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Liberdade provisória sem fiança: uma questão de justiça e isonomia social

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02/09/2014 às 13:40
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4. DA LIBERDADE PROVISÓRIA

A liberdade provisória é sucedânea da prisão provisória. A prisão provisória é a medida cautelar que mais gravemente lesiona a liberdade individual, pelos intensos sofrimentos físicos, morais e materiais a que sujeita o preso, pela sua irreparabilidade, por sua larga duração e porque fere um homem ainda não definitivamente culpado. A liberdade provisória vem harmonizar essa situação. Assegura a presença do réu no processo, sem enfrentar os infortúnios do cárcere antes de condenação definitiva.

Liberdade provisória é um estado de liberdade limitada aos fins do processo. E para tal desiderato impõe ao beneficiário a condição de não fugir, limitando sua liberdade de locomoção. Cuida-se da providência com a qual o juiz ou o Ministério Público concede eventualmente ao imputado detido a liberdade sob determinadas condições. O réu ou indiciado gozará da liberdade pessoal limitada para defender-se ou livrar-se solto, mas subordinado a imperativos que, sob a forma de ônus processuais, procuram vinculá-lo de modo estreito ao desenrolar do processo. A liberdade provisória pode ser tida como um medida intermediária entre a prisão provisória e a liberdade completa.

Pode-se dizer que não se trata de uma liberdade completa devido a dois aspectos. O primeiro é que se o autor da infração, que estava provisoriamente em liberdade , vier a ser punido com pena privativa de liberdade sem sursis ou qualquer medida alternativa, cessa a liberdade, sendo recolhido à prisão. O segundo aspecto é que durante o tempo em que o indiciado ou réu estiver em liberdade provisória, essa liberdade não é completa. Existem restrições a serem observadas nos termos do art. 310, II, 319, 327, 328 e 343 do Código de Processo Penal.

No caso de prisão em flagrante, a liberdade provisória será concedida se no auto de prisão ficar comprovado que o agente agiu em legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito, ou seja, amparado por alguma das excludentes de ilicitudes previstas no art. 23, incisos I, II e III do Código Penal. Tal previsão de soltura encontra previsão legal no art. 310, parágrafo único do Código de Processo Penal.

Outra possibilidade de soltura do flagranteado se dá por força do art. 304, § 1º do Código de Processo Penal, que estabelece que quando da lavratura do auto de prisão em flagrante não resultar suspeita contra o conduzido este deverá ser solto pela própria autoridade policial.

Outras duas hipóteses do flagranteado se ver livre são a liberdade provisória com e sem fiança.

4.1 Liberdade provisória com fiança

Fiança criminal, conforme definida por Heráclito Antônio Mossinm “ é uma garantia real e não pessoal, prestada pelo indiciado ou acusado ou terceiro para que se responda o processo em liberdade, desde que o fato punível por ele praticado a admita.” (MOSSIN,2012, P.761) Os casos em que se admite fiança são elencado pelo legislador processual penal, tratando-se de casos numerus clausus. Assim, cuida-se de uma garantia patrimonial, consistente em dinheiro, pedras, objetos ou metais preciosos, títulos da dívida pública ou até mesmo hipoteca de primeiro grau.

Encontramos no ordenamento jurídico pátrio dois tipos de fiança. A fiança concedida por autoridade policial, nos crimes cuja pena máxima não ultrapasse os quatro anos de prisão e a fiança determinada pelo juiz competente nos crimes com pena superior a quatro anos de prisão. Estas modalidades de fiança estão previstas no art. 322, caput e seu parágrafo único do Código de Processo Penal.

Os limites dos valores da fiança são estabelecidos pelo art. 325, inciso I, II, III. IV.

Essa possibilidade de arbitramento de fiança por parte da autoridade policial de imediato após a prisão em flagrante pode evitar a prorrogação da prisão desde que o flagranteado possua condições para pagá-la.

Justamente nesse ponto é que identificamos a injustiça social que o legislador cometeu. Se o flagranteado não tem condições de pagar a fiança arbitrada pelo delegado, este será conduzido a prisão até que o caso seja apreciado pela autoridade judicial, que fatalmente concederá sua liberdade provisória sem fiança, diante de sua precária condição financeira.

O próprio art. 350, em seu inciso I e II, do Código de Processo Penal prevê a dispensa ou redução de até 2/3 da fiança em caso de assim recomendar a situação econômica do réu. Mas, para que a fiança seja dispensada faz-se necessário que o juiz se manifeste. Até a manifestação do juiz, o flagranteado pobre permanecerá preso durante este intervalo de tempo entre sua prisão em flagrante e a manifestação.

Nesse ponto defendemos que o réu pobre, a despeito de não possuir condições financeiras para pagar a fiança arbitrada pela autoridade policial, mediante simples declaração de pobreza, sob as penas da lei, e mediante assinatura de termo de compromisso de comparecimento a todos os atos processuais, deveria ser posto imediatamente em liberdade. Dessa forma, estaria estabelecido uma justiça social que levaria a pôr em xeque o critério econômico que desiguala pessoas em uma condição onde não cabe tal distinção.

A situação econômica do indivíduo não pode ser definidora de quem deve se ver livre imediatamente de uma prisão em flagrante ou aguardar a decisão da autoridade judicial preso. Decisão que fatalmente será pela liberdade provisória, visto que o único elemento que a manteve foi a insuficiência econômica do flagranteado.

Nesse diapasão, faz-se pertinente lembrar dos dizeres do Ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Roberto Barroso quando do julgamento da ADI- 4650, que envolvia decisão sobre o poder econômico nas campanhas eleitorais. O eminente ministro sentenciou: “O papel do Direito e da sociedade é respeitar as liberdades individuais. Procurar minimizar o impacto do dinheiro na criação de desigualdades na sociedade”.

Na questão ora levantada e debatida é flagrante que o legislador processual equivocou-se ao permitir que o flagranteado pobre aguardasse na prisão sua soltura pelo magistrado, ao passo que o flagranteado rico pague a fiança arbitrada pela autoridade policial e se veja livre de imediato, sem sequer passar pelo constrangimento do encarceramento, ainda que durante curto lapso temporal entre o envio do auto de prisão em flagrante e a soltura sem fiança que será ordenada pela autoridade judiciária.

Porém, percebe-se que nesse caso, o flagranteado pobre ficará sujeito à prisão única e exclusivamente pelo fato de não possuir dinheiro para pagar de imediato a fiança arbitrada pela autoridade policial. Identifica-se, nessa situação, a mitigação do direito fundamental de liberdade da pessoa pobre única e exclusivamente por sua condição econômica dentro da sociedade, pois ao apreciar o caso o juiz não poderá manter o réu pobre preso porque não possui condições financeiras para pagar a fiança.

É certo que o magistrado, nos termos do art. 350, poderá impor ao flagranteado, além do compromisso de comparecimento a todos os atos processuais e não mudar de residência sem prévia autorização da autoridade processante, poderá impor outras medidas cautelares ao flagranteado. Porém, a soltura imediata do flagranteado pobre pela autoridade policial, mediante assinatura de termo de compromisso de comparecimento ao atos processuais e não mudança de residência, não obsta que o magistrado aplique, posteriormente, outras medidas prevista no art. 319 do Código de Processo Penal. A intenção é não deixar o flagranteado preso somente por não ter condições econômicas de pagar a fiança arbitrada pela autoridade policial, até sua soltura pela autoridade judiciária.

Cabe ressaltar que, sempre que concorrem os requisitos objetivos e subjetivos para a outorga da fiança, essa deverá ser concedida pela autoridade policial ou judiciária, sob pena de constrangimento ilegal amparável pelo writ of habeas corpus. Cuida-se de um mandamento de ordem constitucional trazido no bojo do art. 5º, inciso LXVI que estabelece “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória com ou sem fiança”.

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4.2- Liberdade provisória sem fiança

Liberdade provisória sem fiança é aquela que somente pode ser concedida pela autoridade judiciária. Nesta modalidade de liberdade não se exige do réu ou acusado qualquer garantia de natureza pecuniária, exigindo apenas que o mesmo, assuma o compromisso de comparecer a todos os atos do processo sob pena de revogação.

Sua concessão não é mera faculdade do juiz, mas cuida-se de verdadeiro direito subjetivo do indiciado ou réu.

Para fazer jus a esta liberdade provisória sem fiança e não tê-la revogada, o réu pobre deverá comparecer a todos os atos do inquérito (se for o caso) ou da instrução criminal, quando regularmente notificado. Também não poderá mudar de residência sem a prévia permissão da autoridade processante. Somente não perderá o benéfico, sendo recolhido à prisão, se as faltas do beneficiário forem justificadas com motivo justo e outras medidas cautelares, que não a prisão, se mostrarem suficientes.


5. CONCLUSÃO

Por todo o exposto, conclui-se que houve uma evolução do direito à liberdade durante a história da humanidade.

A liberdade foi uma conquista paulatina, mas que durante todo o fluxo da história da humanidade as classes mais pobres sempre foram as mais sujeitas a terem sua liberdade restrita. Seja porque sujeita a escravidão, seja porque não dispõe dos meios materiais para fazer sua liberdade.

Na seara penal, pode-se concluir que o critério adotado pelo legislador processual pátrio, da capacidade econômica do flagranteado, influi diretamente na restrição da liberdade das pessoas economicamente menos favorecidas.

Ao se manter preso o flagranteado que não possui condição de pagar a fiança arbitrada pela autoridade policial nos crimes com pena de até 04 anos de privação de liberdade, cria-se uma desigualdade de tratamente pura e simplesmente baseada em aspectos econômicos.

Por fim, conclui-se que para que haja uma isonomia de tratamento do homem no meio social, visando a preservar sua liberdade, frente a sua falta de condições financeiras, torna-se necessário uma reforma processual penal pequena, mas de grande relevância para aquele que são presos em flagrantes acusados de cometer delitos de pequena ou média gravidade.

Nessa reforma proposta, o ideal seria que o flagranteado, nos crimes e situações que admitissem fiança, assinasse perante a autoridade policial um documento de declaração de pobreza e se submetesse às demais regras inerentes à liberdade provisória. E que não fossem simplesmente trancafiados em uma cela, simplesmente pelo fato de não possuírem dinheiro para pagar a fiança. A falta de dinheiro não deve servir como único critério para que a liberdade do indivíduo seja restringida.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das penas, São Paulo, editora RT; 2º Ed.1997.

BITENCOURT, Cesar Roberto, Falência da Pena de Prisão, São Paulo, editora Saraiva, 3ª Ed. 2001.

GONÇALVES, Suellem da Costa. Liberdade Provisória: das distorções no campo da fiança criminal a serem corrigidas pelo intérprete, Jus Navegandi, Teresina, ano 19, nº 3843, 08 jan 2014. Disponível em HTTP://jus.com.br/artigos/26327. Acesso em 02 de maio de 2014.

BUSANA, Dante. O Habeas Corpus no Brasil, São Paulo, editora Atlas,1ª Ed. 2009.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, São Paulo, Editora Saraiva, 14 ed. Ver. Atual e ampl. 2010.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, São Paulo, Editora Saraiva, 35

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Sobre o autor
Ailton José Teixeira

Acadêmico do VIII período do Curso de Direito do Centro Universitário do Cerrado de Patrocínio-MG- Unicerp. Oficial de Justiça Avaliador no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Ailton José. Liberdade provisória sem fiança: uma questão de justiça e isonomia social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4080, 2 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29386. Acesso em: 27 abr. 2024.

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