Resumo: A alteração da legislação penal para a tipificação dos crimes cometidos via internet, que se deu com o advento da Lei n.º 12.737/12, veio ao encontro das necessidades sociais, principalmente para coibir práticas delituosas nesse ambiente que visam, de alguma forma, auferir vantagem indevida, causando intranquilidade social.
Sumário: I. Considerações Iniciais II. Análise do Tema III. Considerações Finais.
I. Considerações Iniciais
Consabido que o Direito Penal ostenta um caráter dúplice: servir à sociedade, protegendo-a de condutas danosas de seus membros; e servir às pessoas, limitando a atuação punitiva estatal – o jus puniendi. A interface entre suas duas utilidades, igualmente calcadas na Constituição, é que lhe dá o perfil, não sendo o Direito Penal um fim em si mesmo.
Neste sentido, cabe ao Direito Penal a proteção dos bens jurídicos mais relevantes para o meio social, ou seja, este ramo do ordenamento jurídico tutela o que é basilar para a própria existência da sociedade, que é o direito à vida; a liberdade; o patrimônio; a propriedade imaterial; a organização do trabalho; o sentimento religioso e o respeito aos mortos; a honra, imagem e privacidade; a dignidade sexual; a família; a incolumidade pública; a paz pública; a fé pública; a Administração Pública; o meio ambiente e tantos outros bens.
Por este viés, observa-se que a concepção de bem jurídico deve estar atrelada aos valores da realidade social que, em um dado momento histórico-cultural, é alterada, principalmente quando há uma ruptura com o modelo social até então existente. Assim, a partir dos anos 90, do século passado, com a disseminação da internet, ocorreu o que se conhece como “revolução digital”.
No Brasil, a popularização da internet originou-se no final da década de 90 e início do século XXI. Segundo dados do Ibope, no ano de 2002, o Brasil contava com 7,68 milhões de usuários, contudo, com base na última pesquisa realizada por este Instituto, em 2013, tem-se que atualmente o País já conta com mais de 102,3 milhões de usuários.
Cumpre esclarecer que a internet é um conjunto de redes de computadores ligados entre si através de roteadores e gateways, cujo principal objetivo é transmitir informações diminuindo as distâncias e dissipando as fronteiras traçadas pela geografia.
Nota-se que a internet instituiu um processo de globalização e diminuição das distâncias. Fatos e culturas que muitas vezes eram restritas a determinadas regiões ganham uma notoriedade mundial e se tornam relevantes. Essa onda digital de informações trouxe a possibilidade de armazenamento de dados industriais e individuais, dados relativos a contas bancárias, números de cartões de crédito, senhas de acesso, trocas de experiências interpessoais, criação e difusão do comércio eletrônico e, consequentemente, certo comodismo.
Neste passo, o mundo moderno requer do Direito um acompanhamento atento às mudanças e transformações ocorridas no seio da sociedade, notadamente no que atine ao ramo da informática, que se encontra em franco desenvolvimento. Por sua vez, por conta desses avanços tecnológicos, a internet se tornou um campo propício para a prática de novos delitos, principalmente ligados à honra, cabendo destacar que essas condutas já se amoldam aos delitos existentes previstos no Capítulo V do Título I da Parte Especial do Código Penal, quais sejam, calúnia, injúria e difamação.
Por outro lado, há certas situações em que o agente utiliza o dispositivo de informática para obter algum tipo de vantagem, ou seja, nestes casos, o aparelho digital não é o meio para o cometimento da infração e, sim, o objeto desta.
Pode-se exemplificar a prática com o caso da atriz global Carolina Dieckmann, que, em maio de 2012, teve seu e-mail invadido por crackers1. Eles se apropriaram de fotos íntimas da atriz e este conteúdo foi divulgado na internet, após a atriz não ceder às chantagens dos criminosos, que pediam dez mil reais pela não publicação das imagens.
Com efeito, até então, não havia em nosso ordenamento jurídico a tipificação de crimes cometidos via internet, o que obrigava o magistrado a se utilizar da analogia para aplicar a legislação que versava sobre condutas semelhantes já tipificadas. Assim, a violação de e-mail era enquadrada como crime de violação de correspondência, previsto na Lei nº 6.538/78, que, em seu art. 40, estatui que é crime devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada dirigida a outrem, estabelecendo a pena de detenção, de até seis meses, ou o pagamento não excedente a vinte dias-multa.
Dessa forma, o legislador editou a Lei nº 12.737, de 30 de novembro de 2012, mais conhecida como “Lei Carolina Dieckmann”, que teve um período de vacância de 120 dias e entrou em vigor em 2 de abril de 2013, dispondo exatamente sobre a tipificação criminal de delitos informáticos, inserindo no Código Penal brasileiro os arts. 154-A e 154-B, no art. 266 do diploma legal dois parágrafos e, na redação do art. 298 do Estatuto Penal em vigor, o parágrafo único.
Traçadas estas premissas, mister se faz realizar uma análise crítica dos principais aspectos introduzidos pelo novo diploma criminal.
II. Análise do Tema
O art. 154-A, disposto no Código Penal, topograficamente, na Parte Especial, Título I – Dos Crimes Contra a Pessoa; Capítulo VI – Dos Crimes Contra a Liberdade Individual; Seção IV – Dos Crimes Contra a Inviolabilidade dos Segredos; inserido pela Lei nº 12.737/12, objetiva proteger a privacidade do indivíduo no tocante aos dados e informações pessoais ou profissionais armazenados em dispositivo de informática que, de alguma forma, teve a sua segurança violada sem a autorização do titular. Assim, o novo diploma legal protege o dispositivo informático, visando evitar a violação deste.
Nessa esteira, estabelece o art. 154-A do Estatuto Repressivo que invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita é conduta a ser apenada com detenção, de três meses a um ano, e multa.
Trata-se de um tipo penal misto que dispõe de duas condutas incriminadoras, sendo a primeira relacionada à invasão de dispositivo de informática alheio (computadores domésticos, notebooks, tablets, smartphones, ipads ou aparelhos celulares), conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança (senha, assinatura digital, chave de segurança) com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem a autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo; já a segunda conduta está associada à instalação de vulnerabilidades (softwares maliciosos) para obter vantagem ilícita.
Observa-se que, para a caracterização das condutas dispostas no tipo penal, é fundamental o dolo e o especial fim de agir, ou seja, a obtenção, a adulteração ou a destruição de dados ou informações para a primeira conduta; e a obtenção de vantagem ilícita (não necessariamente econômica) para a segunda conduta. Ausente o especial fim de agir, o fato passará a ser um indiferente penal.
Ademais, é necessário que o dispositivo de informática disponha de mecanismo de segurança, podendo-se afirmar que a ausência de mecanismo de segurança, ou o não acionamento deste, impede a configuração do tipo penal.
Contudo, é de se perquirir, neste caso, se o dispositivo de informática desprovido de algum mecanismo de segurança também encontra proteção jurídica na nova Lei, haja vista que o legislador infraconstitucional se referiu expressamente àqueles aparelhos digitais que contenham antivírus, firewall, senhas e outras defesas digitais.
De outra banda, a redação do caput do dispositivo foi duramente criticada no seio doutrinário, tendo em vista que o verbo nuclear do art. 154-A, qual seja, “invadir”, exprime, consoante a definição do Dicionário Aurélio, o ato de “entrar à força, apoderar-se violentamente”, e, a julgar pela redação do novel artigo, somente se configuraria o crime se o agente acessasse o sistema de informática à força.
Ocorre que a prática desses ilícitos que o art. 154-A pretende coibir, em sua maior parte, não se dá de forma casual, mas somente com o agir do agente mal-intencionado, pois só há dois meios de se ter acesso a banco de dados de forma indevida: quando o agente acessa fisicamente o dispositivo ou quando o usuário, de forma inadvertida, permite que sejam instalados em seu computador os chamados malwares, que aparecem na forma de arquivos enviados por e-mail, links na internet ou em dispositivos móveis como pendrives, o que permite concluir que, em ambos os casos, o agente não agiu com violência, mas tão somente com o emprego de ardil para a obtenção de dados. A solução legal teria sido substituir o verbo “invadir” por “acessar”, e exigiria mais esclarecimentos do legislador sobre o que são os malwares.
Portanto, com relação ao caput do art. 154-A, pode-se concluir que se trata de crime comum, comissivo, instantâneo, formal, unissubjetivo, plurissubsistente e doloso.
No que toca ao seu § 1º, objetivou o legislador equiparar a conduta do agente que produz, oferece, distribui, vende ou difunde dispositivo ou programa de computador àquela tipificada no caput. Buscou-se sancionar, desta forma, a conduta daquele agente que desenvolve, difunde, distribui de forma gratuita ou onerosa o software malicioso.
O § 2º do art. 154-A majorou a pena base do delito de 1/6 a 1/3, se a invasão ao equipamento informático causar prejuízo econômico à vítima, ou seja, a Lei sanciona de modo mais severo quando a invasão atingir a esfera patrimonial.
Já o § 3º do art. 154-A dispõe que, se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas, segredos comerciais ou industriais, informações sigilosas, assim definidas em Lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo invadido, a pena-base será a de reclusão, de seis meses a dois anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave.
Observa-se que o intuito do legislador foi o de punir de forma mais eficaz o agente que consegue controlar de forma remota o dispositivo informático, bem como obtenha conteúdo de comunicação eletrônica privada, segredo comercial ou industrial e informações sigilosas e, neste ponto, é importante destacar que se mostra irrelevante que venha se tratar de segredo temporário.
O § 4º, por sua vez, prevê causa de aumento de pena aplicável na hipótese em que as informações obtidas por intermédio das ações previstas no § 3º forem divulgadas, comercializadas ou transmitidas a terceiros.
Importante inovação é disposta no § 5º, que estabelece o aumento de pena de 1/3 à metade se o crime for praticado contra: (i) o Presidente da República, governadores e prefeitos; (ii) Presidente do Supremo Tribunal Federal; (iii) Presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Assembleia Legislativa do Estado, da Câmara Legislativa do Distrito Federal ou da Câmara Municipal; ou (iv) dirigente máximo da Administração direta e indireta federal, estadual, municipal ou do Distrito Federal.
De outro turno, a Lei nº 12.737/12 também estabeleceu, no art. 154-B do Código Penal, que os crimes previstos no seu art. 154-A somente se procederão mediante representação, exceto às hipóteses em que a prática delituosa se efetivar contra a Administração Pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, Estados, Municípios e Distrito Federal ou contra empresas concessionárias de serviços públicos.
Por oportuno, a Lei dos Crimes Cibernéticos ampliou a redação do art. 266 do Codex Penal, etiquetado no Título VIII – Dos Crimes Contra a Incolumidade Pública, que passou a versar sobre a interrupção ou perturbação de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático ou de informação de utilidade pública.
Esta alteração feita no caput do art. 266 se justifica com a inserção do § 1º, que aduz que incorre na mesma pena do caput quem interromper serviço telemático ou de informação de utilidade pública, ou impedir ou dificultar o restabelecimento. Entende-se como serviço telemático a junção dos serviços de telecomunicações e informática, ou seja, é o serviço prestado por operadoras para a transmissão de informações digitais; já os serviços de informação de utilidade pública são aqueles dispostos ao cidadão através da telefonia, informática, telemática e telegrafia.
Trata-se de um tipo penal que visa proteger a incolumidade pública no que tange à regularidade dos serviços telegráficos, telefônicos, informáticos, telemáticos e de utilidade pública. É um delito comum que admite a tentativa, cuja pena possibilita a suspensão condicional do processo, desde que o delito não seja cometido por ocasião de calamidade pública (art. 266, § 2º).
De outro giro, o diploma legal em comento acrescentou também o parágrafo único ao art. 298 do Código Penal, o qual equiparou o cartão de crédito ou débito a documento particular. A nova redação, ao equiparar o cartão magnético bancário, seja ele de débito ou crédito, a documento particular, revela-se de um avanço significativo, cujo objetivo foi evitar danos patrimoniais causados pelo uso indevido das novas tecnologias.
Por fim, não é de se olvidar que a Lei nº 12.737/12, que se propunha a alterar o Código Penal, o Código Penal Militar e a Lei nº 7.716/89, para tipificar condutas realizadas mediante uso de sistema eletrônico, digital ou similares praticadas contra sistemas informatizados e similares, e acabou sendo parcialmente vetada, ainda quando em estágio embrionário, no Congresso Nacional (PLC nº 89/03), foi duramente vergastada, conforme se depreende do Parecer emitido pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, de onde se extrai que a grande dificuldade na construção dos tipos relativos aos crimes informáticos repousa na intangibilidade do seu objeto. Daí alguns doutrinadores identificarem que, nos delitos praticados com o uso do sistema informático, se teria como bem jurídico a informação, a inviolabilidade de dados informáticos ou, até mesmo, a capacidade funcional dos sistemas informáticos.
No próprio Parecer ofertado no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados – confundindo crimes informativos próprios e impróprios – há a noção de que os bens jurídicos tutelados pelos tipos penais são os “originais” e a “segurança informática”, cujos requisitos seriam a integridade, a disponibilidade e confidencialidade, contemplados na Constituição de Budapeste.
III. Considerações Finais
Conforme restou plasmado em linhas transatas, a internet constituiu um grande avanço para a sociedade, se tornando ferramenta de fundamental importância para a quebra de paradigmas e fronteiras, principalmente no que diz respeito ao acesso à cultura, à informação, à livre manifestação, bem como para a prática de negócios jurídicos, como compra e venda, transações bancárias, anúncios etc.
Na esteira desta ascensão tecnológica, surgiram também as práticas delituosas levadas a efeito pela rede mundial de computadores, sendo nesta vertente que o Direito veio atuar, com o nítido intuito de erigir barreira contra a criminalidade virtual.
Notório que a legislação brasileira era ineficiente para penalizar as condutas praticadas através de dispositivos de informática, daí o advento da Lei nº 12.737/12, que passou a coibir, na seara penal, a prática de infrações cometidas em ambiente virtual.
Não obstante a boa intenção do legislador, alguns dispositivos da nova Lei pecam em sua qualidade técnica, em especial na redação dada ao art. 154-A da Lei Substantiva Penal, por ter em seu verbo nuclear a expressão “invadir”, que significa entrar à força, o que não se coaduna com o modus operandi da maior parte dos delitos cibernéticos, nos quais o agente se utiliza do ardil para alcançar o seu desiderato criminoso.
Assim, o legislador brasileiro, em que pese certa demora no processo legislativo, agiu bem e de forma oportuna ao tipificar os delitos informáticos, representando a Lei nº 12.737/12 um avanço legislativo pátrio que veio ao encontro do anseio social de evolução tecnológica, já que a tutela cibernética criou um novo bem jurídico, o dispositivo informático.
NOTA
[1] A distinção entre crackers e hackers é a de que estes são compulsivos estudiosos e pesquisadores que agem movidos pelo afã do saber, enquanto que aqueles agem pelo sentimento de destruição e da obtenção de ganhos ilícitos. (VALLE, Regina Ribeiro do. E-Dicas: o direito na sociedade da informação. São Paulo: Usina do Livro, 2005, p. 159.)
REFERÊNCIAS:
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