1. BREVES NOTAS ACERCA DA EVOLUÇÃO DO ESTADO E DO DIREITO CONSTITUCIONAL
O desenvolvimento do Direito encontra-se estreitamente ligado à evolução do Estado, de modo que não se pode visualizar um fenômeno sem tomar em conta o outro.
A primeira forma de Estado Moderno foi o Absolutista, organização que centralizava o poder no soberano, uma vez que seu estabelecimento deu-se desacompanhado de Constituições. Elaine Harzheim Macedo muito bem elucida a questão:
o Estado moderno, que nasceu absolutista, mesmo que servido por algumas leis fundamentais, ainda não podia ser visto como um Estado constitucional, enquanto organização política e social submetida a um ordenamento prévio, senão constituidor do próprio Estado e tido como sua lei maior, à qual em especial também os governantes se submetem. Sua primeira feição, marcada pela ausência de formalização e centralização do poder, teve o mister de consagrar a fixação do território, unificando o povo e criando instrumentos e instituições capazes de assegurar a centralização do poder.[1] (grifos da autora)
Foi apenas com o Iluminismo que sobreveio a elaboração de Constituições, de Estados constitucionais, portanto. Segundo José Joaquim Gomes Canotilho: “a ideia de lei fundamental é inseparável da razão iluminista que acreditava ser possível, através de um documento escrito (produto da razão), organizar o mundo e realizar um projecto de conformação política.” [2]
Assim, em uma configuração inicial, a partir de um Estado Liberal, o Direito, também de cunho liberal – produto de um Estado absenteísta – privilegiava os direitos e liberdades individuais, criando, assim, um espaço de proteção dos indivíduos contra o Estado. Espaço de não-atuação estatal, proporcionava a auto-regulação dos indivíduos, que encontrava limite na esfera de incolumidade alheia.
Liberdade e propriedade são exemplos desses direitos negativos, campo de não ingerência, de inércia estatal, representando a primeira dimensão[3] dos direitos.
Ao Poder Legislativo bastava a criação de normas que garantissem um espaço de não atuação. Possuía liberdade de conformação, não encontrando muitos limites em sua tarefa, característica típica do Positivismo Jurídico. Separação entre Direito e Moral, entre política e economia, e entre Estado e sociedade civil, também constituem traços marcantes dessa fase Liberal.
Em etapa subsequente, forçado por um quadro em que se deram grandes guerras mundiais, além de regimes autoritários, o Direito passa a exercer função positiva, acompanhado por um Estado que, além de um caráter negativo em face dos direitos e liberdades individuais, assume postura de promoção de novos direitos, que, nessa quadra, representam anseio por ações sociais. Nas palavras de Mauro Cappelletti e Bryant Garth:
Nos estados liberais ‘burgueses’ dos séculos dezoito e dezenove, os procedimentos adotados para solução dos litígios civis refletiam a filosofia essencialmente individualista dos direitos, então vigorante. (...) Esses direitos eram considerados anteriores ao Estado; sua preservação exigia apenas que o Estado não permitisse que eles fossem infringidos por outros. O Estado, portanto, permanecia passivo (...) A partir do momento em que as ações e relacionamentos assumiram, cada vez mais, caráter mais coletivo que individual, as sociedades modernas necessariamente deixaram para trás a visão individualista dos direitos, refletida nas ‘declarações de direitos’, típicas dos séculos dezoito e dezenove. O movimento faz-se no sentido de reconhecer os direitos e deveres sociais dos governos, comunidades, associações, indivíduos. (...) Tornou-se lugar comum observar que a atuação positiva do Estado é necessária para assegurar o gozo de todos esses direitos sociais básicos. [5]
As transformações e evolução sociais reclamam por um modelo de Direito e Estado que responda às demandas de direitos de natureza positiva, tais como direitos econômicos, sociais, culturais, fundamentados em parâmetros de igualdade.
Já não basta apenas o respeito aos direitos e liberdades individuais, senão que se faz imprescindível a concretização desses direitos sociais, conhecidos como de segunda dimensão.
O centro de atuação estatal passa do Poder Legislativo, e sua tarefa de criação de normas de proteção em sentido negativo, ao Poder Executivo, exigindo-se deste não apenas o respeito às liberdades individuais, mas, sim, a materialização de comandos voltados à promoção dos desígnios de igualdade material-social.
O decorrer do século XX revela, entretanto, a crise da era dos direitos sociais, denunciados e desacreditados em razão de sua inefetividade. Daí, volta-se o olhar a direitos pautados por novos ideais.
Os direitos de terceira dimensão exsurgem de alvitres de solidariedade e fraternidade. São direitos de titularidade transindividual, coletivos e difusos, relacionados ao desenvolvimento, qualidade de vida, meio ambiente, mercado consumidor etc. Nas palavras de José Joaquim Gomes Canotilho:
A partir da década de 60, começou a desenhar-se uma nova categoria de direitos humanos vulgarmente chamados direitos da terceira geração. Nesta perspectiva, os direitos do homem reconduzir-se-iam a três categorias fundamentais: os direitos de liberdade, os direitos de prestação (igualdade) e os direitos de solidariedade.[7] (grifos no original)
Nesse passo, a tensão entre os poderes estatais passa a residir no Poder Judiciário, mormente na jurisdição constitucional, não havendo mais plena liberdade de conformação do Poder Legislativo (Estado Liberal), limitado que se encontra em sua tarefa pelos ditames constitucionais. Ao Executivo tampouco é suficiente uma atuação de respeito às liberdades individuais e promoção de ações sociais (Estado Social). Está-se diante de um novo modelo: Estado Democrático de Direito.
É referida, ainda, a existência de uma quarta e de uma quinta dimensões de direitos, representados, respectivamente, por empreendimentos de biotecnologia, bioética, engenharia genética, de um lado, e comunicação virtual, internet, de outro.
Em sede nacional, a Constituição Federal de 1988 inscreve em seu dispositivo de abertura: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (...)”.
O advento da Carta de 1988 estabelece novo modelo de Estado; não mais – apenas – liberal, tampouco social, mas, sim, Estado Democrático de Direito. O que se extrai de tal expressão é a superação das duas primitivas formas de Estado (e Direito), com a superveniência de novos lindes e novas expectativas relativamente aos modelos pretéritos. Consoante as palavras de Lenio Streck, "se no paradigma liberal o Direito tinha a função de meramente ordenadora, estando na legislação o ponto de tensão nas relações entre Estado-Sociedade, no estado Social sua função passa a ser promovedora, estando apontadas as baterias para o Poder Executivo, pela exata razão da necessidade da realização das políticas do Welfare State. Já no Estado Democrático de Direito, fórmula constitucionalizada nos textos magnos das principais democracias, a função do Direito passa a ser transformadora, onde o pólo de tensão (...) passa para o Poder Judiciário ou os Tribunais Constitucionais".[8]
Em razão mesmo da crise de inefetividade da feição Social[9], não mais é suficiente a proteção da esfera individual dos cidadãos em face do Estado, tampouco a promoção de seus direitos sociais é medida satisfatória. O Estado Democrático de Direito, sem abdicar as dimensões individuais e sociais dos direitos, assume papel compromissário, dirigente e, principalmente, transformador diante de uma sociedade em que se impõe a iminência de direitos transindividuais, de direitos fundamentais-sociais.
O Estado Democrático de Direito encontra-se assim assentado em dois pilares: democracia e direitos fundamentais-sociais, ambos interligados e dependentes, como condição de possibilidade recíproca. Isso, porque sem democracia, não há possibilidade de concretização dos direitos fundamentais-sociais, os quais, em sociedade/Estado onde inexistente democracia, também não existiriam.
Nesse viés, o Estado, cuja postura inicial era de “inimigo” dos direitos individuais, passa a assumir papel promovedor dos direitos fundamentais-sociais.
O século XX, pois, trouxe duas grandes revoluções, no direito e na filosofia[11]. No primeiro, o nascimento do Estado Democrático de Direito; na filosofia, a inserção da linguagem, ultrapassando-se o modelo clássico de metafísica, em que os sentidos estavam contidos nas coisas, e a também a teoria da metafísica moderna, para a qual o sentido das coisas estavam na mente dos sujeitos cognoscentes. Para a pós-metafísica, o sentido somente se dá na e pela linguaguem.
Encontram-se latentes as condições – e a necessidade – de superação do positivismo, com suas notas de imperialismo da legislação ordinária, em que a Moral e o Direito constituem campos reciprocamente impermeáveis, e a legitimidade do Direito acaba sendo remetida à própria legalidade, uma vez que a simples positivação implica sua justeza e conseqüente imposição de obediência.
No passo do neoconstitucionalismo, a legitimidade do Direito é intrinsecamente vinculada à sua conformação – tanto material quanto formal – com a Constituição, a qual ocupa o centro do ordenamento jurídico, não apenas – mais – como estatuidora de competências e comandos organizadores da estrutura do Estado e da sociedade, mas, sim, como impositiva de um feixe de normas de natureza substancial fundamental, que deve permear todo o ordenamento jurídico.
E o Direito não se encontra imune à Moral, na medida em que essa se concretiza e se mostra presente na positivação de princípios de conteúdo valorativo ético, bem como na essência de inúmeros dos direitos fundamentais assentados constitucionalmente.
Com esse novo modelo, não se pode ignorar a diferença existente entre validade e vigência das leis, tampouco entre texto e norma.
A vigência das leis, como dado simplesmente formal, perde relevância ao ser confrontada sua validade com o conteúdo constitucional, parâmetro último – e primeiro – de conformação legislativa; a Constituição Federal, assim, atuando como limite positivo e negativo à liberdade de conformação do Legislador.
E adquire papel central o Poder Judiciário nessa atividade de controle da validade das normas jurídicas, não como emissor de decisões discricionárias, mas, sim, por meio do exercício de jurisdição constitucional, mediante a verificação de submissão da legislação ao exame de parametricidade – formal e material – constitucional. Inclusive, por intermédio do emprego de técnicas decisionais como a interpretação conforme a constituição e a nulidade parcial sem redução de texto. Para tanto, cientes da diferença também existente entre texto e norma, na medida em que essa é o resultado da interpretação daquele.
Vê-se cristalina a modificação de postura nessa nova fase, alçando-se a Constituição Federal como fonte primeira da ação do Estado, inclusive quanto à produção legiferante; traçando novos contornos à formatação legislativa, à qual não basta apenas ser vigente, ou mesmo eficaz (socialmente aceita e aplicável), mas também deve ser válida, pressuposto que se aquilata por meio de um confronto com os parâmetros constitucionais. Além disso, mediante a diferenciação entre texto e norma, e levando-se em consideração o papel da linguagem em um cenário pós-metafísico, novas possibilidades de interpretação exsurgem não só realizáveis, mas desejáveis e imprescindíveis.
Importa verificar, em um segundo momento, os reflexos do advento de um Estado Democrático de Direito no campo do direito processual civil.
2. O DIREITO PROCESSUAL CIVIL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O desenvolvimento do Estado e do Direito, como já apontado, não se encontra desindexado das realidades impostas pela sociedade. As transformações e necessidades por que passaram as sociedades no decorrer dos tempos exerceram forte influência nas sucessivas configurações do Direito (e Estado). E no que diz respeito ao Estado Democrático de Direito, o quadro não foi diferente.
Ímpetos e demandas, dos mais diversos matizes, formam o substrato social que permeia esse – novo – modelo político-jurídico. Paradigma que acompanha uma terceira – mas não exclusiva – dimensão de direitos, o Estado Democrático de Direito deve contas não apenas à liberdade individual dos cidadãos, tampouco apenas à promoção de ações sociais quando a grupos determinados, senão também a novas configurações decorrentes de uma complexa teia social, formada a partir de níveis não – tão, mais – lineares de relações. Presta-se, para além das atribuições tipicamente liberais e sociais, à transformação das estruturas sociais.
Os compromissos inerentes a um Estado Democrático de Direito são denunciados, também, por classes de – novos – direitos. Coletivos[12], difusos[13], individuais homogêneos[14], enfim, direitos transindividuais, emergem de uma sociedade de relações complexas, sedentos por proteção e concretização.
O Direito, como fenômeno social[15], não pode assumir papel alheio às mutações sociais, e conseqüentes necessidades impostas por essas transformações. Que respostas, então, a nova matriz de produção/aplicação do direito oferece a esse quadro de demandas sociais, é o questionamento/problema que se impõe.
O que se pode constatar quanto ao processo civil, é que o – mítico – “legislador brasileiro” não se apercebeu (ou não quis se aperceber) de tais reclames sociais, tampouco da nova configuração que respeita ao paradigma de Estado e de Direito inscritos na Constituição Federal de 1988.
O Código Processual Civil brasileiro, legislação editada em 1973, encontra-se estreitamente vinculado aos ideais liberais, em que o individualismo (e os direitos individuais) é o carro-chefe da produção legiferante. Nas palavras de Lenio Streck:
A crise do modelo (modo de produção de Direito) se instala justamente porque a dogmática jurídica, em plena sociedade trans-moderna e repleta de conflitos transindividuais, continua trabalhando com a perspectiva de um Direito cunhado para enfrentar conflitos interindividuais, bem nítidos em nossos Códigos (...). Esta é a crise do modelo (ou modo de produção) de Direito, dominante nas práticas jurídicas de nossos tribunais, fóruns e na doutrina.[16] (grifos no original)
Voltado para a resolução de conflitos individuais lineares, deixou ao léu situações em que a contenda não envolva apenas dois – ou mais, mas não uma coletividade, determinada ou não de – sujeitos. Mais uma vez, a constatação de Lenio Streck:
no Brasil predomina/prevalece (ainda) o modo de produção de Direito instituído/forjado para resolver disputas interindividuais, ou, como se pode perceber nos manuais de Direito, disputas entre Caio e Tício ou onde Caio é o agente/autor e Tício (ou Mévio), o réu/vítima.[17] (grifos no original)
O processo civil brasileiro foi idealizado sob os auspícios de uma fase histórica muito diversa da atual; não foi cogitada a existência de litígios em que pudessem figurar uma multiplicidade indeterminada de sujeitos, em um espaço que talvez não correspondesse a um hectare, alqueire, propriedade rural ou imóvel urbano, mas, sim, um espaço cibernético.[18]
Sem meias-palavras, Adalberto Narciso Hommerding afirma: “a situação do processo civil, na ‘era das massas’, é precária. Idealizado para uma sociedade cuja historicidade era outra, o Direito Processual não resistiu à sua finitude.”[19] Ovídio A. Baptista da Silva, no mesmo sentido, asseverou que para o direito processual civil a história parou no século XIX: “Daí porque não devemos depositar demasiada esperança na ‘Reforma do Poder Judiciário’, se não estivermos dispostos a repensar os fundamentos do sistema, superando os ideais do Iluminismo.” [20] (grifou-se)
São parcas as legislações especiais que possibilitam a defesa dos direitos transindividuais: pode-se exemplificar a Lei da Ação Civil Pública, de 1985; Lei nº 7.853, de 1989 (tutela de direitos e interesses coletivos e difusos de portadores de deficiências); Lei nº 7.913, de 1989 (danos a investidores do mercado de valores mobiliários); Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990; Código de Defesa do Consumidor, de 1990; Lei nº 8.429, de 1992 (improbidade administrativa); Lei nº 8.884, de 1994 (antitruste); Lei 8.974, de 1995 (proteção à vida e à saúde do homem, dos animais e plantas, e do meio ambiente); e Estatuto do Idoso, de 2003.[21] A Constituição Federal também previu o mandado de segurança coletivo, bem como o mandado de injunção (individual e coletivo).
Constatação que vem sendo reiteradamente denunciada, a legislação processual civil, como se vê, não apenas o Código de Processo Civil, não responde satisfatoriamente às necessidades impostas pelos direitos de terceira dimensão.
As pretensas (e pretensiosas) reformas que se sucederam – e ainda se sucedem – no Código Processual Civil não se preocuparam efetivamente com essa questão, com a criação de condições de possibilidade para a defesa e concretização desses direitos desamparados, mas sim, por exemplo, com um – há muito apontado e defendido pela teoria quinária das ações e sentenças – sincretismo processual, e de como restringir e reorganizar o sistema recursal.
Sempre, e mais uma vez, com olhos voltados aos direitos individuais, de cunho real ou patrimonial, o “legislador” não responde aos imperativos impostos pela complexidade da sociedade, tampouco ao conteúdo compromissário do Estado Democrático de Direito.
Parece – ainda – olvidar que a Constituição Federal é o centro gravitacional ao qual todo ordenamento deve conformação. Somente há legalidade constitucional, isto é, não há que se cogitar de legalidade desconectada de constitucionalidade. Impende fazer e refazer uma filtragem constitucional do ordenamento jurídico, a fim de que o modo de criação/produção do Direito seja adequado ao conteúdo do locus irradiante de legitimidade, bem como às novas feições do Estado, não mais social ou liberal, mas Democrático de Direito.
A ausência de eco do Direito aos gritos sociais é revelada não apenas na omissão/deformação que macula a fonte formal de sua produção, mas se encontra arraigada também em sua aplicação. Essa – lamentável – circunstância é apontada pelo processualista Ovídio Araújo Baptista da Silva:
“Faz parte deste pressuposto ideológico a exigência, religiosamente observada pelos juristas que se prezem, de que não manchem com exemplos concretos a exposição dos resultados de sua pesquisa; ou a defesa de seus pontos de vista. O máximo que se lhes permite é que, quando se mostre indispensável a utilização de casos concretos que possam auxiliar na compreensão do que eles expõem, as hipóteses concretas sejam descritas, por exemplo, como uma compra e venda entre Tício e Caio, ou um contrato de locação ajustado entre Semprônio e Caio. (...) há cento e cinqüenta anos, ao jurista que esteja a fazer ‘ciência’, é-lhe vedado sequer pronunciar a palavra vida. A distância entre a realidade e a construção conceitual deve ser intransigentemente observada.” [22] (grifo no original)
Ao que parece, apenas Caio e Tício (e quiçá também Semprônio!) são destinatários das normas processuais civis, que apenas as relações entre eles travadas podem ser verdadeiramente jurídicas, e tão-somente elas podem adquirir condição de litígio judicial.
Direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, permanecem na periferia do ordenamento processual, alimentando-se das sobras dos banquetes servidos aos direitos individuais (simples) – mormente de caráter patrimonial e real – pelo Código Processual Civil.
Não consegue se desvencilhar, o processo civil, de uma perspectiva objetificante e reducionista, que subtrai a complexidade das relações sociais, atentando apenas aos direitos individuais. É o senso comum, teórico e prático, que se encontra preso às amarras dos ideais do Estado e do Direito de natureza liberal, obstando a devida e necessária filtragem constitucional de institutos processuais como, por exemplo, coisa julgada e intervenção de terceiros, para citar apenas alguns[23].
Essa tentativa – ou tendência –, que labora para o velamento das complexidades, acaba por trair a própria razão existencial do Direito, uma vez que exclui de seu manto situações que necessitam tratamento, proteção e concretização jurídicas. De acordo com Luis Alberto Warat: “O saber jurídico da modernidade organizou o lado masculino do imaginário do direito. Mobiliza o social negando as incertezas e o novo, impede a inscrição do direito na temporalidade.” [24]
Na constante tentativa de abstrativizar o concreto, generalizar as hipóteses de conflitos e suas resoluções, como se possível, sem qualquer valoração ou com ‘normatividade aberta’ – em que a subjetividade de valores prevalece –, deixa-se ao léu novos fatos e demandas sociais, a historicidade do direito e da sociedade e, assim, o próprio Direito perde-se na função de ter aplicabilidade concreta. Ao oposto disso, a evita.
Certo é que esse modo de produção/aplicação do Direito – se não em sentido francamente contrário – não labora na direção da plenitude dos nortes constitucionais, o que enfraquece e debilita sua força normativa, circunstância que – para dizer o mínimo – é inadmissível, pois essa postura hipócrita acarreta a fragilização da legitimidade do ordenamento processual civil.
Ausente uma conduta pautada em tal consciência, os direitos transindividuais continuarão no ostracismo jurídico, sem, no entanto, desaparecerem da esfera do fático-social.
As rédeas do modo de criação/aplicação do Direito devem ser (re)tomadas, tendo-se em mente – de uma vez por todas – que a Constituição Federal, instituidora de um Estado Democrático de Direito, é o ponto de partida e de chegada de todo ordenamento jurídico.