5. O GIRO LINGUÍSTICO NA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL – PLANO DE EFICÁCIA DAS NORMAS
Apesar de todos os pontos destacados que fundamentem a usucapião do bem público, partimos em busca do real sentido da interpretação constitucional, a qual, a nosso sentir, veda a possibilidade objeto do trabalho.
Esta ideia é relida por Heidegger e o método da redução eidética deve reduzir tudo aquilo da coisa que não seja a sua essência, logo, a partir da retirada do que dispensável, conheceríamos a coisa em si.
Seguindo o nosso giro hermenêutico paramos em Hans-Georg Gadamer, filósofo de fundamental importância para a interpretação constitucional.
Gadamer aprofundou os trabalhos de Heidegger e contrapôs o argumento da mera redução eidética do campo subjetivo para o campo sincrético. É que para Martin Heidegger a interpretação seria ato subjetivo sendo então impossível retirar dela elementos como o preconceito.
A linguagem seria então o indício da finitude de nosso conhecimento, assim a única maneira de superar o texto subjetivo da interpretação, contaminada pelos preconceitos do leitor, seria a construção de um horizonte que unisse ambos: autor e leitor em um só ponto.
Diz o Gadamer que: “a estreita presença que unia na sua origem a hermenêutica filológica com a jurídica apoiava-se no reconhecimento da aplicação com o momento integrante de toda a compreensão. Tanto para a hermenêutica jurídica quanto para a teleológica, é constitutiva a tensão que existe entre o texto proposto – da lei ou do anúncio – e o sentido que alcança sua aplicação ao instante concreto da interpretação, no juízo ou na pregação. Uma lei não quer ser entendida historicamente. A interpretação deve concretizá-la em sua validez jurídica”.( p. 474.1960)
Podemos ainda citar Bernardo Gonçalves Fernandes que ao construir a sua teoria da decisão a partir das obras de Lenio Streck diz: “o direito e as decisões judiciais não podem ser entendidas como um conjunto assistemático e esparso que não guarda interconexões com a comunidade de princípios (Dworkin) e a tradição (Gadamer) no qual estão inseridos. Se os capítulos de um romance estão escritos por vários autores devem guardar uma conexão interna de tal modo que cada autor continue a historia de seu antecessor de forma coerente (impedindo que o romance vire um conjunto de contos desconexos), afinal é um romance em cadeia) o mesmo deve acontecer com as decisões judiciais, que nada mais são do que a continuidade de uma história institucional. Ou seja, decisões judiciais não podem e não devem ser dadas (arbitrariamente) ad hoc.”(249, 2012)
Diante deste contexto hermenêutico e da interpretação dispensada ao conjunto sistemático de bens públicos, usucapião aliados à dignidade da pessoa humana, princípios da administração pública, direito à moradia, entendemos como inaplicável a usucapião dos bens públicos e isto por mais de um motivo:
A) O plano das normas constitucionais acentua-se acima do plano da legislação ordinária, o que não permite o seu choque ou colidência; assim, jamais a constituição está em choque com a lei, ao contrário, caso esta não seja pertinente ao texto maior estará relegada ao ostracismo, ao exílio da inconstitucionalidade. Assim, jamais a lei do Minha Casa, Minha Vida poderá dispor sobre vedação constitucional;
B) O juízo de interpretação constitucional deve ser adequado pelo intérprete, de modo que una, em um só plano, o antigo texto escrito aos atuais anseios de uma sociedade plúrima, justa e digna sem que comungue a construção de uma lei maior paralela, método este de mutação constitucional que desalinhe ao conteúdo programático do texto; mas, também não se pode perder de vista o desserviço da fossilização constitucional;
C) Assim, ainda que se entenda pela obsolescência da vedação constitucional, sua alteração somente será feita por meio de emenda constitucional, pois aquele plano superior merece a alteração por norma de mesmo quilate, porém, nada impede que no plano inferior, seja regulamentado um modo – legal, impessoal, moral, público e eficiente-, da utilização do bem dominical e sua disposição à sociedade.
NOTAS FINAIS
A título de finalização do presente trabalho e um posicionamento crítico acerca do exposto, entendemos, mesmo assim, pela impossibilidade da usucapião do bem público; isto porque nos filiamos ao pensamento de supremacia constitucional e onde esta peremptoriamente determinou, não caberá a contradição ou a liquefação por leis hierarquicamente inferiores.
Entendemos que a construção da usucapião do bem público deve ter uma base sólida e fundamentada em normas e princípios. O texto constitucional escapa do alcance hermenêutico que o faça se contradizer, devendo então ser dado ao caso uma intepretação fechada.
Ainda que saibamos das mazelas que assolam à má gestão da coisa pública, das mazelas e idiossincrasias que corroem o poder público brasileiro, não podemos justificar nisto o caminho para a anarquia, para a ausência do estado.
São nossas considerações.
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Notas
[1] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana
[2] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
[3][3] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. § 1º - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º - Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
[4] Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
[5] Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.
[6]
Art. 99. São bens públicos:
I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;
II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;
III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.
Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado.
[7] Art. 101. Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei.
Art. 102. Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião.
[8] Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
[9]Dominicais e Demais Bens Públicos - Usucapião
Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.
[10] Nosso marco teórico está centrado nas obras de Zygmunt Bauman, Modernidade Líquida e Vida a Crédito. Citamos: As realidades cadavéricas, rígidas, restritas, sólidas e impassíveis deveriam ser, teriam de ser, seria) fundidas em nome de realidades ainda mais sólidas, imunes ao acaso, a mudança não planekada, não intencionais e não controladas, invulneráveis aos caprichos do destino. As realidades sólidas que ainda existem precisam ser derretidas, exatamente porque não são sólidas o bastante, não tão sólidas quantos as realidades que a razão e as habilidades humanas podem projetar e atualizar se forem seriamente aplicadas. (2010, p.133)
[11] Obra Anjos de Rafael
[12] as normas constitucionais de princípio são classificadas como normas constitucionais de eficácia limitada, pois dependem de outras normas para produzir os efeitos desejados pelo legislador originário. (Silva, J.A., 2002)