SUMÁRIO: 1. Explicação necessária. 2. Escorço histórico. 3. Conceito. 4. Natureza jurídica. 5. Inadequação terminológica. 6. Oportunidade. 7. Legitimidade. 8. Forma. 9. Matérias arguíveis. 10. Procedimento. 11. Efeito. 12. Decisão do juiz. 13. Custas. 14. Recurso. 15. Doutrina. 16. Posição da jurisprudência. 17. Exceção de pré-executividade e embargos. 18. Conclusões.
1. Explicação necessária
O presente trabalho não tem qualquer pretensão doutrinária. É, antes de tudo, fruto de intensa pesquisa realizada em nosso escritório, visando dirimir incertezas a respeito do tema, surgidas a partir de caso prático no qual atuamos. Nosso intuito ao elaborá-lo, foi justamente o de proporcionar ao operador do direito uma síntese que o levasse a visualizar os principais aspectos da exceção de pré-executividade, sem, contudo, aprofundarmo-nos em cada um deles.
Apesar da escassa literatura existente - pouco se falou ou escreveu sobre o assunto -, serviu-nos de base, principalmente, a monografia "Exceção de Pré-Executividade - Matérias de Ordem Pública no Processo de Execução", Sérgio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1.996, autor Marcos Valls Feu Rosa, magistrado no Espírito Santo.
Mas não nos furtamos à responsabilidade de emitir nosso entendimento sobre cada questão, sempre que considerado oportuno. Se o trabalho servirá ao propósito a que se destina, somente a sempre bem-vinda crítica dos demais colegas, poderá dizer.
2. Escorço histórico
Pontes de Miranda foi quem, nos idos de 1.966, abordou pela primeira vez a exceção de pré-executividade em célebre parecer elaborado a partir dos problemas pertinentes a pedidos de falência da Companhia Siderúrgica Mannesmann.
O Parecer nº 95, a mais importante fonte do trabalho monográfico de Pontes de Miranda, está compilado na coleção Dez Anos de Pareceres e, segundo consta, os pedidos de decretação de abertura de falência foram indeferidos pelo Juízo antes da penhora ou do depósito, sob o fundamento de que os processos eram baseados em títulos falsos.
Questionado se nas vinte e quatro horas para que o devedor pague sob pena de penhora, pode a empresa, contra a qual se move a ação, sustentar a falsidade do título ou dos títulos, independentemente do oferecimento de bens à penhora, respondeu o parecerista que sim, pois, no seu entender, "a alegação de inexistência, da invalidade ou da ineficácia da sentença é alegável antes da expedição do mandado de penhora" [1], pois tal ato só "é de exigir-se para a oposição de embargos do executado; não, para a oposição das exceções e de preliminares concernentes à falta de eficácia executiva do título extrajudicial ou da sentença". [2]
Dessa forma, deixou claro o eminente processualista que a execução tem requisitos próprios, que podem e devem ser examinados antes da agressão ao patrimônio do devedor, de ofício ou por provocação da parte, cuja defesa não está exaurida no conceito de "embargos do executado". [3]
Em contraposição à viabilidade da exceção de pré-executividade idealizada por Pontes de Miranda, surge, posteriormente, parecer solicitado pela Copersucar ao Dr. Alcides de Mendonça Lima. [4]
Na ocasião da consulta a empresa figurava no pólo ativo de ação executiva por título extrajudicial, movida em face da Central Paulista de Açúcar e do Álcool e seus sócios, na qualidade de devedores solidários. O crédito exequendo era representado por três notas promissórias, as quais foram dadas em garantia ao cumprimento de contrato celebrado entre as partes.
A exemplo do parecer de Pontes de Miranda, o problema que ora se aborda gira em torno da exigibilidade dos títulos.
Em síntese, de um lado, alega a exequente a exigibilidade dos títulos, uma vez que seu vencimento ocorreu antecipadamente em decorrência de cláusula contratual; e, de outro lado, alega a executada, via agravo de instrumento interposto contra despacho citatório, não serem os títulos aptos a dar ensejo à ação executiva válida.
As questões enfrentadas no parecer foram as seguintes:
a) O despacho inicial, mandando citar a devedora para pagar ou oferecer bens à penhora, pode, ou não, ser atacado por agravo, sem a medida constritiva ?
b) A penhora é indispensável para ensejar a impugnação da devedora pelo agravo, ou, normalmente, por via de embargos ? [5]
Alcides de Mendonça Lima argumenta, alicerçando-se nas seguintes premissas:
1. No direito brasileiro, em virtude da posição de prevalência do credor, a única via de defesa do executado é o ajuizamento dos embargos. Desta prevalência, deriva o fato de só ser lícita discussão a respeito do título após a segurança do juízo;
2. somente se verifica contraditório no processo de execução em sentido amplo, ou seja, no conjunto formado pelo processo de execução e os embargos;
3. não existe no direito brasileiro previsão legal para a exceção de pré-executividade ou para qualquer outra forma de impugnação do título executivo, independente do depósito ou penhora. Para ele, os argumentos de Pontes de Miranda servem como valioso subsídio de lege ferenda.
"A solução, portanto, tem de ser encontrada no direito positivo, nas normas legais precisas, mormente quando revelam uma constante nos textos, que se perde no tempo." [6];
4. a ré pretende reviver antigo meio de impugnação da execução outrora existente em Portugal; entretanto, mesmo neste país, era exigível a segurança do juízo para agravar do despacho citatório da execução baseado na falta de pressuposto processual.
Logo, "não cabe ao juiz, como aplicador da lei, ou ao advogado, como arauto das partes, invocarem o direito comparado, porque nesse é outra a diretriz, por ausência de preceitos iguais aos nossos." [7];
5. a discussão do mérito, da essência do título executivo, só é possível mediante a propositura de embargos, uma vez que se constitui em provocação da apreciação de matéria de alta indagação.
Sem embargo do posicionamento externado pelo ilustre jurista Alcides de Mendonça Lima, cremos que a lição de Pontes de Miranda, contida no mencionado Parecer nº 95, revela a melhor doutrina, conforme se demonstrará adiante.
Seja como for, o certo é que até hoje a polêmica em torno da exceção de pré-executividade permanece atual, o que, todavia, não tem vedado a utilização deste instrumento por advogados, e, nem mesmo, o seu acolhimento por juizes e tribunais.
3. Conceito
LUIZ PEIXOTO DE SIQUEIRA FILHO, ressalvando aspectos relativos à denominação, define a exceção de pré-executividade como a "Argüição de nulidade feita pelo devedor, terceiro interessado, ou credor, independente de forma, em qualquer tempo ou grau de jurisdição, referente aos requisitos da execução, que suspende o curso do processo até o seu julgamento, mediante procedimento próprio, e que visa à desconstituição da relação jurídica processual executiva e conseqüente sustação dos atos de constrição material". [8]
Embora reconhecendo que o mencionado doutrinador analisa a questão por um prisma mais amplo, preferimos optar por um conceito conciso, até porque entendemos que a simples alegação da nulidade incidentalmente à execução não autoriza, por si só, a suspensão do processo executivo [9], pois, para esse fim específico, mister seria o reconhecimento expresso da verossimilhança da nulidade pelo Juízo ou a interposição de embargos (CPC, art. 791, inc. I).
Assim, definimos a exceção de pré-executividade como um instrumento de provocação do órgão jurisdicional, utilizável por quaisquer interessados, por meio do qual se permite argüir a ausência dos requisitos da execução civil, objetivando pear o ato executivo de constrição judicial.
4. Natureza jurídica
No sentir de Pontes de Miranda, a exceção de pré-executividade tinha a natureza jurídica de exceção. Mas há de se ter em mira quanto a esta afirmação o fato de que, na sistemática do Código de Processo Civil de 1.939, eram assim denominadas todas as defesas do réu que não se referissem diretamente ao meritum causae.
Hoje, não temos dúvida ao afirmar que a natureza jurídica da exceção de pré-executividade é de objeção, posto não se tratar de instrumento privativo do autor, réu ou terceiro interessado; ao contrário, as matérias arguiveis através da exceção de pré-executividade são de ordem pública, ligadas à validade da relação processual e ao direito de ação, devendo, por isso, ser conhecidas ex officio pelo juiz.
5. Inadequação terminológica
Pontes de Miranda foi o primeiro a se utilizar da denominação "exceção de pré-executividade" ao tratar da argüição da ausência dos requisitos da execução. Entretanto, conforme adverte MARCOS VALLS FEU ROSA, "a utilização da expressão ‘exceção’, na denominação ‘exceção de pré-executividade’, deve ser atribuída ao fato de seu autor (da denominação ‘exceção de pré-executividade’), Pontes de Miranda, ter proposto tal denominação sob a égide do Código de Processo Civil de 1.939. É que, àquela época, a expressão ‘exceção’ abrangia ‘toda e qualquer defesa do réu’, sendo, por isto, compreensível a utilização da mesma". [10]
Atualmente, não mais pode ser aceita a denominação em sua inteireza sem que se faça as ressalvas devidas. Preferimos seguir o entendimento de NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA ANDRADE NERY ao se referirem à "objeção" de pré-executividade:
"Mesmo sem estar seguro o juízo pode o devedor opor objeção de pré-executividade, isto é, alegar matérias que o juiz deveria conhecer de ofício, objetivando a extinção do processo de execução" (o grifo não consta do original). [11]
Com efeito, o termo "objeção" indica matéria de defesa da qual pode o juiz conhecer de ofício, a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, ao passo que "exceção" nos dá idéia de disponibilidade do direito, razão pela qual, não oposta oportune tempore, ocorre a preclusão.
MARCOS VALLS FEU ROSA revela ainda seu inconformismo com a expressão "pré-executividade", obtemperando que, "como utilizada, dá a entender que a ‘exceção de pré-executividade’ só diz respeito ao que fosse anterior à executividade, ou melhor, à formação da executividade; em outras palavras, a ‘exceção de pré-executividade’ diria respeito às matérias aferíveis no momento da decisão que analisa a petição inicial, a qual, supostamente, conferiria ‘executividade’. Ocorre que nem só na inicial deve o juiz aferir os requisitos da execução. Com efeito, no curso do processo também surgem requisitos da execução válida, que devem ser objeto de exame pelo juiz". [12]
Cita como exemplo o inciso II do artigo 618 do Código de Processo Civil, segundo o qual é nula a execução se o devedor não for regularmente citado. Entretanto, segundo nosso entendimento, nos casos do art. 618, deverá o devedor, em embargos, pedir a anulação do processo de execução. [13]
Por fim, lembra haver requisitos posteriores à penhora, conforme reconhece o Código de Processo Civil ao prever os embargos à arrematação e à adjudicação, para afinal, concluir pela afastabilidade da idéia de que "a ‘exceção de pré-executividade’ comporta apenas matérias atinentes à ‘executividade’, pois a citação, como as matérias supervenientes à penhora, por razões axiomáticas, não dizem respeito à mesma (à executividade). A denominada ‘exceção de pré-executividade’, portanto, não é nem ‘exceção’, nem ‘pré’ e nem ‘de executividade’." [14]
6. Oportunidade
Considerando que as matérias atinentes aos requisitos da execução não estão sujeitas aos efeitos da preclusão, afigura-se impossível a fixação de prazo para a apresentação da exceção de pré-executividade, sendo certo que poderá ser oferecida desde o ajuizamento da ação executiva.
Portanto, admite-se que a argüição da ausência dos requisitos da execução pode ser feita em qualquer tempo e grau de jurisdição, a teor do disposto no § 3º do artigo 267 do Código de Processo Civil, verbis:
"O juiz conhecerá de ofício, em qualquer tempo e grau de jurisdição, enquanto não proferida a sentença de mérito, da matéria constante dos ns. IV, V e VI; todavia, o réu que a não alegar, na primeira oportunidade em que lhe caiba falar nos autos, responderá pelas custas de retardamento."
Caso o devedor, citado, deixe de argüir incontinenti a ausência dos requisitos da execução, antes inclusive da penhora, deixando para fazê-lo nos embargos, não poderá, ipso facto, responder pelas custas de retardamento, posto ser justamente a oportunidade dos embargos a primeira em que lhe cabe falar nos autos. Por isto, torna-se inaplicável, neste particular, a parte final do § 3º do artigo 267 do Código de Processo Civil.
Doutro lado, deverá ser aplicado o mencionado dispositivo legal ao devedor que não argüiu a nulidade nos embargos, deixando para fazê-lo por ocasião do julgamento, na própria execução, salvo se a ausência dos requisitos disserem respeito a matérias ulteriores à oposição dos embargos.
7. Legitimidade
Na medida em que todos devem colaborar para o bom funcionamento da Justiça, entendemos possível qualquer pessoa argüir a ausência dos requisitos da execução.
Em verdade, entendemos até que a discussão acerca da legitimidade para opor exceção de pré-executividade não tem quase relevância jurídica alguma. Se por um lado, legitimado para argüir a nulidade seria a primeira vista, o devedor, por evidente interesse processual, por outro lado, também o credor tem interesse na regularidade do processo, pois nada justifica o prosseguimento de execução nula, que, ademais, nenhuma vantagem final lhe traz.
Razoável seria, ainda, admitir que o terceiro pudesse se valer da exceção de pré-executividade, visando sustar a ameaça de constrição judicial que paire sobre seus bens. Observe-se não se tratar, aqui, de intervenção de terceiro na acepção processual do termo, mas sim de simples comunicação ao juiz de que os requisitos do regular processamento da execução encontram-se ausentes.
De qualquer sorte, o que importa é a chegada até o juiz da notícia da nulidade da execução, mesmo que ressaltada, v.g., por serventuário da Justiça, pessoa estranha ao actum trium personarum.
Como adverte MARCOS VALLS FEU ROSA, "alertado para o fato de que recebeu o que não poderia ter recebido, de que deferiu o que não poderia ter deferido, de que determinou o que não poderia ter determinado, o juiz consciencioso, presumivelmente, examinará, ou reexaminará, os requisitos da execução, independentemente de quem deu o alerta." [15]
Aliás, vale ressaltar, cabe ao juiz, agindo de ofício, zelar pelo regular andamento do feito.
8. Forma
Partindo-se da premissa de que a exceção de pré-executividade consiste em levar ao juiz a notícia da falta dos requisitos necessários à formação e desenvolvimento válido do processo de execução, tem-se como pouco relevante a sua forma.
Importa que o juiz seja efetivamente alertado, a fim de que cumpra com o seu ofício, examinando, ou reexaminando, por via de conseqüência, a matéria argüida de nulidade.
O próprio Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que tal argüição dar-se-ia por simples petição nos autos do processo:
"A nulidade do título em que se embasa a execução pode ser argüida por simples petição, uma vez que suscetível de exame ex officio pelo juiz." [16]
Entretanto, não seria exagero admitir que a argüição de nulidade independe de forma e procedimentos específicos, podendo tomar, até mesmo, feição extrajudicial.
Admissível, ainda, a argüição oral da nulidade nos casos (raros) em que seja determinada a realização de audiência no processo de execução (CPC, art. 599), recomendando-se sempre que fique consignada no respectivo termo, pois, só assim será possível ter certeza da obrigatoriedade da apreciação da questão pelo juiz.
Mas, caso o juiz não profira qualquer decisão acerca da argüição de nulidade e prossiga com os atos de constrição, outra via não restará àquele que tenha seus bens ameaçados por penhora senão impetrar mandado de segurança a fim de suspender a execução.
De qualquer modo, o que importa frisar é que a argüição da ausência dos requisitos da execução independe de forma, podendo ser efetivada por escrito ou verbalmente, judicial ou extrajudicialmente.
9. Matérias arguíveis
É fora de dúvida que a argüição da ausência dos requisitos da execução envolve aquelas matérias que cabe ao juiz conhecer de ofício.
Para dar início ao processo executivo o juiz deve verificar se há título executivo judicial ou extrajudicial, base de toda execução (CPC, art. 583), sem o que não poderá ser deferida a petição inicial.
Logo, vícios pré-processuais e processuais que fulminam de nulidade o título executivo, devem ser suscitados através da exceção de pré-executividade, antes ou após a citação do executado, visando obstaculizar a penhora e o depósito, que, neste caso, não deverão subsistir.
10. Procedimento
A argüição da ausência dos requisitos da execução não tem procedimento específico, devendo ser observadas as peculiaridades de cada caso.
O que irá definir o procedimento adotado no caso de oposição da exceção de pré-executividade será a necessidade ou não de se permitir o debate nos autos acerca das provas a serem produzidas.
Entendemos não ser possível a realização de toda e qualquer prova no processo executivo, mas apenas a produção de provas preconstituídas, considerando-se estas como "a prova fornecida por instrumentos públicos, bem como particulares, constitutivos de quaisquer relações jurídicas que, segundo a lei, possam por eles ser criadas." [17]
Desta forma, não se restringiria em demasia a abrangência da exceção de pré-executividade e conciliar-se-ia sua existência com os princípios da lei.
Por outro lado, ainda que a questão versada demande, v.g., a produção de prova testemunhal, nenhum prejuízo adviria ao argüente, eis que, mais tarde, a matéria poderá ser novamente suscitada em sede de embargos, ocasião na qual será possível a produção de todos os meios de prova.
Portanto, havendo nos autos argüição de nulidade lastreada em prova preconstituída, o juiz deverá apreciá-la; não sendo suficiente a prova produzida, deve-se postergar a discussão para os embargos.
Quanto ao procedimento a ser adotado pelo magistrado a fim de decidir a exceção de pré-executividade, duas possibilidades se afiguram possíveis:
a) decidir a questão logo após a apresentação da petição ou;
b) permitir a vista dos autos pela parte contrária para que se manifeste a respeito.
A primeira hipótese (letra "a"), por violar flagrantemente o princípio do contraditório, assegurado pela Constituição Federal, não pode ser aceita. A segunda hipótese (letra "b"), mostra-se mais razoável e consentânea com os princípios processuais. E nem se afirme que tal comportamento colocaria em risco o processo de execução, que ficaria à mercê de infundadas argüições de nulidade a todo instante com o único fim de perturbar o regular andamento do feito. Não há motivo que justifique este raciocínio, pois, como sabido, cabe ao juiz zelar pelo bom andamento do processo, aplicando a sanção prevista à espécie (CPC, arts. 600, II, e 601).