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Natureza jurídica e aplicabilidade da súmula impeditiva de recurso de apelação

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A súmula impeditiva de recurso é incabível quando se pretende a desconstituição da sentença por nulidade ou vício formal do ato ou do procedimento, quando a apelação tem por fundamento distinguishing ou overruling em relação ao precedente invocado ou, ainda, quando há divergência jurisprudencial no nível dos tribunais superiores.

Resumo: O estudo empreende investigação acerca da natureza jurídica e das hipóteses de cabimento do instituto da súmula impeditiva de recurso de apelação, previsto no Código de Processo Civil, considerando as teorias tradicional e não ortodoxa.

Sumário: 1. Introdução. 2. Natureza jurídica. 3. Cabimento. 4. Conclusão. Notas. Referências.


1. Introdução

A Lei n.º 11.276/2006, que alterou a redação do art. 518 do CPC, introduziu no § 1º do mencionado dispositivo regra que permite ao magistrado deixar de receber a apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 1973, p. 1). [1] Não refere o trecho legal a entendimento de observância obrigatória pelo juiz da primeira instância, como é o caso da súmula vinculante, mas tão somente a enunciado simples do STF ou STJ, o qual, se acompanhado pelo magistrado de primeiro grau em sua livre interpretação do direito, configura, consoante o preceito legal, hipótese de inadmissibilidade do recurso de apelação.

A ideia evidente que inspira a medida é a de economia processual: se a sentença está em conformidade com o entendimento sumulado de tribunal superior, permitir que o feito prossiga pela via recursal até a instância final com o fito exclusivo de tentar-se rediscutir tese jurídica já superada pela jurisprudência representaria consciente desperdício de tempo e de recursos das partes e do Estado, em processualística protelatória e inócua, que somente beneficia o vencido. Com efeito, caso sejam admitidos a apelação e os recursos subsequentes, após o dispêndio de enorme quantidade de trabalho, tempo e dinheiro, a demanda chegará aos tribunais superiores, os quais, à luz de sua própria jurisprudência, por óbvio, decidirão da mesma forma que o juízo de primeiro grau já se havia posicionado. Objetivando evitar esse inútil e longo caminho, tornando a prestação jurisdicional mais célere e racional, obsta-se concretamente ao recurso. (NEVES, 2013, p. 651). [2]


2. Natureza jurídica

A doutrina majoritária sustenta que a súmula impeditiva constitui um pressuposto de admissibilidade específico do recurso de apelação. Para Daniel Assumpção Amorim Neves, contudo, tal afirmação “deve ser realizada com extremo cuidado”. Segundo o autor, ao efetuar o exame da compatibilidade da sentença com a súmula impeditiva de recursos, teria o magistrado de primeiro grau de realizar uma “análise do conteúdo do recurso à luz do teor da sentença”, o que, em sua visão, constitui julgamento de mérito, ultrapassando o mero cotejo dos requisitos formais que devem ser preenchidos no caso concreto para que seja autorizado o conhecimento do recurso (NEVES, 2013, p. 652). Em palavras do autor:

Para a doutrina majoritária, o dispositivo legal cria um pressuposto de admissibilidade específico da apelação, mas essa afirmação deve ser realizada com extremo cuidado. É certo que o juízo de primeiro grau não pode analisar o mérito da apelação, de competência exclusiva do tribunal de segundo grau, sendo limitada a sua atuação à análise dos pressupostos de admissibilidade recursal. Os pressupostos processuais são requisitos formais que precisam ser preenchidos no caso concreto para que o recurso seja julgado em seu mérito, não havendo nesse caso o enfrentamento do conteúdo da decisão, matéria exclusiva de direito. No caso presente, entretanto, não parece que tal circunstância se verifique, porque afirmar que a apelação não será recebida se a sentença estiver em conformidade com súmula dos tribunais superiores exige do juízo de primeiro grau uma análise do conteúdo do recurso à luz do teor da sentença, o que me parece ser julgamento de mérito. A mostra disso é que, a par da confusa redação do art. 557, caput, do CPC, a melhor doutrina entende que o julgamento monocrático do relator na hipótese de sentença em conformidade com súmula de tribunal superior seja de não provimento do recurso, ou seja, julgamento de mérito recursal. Não é possível que a mesma matéria, somente porque analisada por órgãos jurisdicionais de diferentes graus, seja ora considerada matéria de admissibilidade, ora matéria de mérito. A matéria é sempre de mérito, ainda que o legislador crie uma ficção jurídica de que no primeiro grau seja matéria de admissibilidade, sob pena de ter que confessar que o juízo de primeiro grau passou a julgar o mérito da apelação, o que seria uma tragédia para o sistema recursal brasileiro. (NEVES, 2013, p. 652)

Assiste razão ao processualista. Diferentemente do que possa parecer, a aplicação do dispositivo pelo juiz de primeira instância não pode ser efetuada pela simples comparação do teor da sentença com o da súmula impeditiva do recurso. É preciso que o magistrado analise as razões da apelação para verificar se o que se pretende pela parte é, tão somente, rediscutir a tese jurídica já superada pela jurisprudência superior ou, diversamente, afastar a aplicação da ratio decidendi a partir de distinções associadas aos fatos da demanda (distinguishing) ou, ainda, invalidar a sentença ante a arguição da ocorrência de alguma nulidade processual. Somente no caso de o recurso pretender, exclusivamente, atacar os fundamentos jurídicos do julgado que estejam em consonância com orientação sumulada do STF ou STJ é que estará autorizado o juiz de primeiro grau a “deixar de receber” a apelação, para usar a dicção legal. Nas demais hipóteses, deve o recurso ser processado, cabendo ao tribunal decidir sobre as razões da apelação, o que revela que o juízo sentenciante terá de debruçar-se sobre os fundamentos do recurso para efetuar o seu julgamento de “recepção” ou não da apelação.

Como se vê, apesar de, no entender do magistrado, estar a sentença de acordo a jurisprudência superior, há hipóteses em que estará vedado ao juiz de primeiro grau impedir o julgamento da apelação pelo tribunal (v.g, arguições de nulidade do processo ou da sentença, alegação de distinguishing ou pedido de overruling em relação à súmula do tribunal superior). Logo, para aplicar o regramento da súmula impeditiva, o órgão jurisdicional de primeiro grau terá de examinar a integralidade das razões da apelação, sem o que não poderá identificar tratar-se, na espécie, da hipótese em que a lei autoriza a negativa sumária da apelação.

Nessas circunstâncias, evidente que, na perspectiva material, está-se diante não de um requisito de admissibilidade recursal, mas, sim, de uma outorga extraordinária de competência ao juiz de primeira instância para o julgamento do mérito da apelação, quando aquele for pela improcedência desta, e desde que almeje o recurso, exclusivamente, a rediscussão da questão de direito objeto de interpretação sumulada pelos tribunais superiores. É o que afirmam Fredie Didier e Leonardo Carneiro da Cunha:

Na verdade, quando o juiz aplica o § 1º do art. 518 do CPC, ele está a negar seguimento à apelação por razões de mérito; pode-se dizer que se conferiu ao juiz, nesse caso, competência para julgar o mérito da apelação. O juiz, em outras palavras, estará negando provimento à apelação. Daí porque o tribunal já pode apreciar a sentença, no agravo de instrumento interposto dessa decisão do juiz, modificando-a. Sendo certo que o juiz, ao aplicar o § 1º do art. 518 do CPC, julga o mérito da apelação, o subsequente agravo de instrumento tem, em seu efeito devolutivo, inserida essa própria matéria de mérito, já podendo rever, ali mesmo, a sentença. (DIDIER JÚNIOR; CUNHA, 2009, p. 132) – Grifo inexistente na origem

De fato, o mérito, ou questão principal, do recurso de apelação é a alteração do dispositivo da sentença. Quando o juiz de primeiro grau aplica o § 1º do art. 518 do CPC, tem-se, como resultado, a manutenção do conteúdo da sentença sob o fundamento único de que o tribunal superior, em entendimento sumulado, compreende a matéria tal como o juiz de primeiro grau o fez no caso sentenciado. O simples fato de esse julgamento ter sido prolatado pelo juiz de primeira instância, com o efeito formal de não fazer os autos subirem ao tribunal, não altera a natureza da decisão, que é de mérito, já que diz respeito ao pedido principal do recurso e tem por fundamento decisão judicial pretérita em matéria de direito.

Este é o elemento primordial para a caracterização da decisão que aplica a súmula impeditiva como juízo não de admissibilidade, mas de mérito: o pedido principal do pleito recursal é negado exclusivamente com base em um precedente jurídico com ele incompatível. O fundamento único para a negativa ao processamento da apelação é a existência de precedente de tribunal superior em consonância com a decisão recorrida – algo que, desde sempre, serviu para motivar acórdãos da segunda instância em sede do julgamento do mérito de apelações e outras espécies recursais. Evidente, nessa perspectiva, que o conteúdo formal do ato que afirma “não receber” a apelação com fulcro no art. 518, § 1º, do CPC, constitui mera artificialidade, que apenas oculta o que verdadeiramente representa em essência, a saber, uma decisão concernente ao mérito do apelo.

A conclusão pode parecer difícil de aceitar. Com efeito, a ideia de recurs­o é ínsita à de duplo grau de jurisdição, o que equivale a afirmar que toda demanda recursal deve ser julgada em definitivo por órgão distinto do prolator da decisão recorrida. Nessa ordem de ideias, afigura-se mais fácil à mentalidade jurídica ortodoxa, em vez de aceitar que possa o juiz de primeiro grau rejeitar a apelação em análise de mérito, buscar compreender que a inovação legislativa suprimiu a possibilidade de recurso sob esse fundamento único, atribuindo ao juízo sentenciante a competência para apreciar a ocorrência dessa específica situação jurídico-processual, tal como o faz, usualmente, quando fiscaliza o cabimento das diferentes espécies recursais. Sob essa perspectiva, teria o instituto criado hipótese de extinção do direito subjetivo ao recurso de apelação, verificável, como de ordinário acontece, pelo próprio magistrado de primeira instância, a quem a lei confere competência para declarar que a parte tentou violar a regra legal que veda a demanda recursal.

Ocorre, contudo, que o nível de cognição exigido para afastar a apelação com fulcro no art. 518, § 1º, do CPC, é incompatível com um mero juízo de admissibilidade. Não opera o dispositivo uma supressão do direito ao recurso, mas, efetivamente, uma concessão extraordinária de competência ao juízo de primeiro grau para o julgamento de improcedência deste. Pode-se efetuar tal afirmação com razoável segurança, inclusive, pelo fato de que, em nossa ordem jurídica, não obstante a lógica geral do sistema ser claramente outra, no plano formal, as súmulas simples dos tribunais superiores ainda não vinculam taxativamente os juízes e tribunais. Por conseguinte, com base em sua independência funcional, é possível que o tribunal (muito embora, em assim agindo, siga na contramão do sistema), caso discorde do entendimento sumulado pelo STF ou STJ, julgue contrariamente a este, dando provimento à apelação. Ora, pois: se o tribunal, ao apreciar a apelação, não obstante esteja a sentença em conformidade com súmula de tribunal superior, pode julgar procedente o recurso, contrariando jurisprudência consolidada do STF ou STJ, resta evidente que o exame que se faz das razões da apelação à luz da sentença constitui análise de mérito e – aqui reside o ponto central – é esse mesmo exame que permitiria ao tribunal, diversamente, julgar pela improcedência da apelação, mantendo a sentença e respeitando a jurisprudência do tribunal superior. Se o juízo de provimento ou desprovimento da apelação pelo tribunal é de mérito, o que se faz na primeira instância também o é, pela simples razão de que a análise que se efetua do recurso, tanto em um como em outro grau de jurisdição, é exatamente a mesma.

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Significa dizer: materialmente, não criou o legislador, com o regime da súmula impeditiva, um pressuposto especial de admissibilidade da apelação, mas uma outorga anômala de competência ao juiz de primeiro grau para julgar o mérito do recurso quando a decisão for pela improcedência, desde que o objeto exclusivo da demanda recursal seja a defesa de tese jurídica já superada pelo STF ou STJ em enunciado sumulado. No caso de haver fundamentos outros para a apelação, ou, ainda, na hipótese de o juiz de primeiro grau reconhecer serem plausíveis os argumentos suscitados pelo apelante, permanece com o tribunal a competência para apreciação do recurso, vez que não está o juízo de primeira instância autorizado a julgar pela procedência da apelação. Tal como o plenário da corte, por disposição legal ou regimental, em certos casos, confere ao relator ou ao órgão fracionário competência para decidir em nome do inteiro tribunal, há, aqui, uma repartição legal inabitual de jurisdição entre a segunda e a primeira instâncias, autorizando-se o juiz singular a julgar tão somente pela improcedência da apelação, quando presentes os elementos específicos do instituto da súmula impeditiva. [3] E, por constituir o quadro descrito situação atípica e incompatível com a concepção tradicional de sistema recursal, prefere a doutrina majoritária identificar teoricamente o novo instituto como uma supressão do direito de apelação naquela hipótese específica, com outorga ao juiz de primeira instância da competência para declarar que a parte tentou violar essa disposição legal – apreciação do cabimento do recurso, que integra o juízo de admissibilidade recursal.

Registre-se, a esse respeito, que não se pode afirmar estar a doutrina ortodoxa integralmente equivocada. Do ponto de vista formal, vale dizer, do que se extrai da literalidade do texto legal, é a não violação a  súmula impeditiva de recurso, ainda que artificialmente, um requisito específico de admissibilidade da apelação. Comunga-se desse entendimento (repise-se, tão somente sob o aspecto formal) porque, segundo o § 1º, do art. 518, do CPC, o juiz “não receberá” o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal. E a expressão “receber”, no contexto do sistema recursal disciplinado no CPC, diz respeito à admissibilidade do recurso, que é efetuada, em um primeiro momento, pelo órgão prolator da decisão recorrida. Ademais, o § 2º, do art. 518, do CPC, dispõe expressamente que, após exarar a decisão recebendo ou não a apelação, o magistrado mandará dar vista ao apelado para oferecer contrarrazões e, apresentada a resposta, “é facultado ao juiz, em cinco dias, o reexame dos pressupostos de admissibilidade do recurso” (BRASIL, 1973, p. 1). Logo, inegável que a intenção do legislador foi reputar a súmula impeditiva qual requisito de admissibilidade do recurso de apelação – naturalmente, com o intuito de ocultar que criava hipótese esdrúxula de apreciação do mérito recursal pelo juízo de primeiro grau.

Tal ficção formal, contudo, possui uma importante finalidade prática: na medida em que o julgamento do mérito do recurso fica artificialmente reconhecido como juízo de admissibilidade, a rejeição do apelo pelo magistrado de primeira instância passa a ser impugnável por agravo de instrumento, de sorte a permitir-se o efetivo controle da decisão relativa à procedência da demanda recursal por órgão jurisdicional diverso do prolator da decisão recorrida, sem que tenha o jurisdicionado, para tanto, de socorrer-se da ação autônoma do mandado de segurança.

Isto é: a qualificação formal da decisão do art. 518, § 1º, do CPC enquanto juízo de admissibilidade do recurso permite o destrancamento da apelação pela via do agravo de instrumento, o qual acaba por levar a apelação, efetivamente, ao crivo da segunda instância. Fredie Didier e Leonardo Carneiro da Cunha, a propósito, esclarecem que, em encontro promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual, a Ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça, defendeu ser possível, nessa hipótese, a aplicação analógica da regra sobre o agravo nos próprios autos, previsto no art. 544, do CPC, [4] de sorte a que o recurso cuja finalidade exclusiva seja o destrancamento da apelação possa ser anexado à íntegra dos autos principais e, após a resposta do agravado, suba o feito por inteiro ao tribunal, tudo com o fito de que, estando a sentença em desacordo com a súmula ou jurisprudência dominante de tribunal superior, possa o relator conhecer do agravo de instrumento e já dar provimento à própria apelação ou, ainda, determinar a conversão do agravo em apelação, observando-se, daí em diante, o procedimento desta (DIDIER JÚNIOR; CUNHA, 2009, p. 131).

Em síntese: operou mal o legislador na redação do art. 518, § 1º, do CPC. Disse que a pretensão, em sede de apelação, que visa exclusivamente à rediscussão de julgado fundado em súmula de tribunal superior é hipótese de não cabimento do recurso, configurando a decisão que aprecia tal ocorrência um juízo de admissibilidade, quando, pelo nível de cognição da arguição, está-se nitidamente diante de um juízo de mérito. Apesar disso, o órgão jurisdicional que incumbiu do exame é o que ordinariamente efetua juízos de admissibilidade, e não de mérito. O instituto é de difícil compreensão porquanto singular. Ser estranho, contudo, não significa ser impassível de definição teórica, vez que, no máximo, pode ser qualificado de sui generis, desde que bem delineado em sua essência. O problema, nesse caso, é que o entendimento da natureza de um instituto que, em si, já  é complexo, porquanto inovador, tornou-se ainda mais dificultoso pela má redação do dispositivo legal. Deveria o legislador ter dito que, na hipótese de o apelante buscar unicamente rediscutir entendimento constante da sentença e já consagrado pela jurisprudência superior, estaria facultado ao juiz de primeiro grau, excepcionalmente, negar seguimento à apelação, em decisão impugnável por agravo nos próprios autos, conversível em apelação na segunda instância. Assumir-se-ia, com essa posição, a realidade de que, em competência delegada do tribunal, efetua o magistrado a quo, nessa específica situação jurídico-processual, um julgamento do mérito da apelação, o qual, pela excepcionalidade do instituto, somente se pode dar no sentido da improcedência da demanda. Ter-se-ia, igualmente, expressa previsão legal do recurso cabível na espécie, a saber, o agravo nos próprios autos, a exemplo do que já ocorre nos tribunais superiores com os recursos especial e extraordinário, dispensando que tal sistemática se tenha de dar, como hoje ocorre, sob a égide de uma sempre questionável aplicação analógica.


3. Cabimento

Superada a questão da natureza jurídica do instituto, cumpre analisar mais detidamente suas hipóteses de cabimento. Tiago Asfor Rocha Lima (2013, p. 370) entende que, dado o caráter nitidamente vinculante das decisões do STF e STJ proferidas no âmbito da repercussão geral em recurso extraordinário e do julgamento concentrado de recursos especiais repetitivos, também nesses casos deveria ser aplicado o art. 518, § 1º, do CPC, quando a sentença estiver em consonância com a ratio decidendi de tais pronunciamentos. Segundo o autor, referida conclusão decorre da interpretação sistemática dos dispositivos, vez que os julgamentos de RE e REsp, na forma acima indicada, “possuem atualmente mais força e autoridade do que as próprias ‘súmulas’ de tais cortes,” visto que impõem tanto a retenção e o reexame dos recursos especial e extraordinário, quando o acórdão recorrido diverge do entendimento superior, quanto a negativa de seguimento, quando o acórdão objurgado está conformidade com a orientação da corte superior (LIMA, 2013, p. 370).

Nesse sentido, Luiz Guilherme Marinoni (2013, p. 519) avança ao ponto de afirmar que “embora o texto da norma fale em súmula, hoje, como é óbvio, o precedente de tribunal superior é suficiente para impedir o recebimento de recurso que a ele diretamente se opõe”. Importante registrar, porém, que, embora possa parecer extremamente dilargada a interpretação proposta, considera o autor como “precedente”, tão somente, “a decisão judicial dotada de determinadas características, basicamente a potencialidade de se firmar como paradigma para a orientação dos jurisdicionados e dos magistrados”, isto é, a que verse sobre matéria de direito, enfrente todos os argumentos relacionados à questão jurídica e não se limite a reproduzir a letra da lei ou o teor de decisão pretérita (MARINONI, 2013, p. 213).

A doutrina, contudo, também identifica situações em que não deve ser aplicado o dispositivo. Fredie Didier e Leonardo José Carneiro da Cunha, exemplificativamente, elencam cuidadoso rol de hipóteses em que não cabe a negativa da apelação pelo juízo de primeira instância. Sustentam os autores:

O § 1º do art. 518, do CPC, não se aplica em cinco situações: a) se apelação tiver por fundamento error in procedendo, pretendendo o apelante invalidar a decisão judicial; b) se o apelante discutir a incidência da súmula no caso concreto; nesse caso, o recorrente não discute a tese jurídica sumulada: alega, isso sim, que o caso não se subsume à hipótese normativa consolidada jurisprudencialmente (procede ao distinguishing); c) se o apelante trouxer em suas razões fundamento novo, não examinado pelos precedentes que geraram o enunciado da súmula do STF ou STJ, que permitam o overruling do precedente; d) se houver choque de enunciados do STF e do STJ sobre o mesmo tema, como se vê, por exemplo, dos enunciados 621, STF e 84, STJ, sobre o compromisso de compra e venda; e) se, embora sem choque entre enunciados dos tribunais superiores, houver divergência manifesta de posicionamento entre o enunciado de um e a jurisprudência dominante do outro (por exemplo, o STJ não aplica a tese consagrada no enunciado n.º 622 da súmula do STF). (DIDIER JÚNIOR; CUNHA, 2009, p. 130)

Parece evidente que, nos termos da lei, descabe a aplicação da súmula impeditiva quando o recurso versar sobre nulidade do processo ou da sentença, bem como quando o apelante sustente a ocorrência de distinguishing ou a necessidade de overruling do entendimento fixado pelo tribunal superior. De fato, em tais hipóteses, não se visa, exclusivamente, à rediscussão da tese jurisprudencial acolhida pelo sentenciante, mas, diversamente, à anulação do julgado por inadequação formal ou erro de procedimento, ou, ainda, à modificação do dispositivo com base na inaplicabilidade do precedente ou na injustiça do paradigma, que se tornou obsoleto pelo decurso do tempo ou pela alteração das condicionantes sociais. Nessas circunstâncias, não há que se falar em negativa de seguimento ou em “inadmissibilidade” da apelação pelo juízo de primeiro grau, pois se mostra imprescindível a manifestação da segunda instância acerca das alegações do recorrente. Inexiste previsão legal para a restrição ao curso da apelação nessas hipóteses, pelo que deve o magistrado “receber” o recurso e encaminhá-lo para o efetivo processo e julgamento no tribunal.

 As demais situações aventadas pelos autores, contudo, não obstante condigam com a razoabilidade e a lógica do instituto, já não parecem tão evidentes: são elas o a) choque entre enunciados do STF e do STJ ou b) entre o enunciado de um e a jurisprudência dominante do outro. Aqui, sob uma leitura rápida, poder-se-ia imaginar ser possível aplicar o art. 518, § 1º do CPC: afinal, há súmula de tribunal superior consagrando o entendimento acolhido na sentença. A divergência jurisprudencial no nível das cortes de maior grau, contudo, aponta para a possível plausibilidade da tese do recorrente, diante do que negar-se a revisão da sentença pela segunda instância, nessas circunstâncias, configuraria opção temerária. Tiago Asfor Rocha Lima concorda com essa interpretação, ao reproduzir, no trabalho multicitado, os cenários vislumbrados por Fredie Didier e Leonardo Carneiro da Cunha como insuscetíveis de atraírem a aplicação do dispositivo que impede o recurso de apelação (LIMA, 2013, p. 370).

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Sobre o autor
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - dupla diplomação. Ex-Assessor da Justiça Federal de Primeira Instância na 5ª Região. Ex-Assessor do Ministério Público Federal na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva. Natureza jurídica e aplicabilidade da súmula impeditiva de recurso de apelação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4106, 28 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30177. Acesso em: 19 abr. 2024.

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