios e as regras são normas objeto de aplicação; os postulados são normas que orientam a aplicação de outras. A duas, porque não possuem os mesmos destinatários: os princípios e as regras são primariamente dirigidos ao Poder Público e aos contribuintes; os postulados são frontalmente dirigidos ao intérprete e ai aplicador do Direito. A três, porque não se relacionam da mesma forma com outras normas: os princípios e as regras, até porque se situam no mesmo nível do objeto, implicam-se reciprocamente (...); os postulados, justamente porque se situam num metanível, orientam a aplicação dos princípios e das regras sem conflituosidade necessária com outras normas. 

Desta maneira, as normas-regras descrevem comportamentos que devem ser observados em sua integralidade. Na hipótese dos procedimentos por elas instituídos entrarem em conflito, a regra antinômica será necessariamente excluída do ordenamento jurídico. Lado outro, as normas-princípios também são exigíveis, contudo, diferentemente das normas regras, na hipótese de conflito, serão sopesados para que possam conviver sem serem eliminados do ordenamento jurídico.
Os postulados normativos, por sua vez, não descrevem comportamentos e não precisam ser cumpridos de forma estrita. Além disso, não estão sujeitos à exclusão. Portanto, não podem ser qualificados como regras.
De igual modo, os postulados se diferenciam dos princípios, não se confundindo com eles. Estes, são instituídos como normas que idealizam um comportamento, que pode ser verificado em variados níveis de aplicação e exigibilidade, pois podem ser dimensionados e ponderados no caso concreto.
Diferentemente, os postulados normativos não são cumpridos de forma gradual ou, como os princípios, podem ser dimensionados de acordo com as circunstâncias fáticas, mas estabelecem diretrizes metódicas, exigindo uma aplicação mais complexa que a mera subsunção inicial, com aplicação estruturante e constante relativamente a outras variáveis. 

Importa observar que os postulados também não se equivalem aos sobreprincípios, pois estes situam-se no mesmo nível das normas que são objeto de aplicação, enquanto os postulados funcionam como estrutura para aplicação de outras normas, por isso chamados de normas de segundo grau.
Neste pensar, Cristiano Chaves  leciona que no Direito de Família, pela própria natureza de suas normas, tem-se caracterizado relações jurídicas de cunho existencial, ontológico, cuidando essencialmente da pessoa humana.
De modo que, ao pensar em família como entidade tendente a promover o desenvolvimento dos seus membros, faz-se necessário trazer ao conceito de família uma nova feição, fundada no afeto e na solidariedade. Com esse balizamento, evidencia-se um espaço próprio para a confiança exigida entre os seus integrantes.
O afeto familiar, então, corresponderia a “uma verdadeira rede de solidariedade, constituída para o desenvolvimento da pessoa” .
Nessa ordem de ideias,
A afetividade traduz a confiança que é esperada por todos os membros do núcleo familiar e que, em concreto, se materializa no necessário e imprescindível respeito às peculiaridades de cada um de seus membros, preservando a imprescindível dignidade de todos. 

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Pondera-se, portanto, que o afeto presente nas relações familiares deve ser um reflexo da confiança existente entre seus membros. Assim, a afetividade assume a qualidade de postulado normativo das relações familiares, ao passo que é utilizada como fundamento jurídico de soluções concretas para os mais diversos conflitos existentes.
A afetividade serve ao Direito como um vetor que direciona a aplicação de outras regras, extraindo uma interpretação mais coerente com a nova visão “afetiva” do Direito de Família.
Nesse passo, vê-se com frequência a potencialização de princípios e regras pelo vetor da afetividade, como por exemplo: na possibilidade de acréscimo do sobrenome do padrasto pelo enteado.
Observe que tal comportamento não foi imposto como norma mandamental, nem ao menos previsto como possível pelo ordenamento jurídico, contudo o Superior Tribunal de Justiça  entendeu pela possibilidade de alteração ao se reconhecer que o afeto justificaria a mudança pelo escopo de garantir a dignidade do seu titular.
Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, apesar de utilizarem a corriqueira expressão “princípio da afetividade”, parecem ponderar nessa mesma linha de entendimento ao asseverarem que:
De fato, interpretar o Direito de Família, nesse panorama de observância do princípio da afetividade, significa, em especial – mais do que aplicar ao caso concreto uma interpretação simplesmente racional-discursiva -, compreender as partes envolvidas, acima de tudo, os laços de afeto que unem os seus membros

Observe que, apesar da atecnia empregada para qualificar a função do afeto para o Direito de Família, em síntese, os referidos autores corroboraram com o entendimento de que a afetividade representa um parâmetro para a aplicação de outras normas de natureza cogente. Os autores ressaltam, inclusive, afirmam que mais do que aplicar ao caso concreto, a afetividade serve ao aplicador como uma compreensão da ligação afetiva que unem as pessoas.
De igual modo, Walsir Rodrigues Júnior e Renata Barbosa de Almeida  entendem que o afeto se apresenta como fato jurídico lato sensu devido a sua ocorrência fática e provocador de consequências jurídicas relevantes. Contudo, discordam da ideia de que o afeto possui natureza normativa. Ressaltam os autores que, inclusive, não decorre a sua exigibilidade para a verificação do afeto para o reconhecimento das organizações familiares não criadas pelo Direito. Por isso, não parece razoável imputar à afetividade o mesmo caráter imperativo dos princípios. 
Nessa linha doutrinária, o afeto deve ser considerado como um postulado normativo e não um princípio. Desse modo, a afetividade representa uma norma metódica, funcionando como direcionamento para os critérios de aplicação dos princípios e regras.
A afetividade é tida, portanto, como um parâmetro e não como um comando obrigatório, cuja adoção seja necessário para atingir determinada finalidade ou comportamento idealizado. Serve apenas como parâmetro para a realização de outras normas.
Como resposta a questão tópica, conclui-se que o afeto deve ser encarado com um postulado normativo, servindo com um guia metódico na aplicação de outras normas.
A afetividade não deixa de ser entendida como elemento de especial valor para a família contemporânea, mantem o seu papel de destaque na conformação das novas estruturas familiares, mas não deve ser considerada como um princípio de força normativa e aplicação imediata e vinculante.
O afeto como postulado serve como método de aplicação das outras regras e princípios do Direito de Família. Assim como os postulados da razoabilidade e proporcionalidade são para a aplicação do Direito, a afetividade representa um caminho para a aplicação dos princípios do Direito de Família, exemplo: dignidade da pessoa humana, solidariedade, liberdade dentre outros; bem como as regras prescritivas de condutas.

3 GENERALIDADES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL NO DIREITO DE FAMÍLIA

Antes de ponderar sobre quem deverá recair a responsabilidade de certo ato ou conduta, faz-se mister compreender o fenômeno da Responsabilidade Civil.
Anderson Schreiber, já no título da sua obra , aponta para a existência de novos paradigmas da Responsabilidade Civil. Afirma, o autor, que “o estágio atual da Responsabilidade Civil pode ser descrito como um momento de erosão dos filtros tradicionais da reparação” . Alude, nesse sentido, a uma relativização da prova da culpa e do nexo causal que deixam de ser vistos como obstáculos ao ressarcimento dos danos. Além disso, refere-se a uma fragmentação do modelo de conduta, que afasta a ideia de um padrão único de diligência e razoabilidade, pautados no bonus pater famílias e no reasonable man, para considerar os parâmetros de comportamento que sejam mais específicos ao caso concreto e compatíveis com a realidade complexa e plural das sociedades contemporâneas, fomentando, assim, modelos múltiplos e menos generalistas.
Nota-se que o instituto da Responsabilidade Civil, passou por uma evolução nas últimas décadas e cada vez mais tem alcançado os diferentes ramos do direito com vasta aplicação em todo o ordenamento jurídico. As relações familiares e afetivas também têm sido abarcadas pela Responsabilidade Civil, uma vez que o instituto da responsabilidade prevê a reparação inclusive por danos relacionados aos direitos de personalidade, sem o cunho estritamente patrimonial.
Entende-se, portanto, que a Responsabilidade Civil é instituto que pode ser aplicado perfeitamente no Direito de Família, para tanto, faz-se necessário que se verifique os pressupostos para a incidência ou não do instituto da Responsabilidade Civil em cada tipo de relação afetiva, tendo em vista as particularidades que envolvem cada uma delas: noivado, casamento, união estável e relação paterno-filial. 
Ante o exposto, ficam estabelecidas duas premissas básicas que irão nortear toda a análise da Responsabilidade Civil nas relações familiares e mais precisamente na questão do abandono afetivo. Primeira: para que se configure a responsabilidade, imprescinde a violação de um dever jurídico preexistente. Segunda: para que haja a devida responsabilização, faz-se necessário precisar a obrigação violada e quem a violou.
Dúvida não há quanto a aplicação das regras da Responsabilidade Civil nas relações familiares. A questão “cinge-se em saber se a violação de algum dever específico de Direito das Famílias, por si só, seria suficiente para ensejar o dever de indenizar que caracteriza a responsabilidade civil” .
Destarte, a melhor forma de compreender a questão é perceber que a violação pura e simples de algum dever familiar não é bastante para configurar o dever de indenizar, devendo-se observar a efetiva prática de um ato ilícito para caracterizar a Responsabilidade Civil nos moldes dos arts. 186 e 167 do Código Civil. Esclarecem, ainda, os referidos autores, que a relação familiar não admite a aplicação pura e simples das regras da Responsabilidade Civil, “exigindo uma filtragem, sob pena de desvirtuar a natureza peculiar (e existencial) da relação de Direito das Famílias” .

3.1 RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO NA RELAÇÃO FILIAL

Conforme visto, é pacífico o entendimento de que o instituto da responsabilidade civil aplica-se ao Direito de Família. Cumpre advertir que, embora possível, a Responsabilidade Civil não se aplica a totalidade das relações familiares, tendo em vista as peculiaridades que envolvem a matéria.
Enquadrar o afeto como dever jurídico decorrente da paternidade merece muita cautela, por se tratar de relações familiares e seu caráter extremamente pessoal, o afeto não deve ser compreendido com valor jurídico exigível pelo judiciário, como explicitado pelo Superior Tribunal de Justiça : “desta feita, como escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar, ou a manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada”.
É ainda motivo de grande discussão doutrinária e jurisprudencial, de modo que há um turbilhão de argumentos, mais ainda nenhum consenso quanto à matéria. Afinal, é possível falar em Responsabilidade Civil no âmbito do Direito de Família no caso do abandono afetivo?
Além da questão do valor normativo do afeto no Direito de Família, já abordada: se este deve ser entendido como princípio ou postulado normativo; outra questão importante a ser abordada é quanto a interpretação dada aos deveres paternos legalmente previstos. O afeto deve ser considerado com uma obrigação jurídica dos pais para com seus filhos?
No tocante a este ponto, Bernardo Castelo Branco , entende que dentre os deveres decorrentes da paternidade, a saber: sustento, guarda e educação dos filhos, conforme dispõe os artigos 1.566, IV; 1.634, II e 1.724 do Código Civil , estaria intrínseco ao conceito de guarda, o dever dos pais manterem os filhos sob sua companhia, decorrendo dessa proximidade o sustento e a educação
Neste pensar, reconhecimento do abandono afetivo parental vem sendo defendido por muitos estudiosos e profissionais do direito por entenderem ser este um claro sinal de que a paternidade ou maternidade não se resume aos vínculos biológicos.
Contudo, tal entendimento não é pacífico na doutrina, nem na jurisprudência.
Discute-se, como visto, se o valor jurídico do afeto, trazido pela Constituição Federal de 1988, seria suficiente para qualifica-lo como princípio normativo do Direito e se os referidos deveres decorrentes da paternidade não deveriam ter os seus conceitos adequados às relações familiares em suas novas estruturas e formatos, já que o afeto possibilitou novos modelos familiares, a exemplo das monoparentais ou aquelas constituídas apenas por irmãos.

3.2 POSICIONAMENTOS DOUTRINÁRIOS

A doutrina diverge quanto à questão.
Inicia-se pelos autores favoráveis à tese de que é possível a responsabilização civil dos pais nos casos de abandono afetivo dos filhos.
Maria Berenice Dias , ao considerar que o afeto figura entre os deveres decorrentes do poder familiar dispostos no art. 1.632 do Código Civil, encara abandono afetivo como ato ilícito merecedor de indenização civil. Nesse sentido, fala em paternidade responsável e que “a convivência dos filhos com os pais não é direito, é dever”. 
Compartilhando desse entendimento, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona  entendem que o desrespeito ou descumprimento desse dever de amor e convivência com o filho, representado pela omissão que se perfaz com o abandono, ensejaria um ato ilícito e, portanto, configuraria o direito a uma indenização.
Rodrigo Cunha Pereira e Cláudia Maria Silva , que entendem pela a impossibilidade de impor uma conduta afetiva, contudo destacam a necessidade de uma valorização das funções paternas, considerando que o filho é carecedor não só dos alimentos, mas de outras formas de assistência como o amparo moral e afetivo. De modo que a indenização seria cabível a título de reparação. 
Neste pensar, Rolf Madaleno assevera que além do direito ao nome paterno, o filho tem o direito de ser acolhido social e afetivamente por seu genitor, sendo este acolhimento um dever do pai para o desenvolvimento moral e psíquico do seu descendente. Entende, ainda, que a recusa aos filhos desses “caracteres indissociáveis de sua estrutura em formação” configura injustificável ilicitude civil e, assim, acarretando no dever de indenizar. 
Paulo Lôbo, por sua vez, também entende que o afeto é um dever jurídico e, portanto, o seu descumprimento pode ensejar a pretensão indenizatória. Alude, ainda, que o princípio da paternidade responsável, previsto no art. 226 da Constituição Federal não estaria limitado apenas ao dever de assistência material, mas abrangeria também a assistência moral. 
Antônio Dantas de Oliveira Júnior  vai mais além ao concluir que o descumprimento desses deveres paternais deveriam ensejar uma reparação como forma punitiva e dissuasória.  
Rodrigo da Cunha Pereira  faz a seguinte reflexão: “Um pai ou uma mãe que se nega a conviver com seu filho menor, ou não dá afeto, está infringindo a lei e deve, ou pode, ser punido por esta falta?”. Responde ao questionamento, concluindo que:
Não é possível obrigar ninguém a amar. No entanto, a esta desatenção e a este desafeto devem corresponder uma sanção, sob pena de termos um direito acéfalo, um direito vazio, um direito inexigível. Se um pai ou uma mãe não quiserem dar atenção, carinho e afeto àqueles que trouxeram ao mundo, ninguém pode obrigá-los, mas à sociedade cumpre o papel solidário de lhes dizer, de alguma forma, que isso não está certo e que tal atitude pode comprometer a formação e o caráter dessas pessoas abandonadas, afetivamente. (...) O descumprimento dessas obrigações significa violação ao direito do filho. Se os pais assim não agem, devem responder por isso.

Reflete, ainda, o referido autor, se esta indenização não estaria monetarizando o afeto. Entende, o jurista, que não está, pois indenização teria apenas uma função punitiva, ou melhor, educativa. Os valores seriam simbólicos, pois não haveria dinheiro que pagasse essa rejeição. 
Juntamente com Cláudia Maria Silva, Rodrigo da Cunha Pereira chega à conclusão de que, mesmo cumprindo com o dever de prestar alimentos, o pai não se desincumbiria de suas obrigações perante o filho, tendo em vista que “nem só de pão vive o homem”. Assim, depreende que a responsabilidade não se limita ao dever alimentar, mas também no dever de possibilitar o desenvolvimento humano dos filhos em conformidade com o princípio da dignidade da pessoa humana.  
Para Ana Karina Ciríaco Fragoso, a falta da convivência, do afeto e do cuidado que um pai deve dispensar aos filhos, acarreta na configuração de danos aos direitos da personalidade da criança e do adolescente. A ausência afetiva comprometeria, assim, o bom desenvolvimento dos atributos da personalidade da criança. Esta ofensa, portanto, configuraria o dano moral afetivo.
Neste pensar, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka defende que em relação à responsabilização pelo abandono afetivo, deve-se, primeiramente, visualizar o dano causado e não a sua origem ou causa. Quando assevera que “o dano causado pelo abandono afetivo é, antes de tudo, um dano culposamente causado à personalidade do indivíduo”, considera que o correto desenvolvimento sociopsicocultural dos filhos configura-se como um direito da personalidade.
Giselda Hironaka, apesar de figurar entre os doutrinadores que admitem a reparação civil em decorrência do abandono afetivo, mostra-se mais cautelosa em suas ponderações. Para a autora, os casos de indenização não devem ser caracterizados de forma desarrazoada ou desapegada da realidade. Ressalta, ainda, que “bons e maus pais, boas e más mães sempre houve. E continuarão a existir (...)” e que, por isso, a indenização por abandono afetivo deve ser utilizada com uma função pedagógica, evitando que o Judiciário seja palco de vingança familiar na busca do lucro fácil. 
Há, ainda, doutrinadores como Paulo Nader  e Carlos Roberto Gonçalves  que defendem o direito à reparação moral, contudo, fazem a ressalva da complexidade em se verificar no caso concreto o nexo de causalidade, já que este, além de configurar um ônus ao ofendido, é de difícil apuração. Sendo assim, raros seriam os casos de sucesso do pleito indenizatório promovido em face dos pais pelo abandono afetivo.
Por outro lado, outros autores têm demonstrado resistência quanto à possibilidade de ações dessa natureza possam ser admitidas pelo Judiciário.
Danielle Alheiros Diniz entende que é impossível condenar um pai a indenizar seu filho em decorrência da falta de afeto. Defende que nesse campo tão peculiar das relações familiares, o instituto da responsabilidade não pode penetrar. Segue aduzindo que o afeto, apesar de toda sua relevância para o Direito, não pode ser convencionado, muito menos exigido ou cobrado, pois trata-se de um sentimento que se desenvolve naturalmente. A autora questiona, ainda, se essa imposição da convivência como dever familiar não estaria contrariando a ideia de afeto como a principal fonte instituidora das entidades familiares. Pensar dessa forma, para a autora, seria privilegiar os vínculos sanguíneos em lugar do laços afetivos. Entende, assim, que o descumprimento desse “dever familiar” deveria ser analisado apenas na seara do Direito de Família, sendo a perda do poder familiar a sanção mais apropriada para o pai/mãe ausente. 
Seguindo a mesma linha de pensamento, Leonardo Castro ressalta que a desvinculação afetiva pela perda do poder familiar evitaria que a relação se desgastasse ainda mais com a imposição de sanção pecuniária. 
Neste pensar, Samir Nicolau Nassralla  entende que, ao se considerar o princípio do melhor interesse da criança, a medida mais adequada nos casos de abandono afetivo seria a destituição do poder familiar . Aduz que, apesar de ser um comportamento moralmente reprovável, o legislador não estabeleceu nenhum parâmetro interpretativo para disciplinar as condições em que essa patrimonialização poderia ocorrer. Além disso,
Quando há apenas uma conduta não exteriorizada, consistente em simples omissão de amor, não se pode configurar ato ilícito merecedor de indenização civil, por ausência do conteúdo e alcance normativo dessa conduta (...) a falta de afeto é conduta não exteriorizada, não podendo o direito regular ou intervir na ausência de sentimento, como não pode fazê-lo no pensamento.

Aduz, ainda, que “mesmo considerando-se que o dano moral é presumido, a ausência de afeto é conceito extremamente impreciso para embasar a responsabilidade civil”. Conclui, portanto, que a indenização estabelecida como forma de reparação pelo suposto dano moral afetivo representa um ingerência indevida pelo Estado nas relações familiares.
Em uma linha mais prospectiva, Isabel Cochlar  avalia o duplo encargo do abandono afetivo ao ponderar que o Código Civil  prevê a reciprocidade da prestação de alimentos, estendendo-se aos pais, quando necessitados, o direito de requerer alimentos dos filhos. Assim, poderia um filho ser obrigado a amparar materialmente àquele que o rejeitou? Entendeu a autora que não:
A manutenção de tal dispositivo nos termos ora postos significa, pelo Estado – que tem o dever de garantir proteção às crianças e adolescentes – a ratificação do abandono afetivo. Significa sobrecarregar o futuro da criança abandonada pelo genitor, impor-lhe uma dupla carga emocional (...) Se o Estado não foi eficaz em garantir-lhe o direito ao amparo moral e material, não pode sê-lo para exigir que ele ampare quem lhe impôs tal dano. Mesmo a efetivação da indenização por dano moral não tem o condão de justificar tal obrigatoriedade. Isso porque o dinheiro não repara a falta de afeto, não torna pai ou mãe quem decidiu não o ser. 

João Gaspar Rodrigues , por sua vez, afirma que a pretensão de inserir o abandono afetivo parental na Responsabilidade Civil com o objetivo de obrigar um comportamento afetuoso, presente e amoroso, mostra-se ineficiente e até prejudicial, uma vez que “onde antes havia omissão e ausência, passa a existir ódio e ressentimento entre pais e filhos”. Ao “acirrar os ânimos”, a dignidade de todos os membros da família estaria comprometida. Ressalta, ainda, que ineficiência da indenização resta comprovada pelo não atendimento dos seus objetivos, vez que o amparo material é obtido através da pensão alimentícia e o efeito punitivo já estaria configurado por outros meios previstos em lei, a exemplo da perda ou suspensão do poder familiar. 
Por fim, depois de analisar os principais posicionamentos sobre a matéria, encerra-se esse painel doutrinário com a proposta de Laura Maciel Freire de Azevedo , na tentativa de harmonizar o Direito de Família e a Responsabilidade Civil.
A autora propõe uma terceira solução ao problema. Esta solução consiste em desviar a atenção da conduta do pai e focar nas repercussões geradas no filho.  O alvo da análise deve ter o filho como referência em cada caso concreto, não o pai. Não basta que o abandono afetivo tenha se caracterizado, é preciso que este tenha ocorrido de forma efetiva. Explica-se: mesmo que o abandono afetivo tenha se configurado, partindo-se exclusivamente da análise da conduta do pai, é possível que o filho tenha encontrado afeto e amparo material na figura do pai socioafetivo.  Neste caso, não haveria que se falar em pleito indenizatório, pois o dano moral não se configurou.

3.3 POSICIONAMENTOS DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

 As opiniões conflitantes não se encerram no campo doutrinário. De igual modo, as cortes superiores têm manifestado diferentes posicionamentos.
Em 2005, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça julgou pela impossibilidade da reparação civil pelo abandono moral, entendendo que esta não se encaixaria como conduta ilícita. 
Trata-se do caso em que o filho ajuizou ação ordinária contra seu pai, pleiteando indenização por danos morais decorrentes do abandono afetivo. Em primeira instância, o pleito foi julgado improcedente , contudo, após interposição de apelação, o pai foi condenado pela Sétima Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais ao pagamento de indenização por danos morais pelo descumprimento do dever familiar de convívio com o filho.   O pai, inconformado com a condenação, interpôs recurso especial.  Entendeu a 4ª Turma, por maioria , em dar provimento ao recurso interposto com os seguintes argumentos:

No caso de abandono ou descumprimento injustificado do dever de sustento, guarda e educação dos filhos, porém, a legislação prevê como punição a perda do poder familiar, antigo pátrio-poder (…) Assim, o ordenamento jurídico, com a determinação da perda do poder familiar, a mais grave pena civil a ser imputada a um pai, já se encarrega da função punitiva e, principalmente, dissuasória, mostrando eficientemente aos indivíduos que o Direito e a sociedade não se compadecem com a conduta do abandono, com o que cai por terra a justificativa mais pungente dos que defendem a indenização pelo abandono moral.

Além de considerar que o Direito de Família já tutela sanção específica para o caso, entendeu a 4ª Turma que o litígio entre as partes reduziria consideravelmente a expectativa de uma reaproximação, ainda que tardia. Sendo assim, o deferimento do pleito não atenderia o objetivo da reparação financeira, nem seu efeito punitivo, pois, neste sentido, o ordenamento jurídico já teria providenciado a pensão alimentícia e a perda da guarda.
“Desta feita, como escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar, ou a manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada”.
No ano de 2009, mais uma vez a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu, por unanimidade, pela não configuração dos danos morais, rejeitando a configuração do abandono afetivo como ato ilícito. 
O Ministro Aldair Passarinho Júnior, relator, adotou o mesmo entendimento utilizado no julgamento do REsp. 757.411/MG, realizado pela mesma Turma.
Já em abril de 2012, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça julgou o Resp. 1.159.242/SP em sentido diametralmente oposto ao entendimento consolidado pela 4ª Turma.  

A 3ª Turma, por maioria , e julgou procedente a compensação por dano moral em decorrência do abandono efetivo. Para tanto, fundamentou a decisão na percepção do cuidado como um valor juridicamente tutelado. A relatora, Ministra Nancy Andrighi, asseverou que “o cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente” e seguiu com o entendimento de que a discussão não estava pautada tão somente na questão da mensuração do amor, mas na verificação do cumprimento da obrigação legal de cuidar. Concluiu, portanto, que “amar é faculdade, cuidar é dever”.
Como explicitado, a matéria ainda não está consolidada. Apesar de uma aparente mudança no entendimento jurisprudencial, ainda falta muito que se discutir e entender.
Por hora, cumpre informar que o pai, condenado pela 3ª Turma ao pagamento de indenização no valor de R$200.000,00 (duzentos mil reais), já recorreu da decisão apresentando embargos de divergência . O recurso ainda não foi julgado.

4. CONCLUSÃO

O Direito de Família passou por uma profunda transformação com a mudança dos paradigmas nas relações familiares. A família, até então considerada como instituição, firmada no pater potestas e nos critérios biológicos, passa a ser considerada com um instrumento de proteção da pessoa humana. Assim, as entidades familiares passaram de uma concepção institucional, patrimonializada e biológica para uma concepção instrumental, cultural e afetiva.
Em decorrência dessa mudança estrutural, o ordenamento jurídico consagrou o afeto como elemento estruturante das relações familiares, portanto, merecedor de tutela e especial proteção do Estado.
Apesar da palavra “afeto” não constar expressamente no texto constitucional, o repertório principiológico da Constituição Federal aponta para o valor jurídico da afetividade, principalmente, através dos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade e do pluralismo familiar. 
O reconhecimento do valor jurídico do afeto evidencia-se pelas constantes mudanças sociais. Como o Direito é construído pela sociedade, o Estado foi obrigado a disciplinar a nova dinâmica social da configuração dos grupos familiares. Não faltam exemplos para comprovar a ampliação dos conceitos familiares para abarcar os novos comportamentos sociais, são eles: reconhecimento da união estável como entidade familiar; igualdade de direitos entre filhos biológicos e adotivos; possibilidade de adoção do nome do pai socioafetivo; direito de visita dos avós; reconhecimento da família constituída apenas por irmãos... Todos baseados na afetividade como promoção da dignidade da pessoa humana.
Diante disso, entendeu boa parte da doutrina que o afeto, ainda que implicitamente, teria sido elevado ao posto de princípio jurídico, devido a tamanha importância para a configuração das novas estruturas familiares, no que se convencionou chamar de fase pós-moderna do Direito de Família.
Os partidários da corrente que preconiza o princípio da afetividade entendem, portanto, que na condição de princípio-norma, o afeto poderia ser exigível, dado ao seu caráter de norma mandamental obrigatória. Asseveram, ainda, que a desatenção desse comando normativo implica em ofensa, não só ao princípio constitucional, como a todo o sistema jurídico.
A linha adotada neste trabalho, entretanto, filia-se à vertente contrária que defende que o valor jurídico concedido ao afeto não bastou para elevá-lo à condição de princípio jurídico constitucional, mas tão somente à condição de postulado-normativo.
Enquanto postulado, normas de segundo grau, o afeto funciona como uma diretriz metódica que orienta a interpretação das demais normas e não como um comando de cumprimento obrigatório. A afetividade, portanto, deve ser vista como um referencial interpretativo para os princípios e regras do ordenamento, não como uma prescrição comportamental com força vinculante, caso contrário, sua própria essência estaria desvirtuada.
Conclui-se, assim, que o afeto representa um direcionamento na aplicação dos princípios do Direito de Família.
Destaca-se, também, que os defensores do princípio da afetividade, ao considerarem o elemento da afetividade como norma de aplicação vinculada, passam a também defender que a desatenção desse comando normativo implicaria em descumprimento de dever constitucionalmente garantido, assim, sendo passível de responsabilização civil.
Consoante demonstrado, entende-se que a aplicação do instituto da Responsabilidade Civil é admitida no Direito de Família. Contudo, ressalva-se que a incidência da responsabilidade deve ser feita de forma moderada, respeitando as peculiaridades constantes nas relações familiares e os limites da autonomia privada no Direito de Família.
Ficou demonstrado, inclusive, que o foro competente para tais ações seria a Vara de Família, tendo em vista a especificidade da matéria em questão.
A Responsabilidade Civil no Direito de Família, portanto, mostra-se plenamente possível, entretanto, a conduta ilícita deve ser claramente identificada e comprovada. Assim, para que se configure a responsabilidade, é preciso que haja a conduta ilícita, o dano efetivamente sofrido e comprovação do nexo de causalidade.
Sendo assim, mesmo na hipótese de desamparo material do filho, se o dano não se configurar, não haverá responsabilização civil por tal conduta, ainda que o comportamento seja socialmente reprovável.
Não obstante a Responsabilidade Civil seja admitida no Direito de Família, não poderá incidir sobre todas as circunstâncias que envolvam as relações familiares. O Judiciário, não pode, portanto, alcançar as questões afetivas, a exemplo do abandono afetivo, por representar uma atuação indevida do Estado na autonomia privada do direito familiar e na liberdade individual.
A responsabilização civil pelas condutas afetivas representa uma ingerência indevida do Estado em um âmbito tão íntimo das relações humanas. É juridicizar o afeto.
A doutrina e jurisprudência não são pacíficas quanto ao tema. Os que concordam com a possibilidade de indenizar o abandono afetivo utiliza os argumentos de que o afeto estaria figurando entre os deveres familiares, dentro do conceito do dever convívio familiar ou mesmo do dever de educação. Além disso, entendem ser patente a conduta ilícita decorrente do descumprimento do dever jurídico de cuidar.
Em sentido oposto e mais acertado, argumenta-se que a Responsabilidade Civil pauta-se na conduta ilícita e esta não se configura pela ausência de afeto. Note-se que não se fala em desamparo material, este sim, deverá ser objeto de ação de responsabilidade por incorrer em caráter alimentar, o abandono afetivo não.
Com essas considerações, não se pretende legitimar a conduta do pai que abandona seu filho afetivamente. Tal comportamento não deve ser aceito com normalidade, contudo, o Judiciário não pode impor uma conduta afetuosa ou obrigar ao pagamento de indenização pela ausência de afeto porque a afetividade, pela sua própria natureza, escapa à obrigatoriedade. Ao insistir na estipulação de indenização por abandono afetivo, o Judiciário estará monetarizando o afeto.
De todo o exposto, percebe-se que o problema reside no campo da moral e não do Direito. A solução não pertence ao Judiciário, mas à sociedade, às comunidades religiosas, à educação familiar, à própria família.
Entende-se que o ordenamento jurídico pátrio já disciplinou de modo satisfatório a matéria em comento. A ingerência do Estado para além dos limites da autonomia privada e liberdade individual no intuito de obrigar um comportamento afetuoso ou punir a ausência do afeto, seria, portanto, indevida, desarrazoada e ilegal, além de inconstitucional.
Não há óbice para a aplicação da Responsabilidade Civil nas relações familiares quando configurado o ato ilícito e o efetivo dano. Contudo, aplicar o instituto aos comportamentos afetivos, configura indevida juridicização do afeto.

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Sobre o autor
Diego Sarmento

Diego Sarmento Cruz Santos. Bacharel em Direito pela Faculdade Baiana de Direito. Advogado. Assessor Jurídico do GRUPO TORREFORTT (www.torrefortt.com.br). Pós-graduando em Direito Imobiliário pela Universidade Salvador - Unifacs.

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