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Eficácia erga omnes no controle concentrado de constitucionalidade e sistema de precedentes vinculantes no Brasil

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3. ADPF

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) constava do texto original da CF/88 qual norma de eficácia limitada, na medida em que o art. 102, parágrafo único, limitava-se a fixar, para seu julgamento, a competência do Supremo Tribunal Federal, remetendo à legislação ordinária a delimitação de seu cabimento, rito e demais caracteres distintivos. A Emenda Constitucional n.º 3, de 17 de março de 1993, que instituiu a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), transformou o parágrafo único, do art. 102, da CF/88, em § 1º, sem, contudo, alterar a redação do dispositivo (BRASIL, 1988, p. 1). [11]

O instituto foi regulamentado pela Lei n.º 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Segundo o art. 1º, da mencionada lei, a ação tem por finalidade “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público” (BRASIL, 1999, p. 1). Nos termos do parágrafo único, do art. 1º, cabe também a ADPF “quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição” (BRASIL, 1999, p. 1).

3.1. Cabimento

A ADPF possui natureza nitidamente subsidiária: consoante o art. 4º, § 1º, da Lei n.º 9.882/99, “não será admitida arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade” (BRASIL, 1999, p. 1). Comentando a aplicação do princípio da subsidiariedade no cabimento da ADPF, Gilmar Ferreira Mendes aduz que a interpretação do dispositivo deve ser efetuada à luz do caráter objetivo da jurisdição do Supremo Tribunal Federal, e não tendo em vista possíveis pretensões subjetivas, que demandariam o exaurimento da inteira atividade cognitiva do Poder Judiciário. Em palavras do autor:

De uma perspectiva estritamente subjetiva, a ação somente poderia ser proposta se já se tivesse verificado a exaustão de todos os meios eficazes de afastar a lesão no âmbito judicial. Uma leitura mais cuidadosa há de revelar, porém, que na análise sobre a eficácia da proteção de preceito fundamental nesse processo deve predominar um enfoque objetivo ou de proteção da ordem constitucional objetiva. Em outros termos, o princípio da subsidiariedade – inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesão –, contido no § 1º do art. 4º da Lei n.º 9.882/99, há de ser compreendido no contexto da ordem constitucional global. (...) No caso brasileiro, o peito a ser formulado pelos órgãos ou entes legitimados dificilmente versará – pelo menos de forma direta – sobre a proteção judicial efetiva de posições específicas por eles defendidas. A exceção mais expressiva reside talvez na possibilidade de o Procurador-Geral da República, como previsto expressamente no texto legal, ou qualquer outro ente legitimado, propor a arguição de descumprimento a pedido de terceiro interessado, tendo em vista a proteção de situação específica. Ainda assim o ajuizamento da ação e a sua admissão estarão vinculados, muito provavelmente, ao significado da solução da controvérsia para o ordenamento constitucional objetivo, e não à proteção judicial efetiva de uma situação singular. Assim, tendo em vista o caráter acentuadamente objetivo da arguição de descumprimento, o juízo de subsidiariedade há de ter em vista, especialmente, os demais processos cabíveis já consolidados no sistema constitucional. Nesse caso, cabível a ação direta de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade, não será admissível a arguição de descumprimento. Em sentido contrário, não sendo admitida a utilização de ações diretas de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade – isto é, não se verificando a existência de meio apto para solver controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata – há de se entender possível a utilização da arguição de descumprimento de preceito fundamental. É o que ocorre, fundamentalmente, nas hipóteses relativas ao controle de legitimidade do direito pré-constitucional, do direito municipal em face da Constituição Federal e nas controvérsias sobre direito pós-constitucional já revogado ou cujos efeitos já se exauriram. Nesses casos, em face do não cabimento da ação direta de inconstitucionalidade, não há como deixar de reconhecer a admissibilidade da arguição de descumprimento. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 1097-1099)

Logo, a inexistência de “outro meio eficaz de sanar a lesividade” não diz respeito à possibilidade de solução da questão por toda e qualquer demanda judicial prevista no direito brasileiro, o que, em verdade, tornaria a ADPF praticamente despida de aplicabilidade; trata-se, ao revés, da inviabilidade de utilização de outra ação constitucional, de competência do Supremo Tribunal Federal, apta a resolver questão de interesse à estabilidade da ordem jurídico-constitucional objetiva de forma ampla, geral e imediata. Isto é: em regra, o STF não conhecerá da ADPF se for cabível, para a solução da controvérsia, ADIN ou ADC; o fato, contudo, de não serem admissíveis as mencionadas ações de controle abstrato na hipótese não assegura que seja conhecida a arguição de descumprimento, a qual será recebida somente quando a corte constatar que, para aquele caso concreto, inexiste algum meio processual apto a sanar, com efetividade real, o estado de lesividade (PAULO; ALEXANDRINO, 2012, p. 902-903). [12]

Nessa perspectiva, ensina Gilmar Ferreira Mendes (2007, p. 1099-1100) que é cabível ADPF para: a) controle de legitimidade do direito pré-constitucional, do direito municipal em face da Constituição Federal e nas controvérsias sobre direito pós-constitucional já revogado ou cujos efeitos já se exauriram; b) pretensão que objetive a declaração de constitucionalidade de lei estadual ou municipal que tenha sua legitimidade questionada nas instâncias inferiores do Poder Judiciário; c) controvérsias relacionadas com o princípio da legalidade (lei e regulamento); d) casos que envolvam a aplicação direta da Constituição, com alegação de contrariedade a dispositivo constitucional decorrente de decisão judicial ou controvérsia sobre interpretação adotada pelo Judiciário que não envolva a aplicação de lei ou normativo infraconstitucional; e) controvérsias concretas fundadas na eventual inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, aptas a dar ensejo a quantidade significativa de demandas (feição objetiva da discussão, que não dá ensejo a ADIN ou ADC mas poderia ser resolvida por ação ordinária ou recurso extraordinário, nem por isso violadoras, contudo, da subsidiariedade da ADPF, por força de seu caráter marcadamente objetivo); f) solubilidade de incongruências hermenêuticas e confusões jurisprudenciais decorrentes dos pronunciamentos de múltiplos órgãos, com possibilidade de ameaça a preceito fundamental, sempre que uma definição imediata da controvérsia mostrar-se necessária para afastar aplicações erráticas, tumultuárias ou incongruentes. [13]

 Ainda acerca do cabimento, cumpre registrar a existência da ADIN n.º 2.231-8, de 2000, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, atualmente pendente de julgamento, em que, no dia 5 de dezembro de 2001, foi proferido voto pelo relator, Min. Néri da Silveira, no sentido de deferir, em parte, o pedido de liminar, com relação ao  inciso  I,  do parágrafo único, do art. 1 º, da Lei n.º 9882/99, para excluir, de  sua  aplicação “controvérsia  constitucional concretamente já posta em juízo”, o que faria com eficácia ex nunc, até o julgamento final da ação direta. No mesmo voto, o relator manifestou-se favoravelmente ao deferimento da medida cautelar, com idênticos efeitos, para suspender o § 3º do art. 5 º, da mesma lei. Depois do voto do relator, pediu vista o Min. Sepúlveda Pertence, a qual foi renovada, justificadamente, no dia 28 de abril de 2004. Após isso, e até à presente data, não se manifestou o plenário do STF, quer sobre a medida liminar, quer sobre o mérito da ação (BRASIL, 2004, p. 1).

3.2. Legitimidade e procedimento

Nos termos do art. 2º, da Lei n.º 9.882/99, têm legitimidade para propor a ADPF os que a lei autoriza a propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade. Faculta-se ao interessado, contudo, mediante representação, solicitar a propositura da arguição de descumprimento de preceito fundamental ao Procurador-Geral da República, que, examinando os fundamentos jurídicos do pedido, decidirá acerca da viabilidade do seu ingresso em juízo (BRASIL, 1999, p. 1).

A petição inicial da ADPF deve conter: a) a indicação do preceito fundamental que se considera violado; b) a indicação do ato questionado; c) a prova da violação do preceito fundamental; d) o pedido, com suas especificações; e) se for o caso, a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental que se considera violado. Quando não houver cabimento, faltar algum dos requisitos prescritos em lei ou for inepta, a exordial será indeferida liminarmente pelo relator,  em decisão passível de agravo, no prazo de 5 (cinco) dias, para o órgão colegiado do tribunal. (BRASIL, 1999, p. 1).

Havendo pedido de liminar, o relator poderá ouvir os órgãos ou autoridades responsáveis pelo ato questionado, bem como o Advogado-Geral da União ou o Procurador-Geral da República, no prazo comum de 5 (cinco) dias. Salvo em caso de extrema urgência, perigo de lesão grave ou no período do recesso, quando poderá ser deferida ad referendum do plenário, a liminar será concedida pelo voto da maioria absoluta dos membros do tribunal, o que equivale ao voto de 6 (seis) ministros (BRASIL, 1999, p. 1).

Nos termos do § 3º, do art. 5º, da Lei n.º 9.882/99, a medida liminar determinada pela corte em sede de ADPF poderá consistir na determinação de que “juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da arguição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes da coisa julgada.” (BRASIL, 1999, p. 1) Recorda-se que o dispositivo foi questionado por meio da ADIN n.º 2.231-8, de 2000, em que, no dia 5 de dezembro de 2001, foi proferido voto pelo relator, Min. Néri da Silveira, no sentido da inconstitucionalidade da referida norma. O julgamento, porém, foi suspenso em virtude de pedido de vista pelo então Min. Sepúlveda Pertence, que perdura até os dias atuais, diante do que subsiste a aplicabilidade do texto impugnado (BRASIL, 2004, p. 1).

O rito da ADPF conta com a requisição de informações às autoridades responsáveis pela prática do ato questionado, as quais devem ser prestadas no prazo de 10 (dez) dias. É possível ao relator, ouvir as partes nos processos que ensejaram a arguição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria. A critério do relator, e por requerimento dos interessados, poderão ser autorizadas sustentação oral e juntada de memoriais. Findo o prazo para as informações, o Ministério Público, quando não funcionar como parte, terá vista do processo para exarar parecer no prazo de 5 (cinco) dias. Após, o relator lançará o relatório, com cópia a todos os ministros, e pedirá dia para julgamento, o qual ocorrerá respeitado o quorum de 8 (oito) ministros (BRASIL, 1999, p. 1).

3.3. Eficácia geral e efeito vinculante

Nos termos dos arts. 10 a 14, da Lei n.º 9.882/99, [14] a decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido em arguição de descumprimento de preceito fundamental é irrecorrível e não pode ser objeto de ação rescisória. Efetuado o julgamento de mérito, cópia da ata da sessão do STF será encaminhada às autoridades responsáveis pela prática do ato, as quais ficarão adstritas às condições e modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental fixadas pelo Supremo na apreciação da demanda. O presidente do tribunal determinará aos órgãos autores do ato lesivo o imediato cumprimento da decisão, sendo que o acórdão será lavrado posteriormente. Dentro do prazo de 10 (dez) dias a contar do trânsito em julgado da decisão, sua parte dispositiva será publicada em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União (BRASIL, 1999, p. 1).

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Nos termos do art. 10, § 3º, da Lei n.º 9.882/99, à semelhança do que ocorre em sede de ADIN e ADC, a decisão no processo de ADPF terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública federal, estadual e municipal. Outrossim, caso efetue declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo no processo de arguição de descumprimento de preceito fundamental, poderá o STF, “tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social”, por maioria de 2/3 de seus membros, o que equivale ao voto de 8 (oito) ministros da corte, modular os efeitos da declaração, por restringir sua aplicabilidade ou decidir que só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado – eficácia pro futuro (BRASIL, 1999, p. 1).

A diferença entre a decisão em ADPF e a prolatada nos procedimentos de ADIN e ADC resulta, tão somente, da amplitude do objeto de impugnação na arguição de descumprimento. Nesta, poderá o STF declarar a legitimidade ou ilegitimidade do ato vergastado, o qual, se for normativo, dará ensejo à aplicação das técnicas de decisão do controle abstrato de constitucionalidade (item 2.4, supra). Caso o objeto seja o direito pré-constitucional, contudo, limitar-se-á o tribunal a reconhecer a recepção ou não da lei em face da norma constitucional superveniente; incidindo, porém, sobre ato de efeito concreto, a exemplo de um ato administrativo singular ou sentença, a declaração será de legitimidade ou ilegitimidade do objeto, a qual, contudo, pode vir acompanhada de declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei sobre que se funda o ato impugnado (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 1119-1120).


4. Conclusão

O que se instituiu no Brasil, em sede de ADIN e ADC, foi, de modo inequívoco, uma específica modalidade de precedente formalmente vinculante em um sistema jurídico de tradição reconhecidamente romanista. Trata-se de inovação que alterou sobremaneira a postura dos cientistas e profissionais do Direito, na medida  em que se viram obrigados a acompanhar com especial atenção a atividade judiciária do Supremo Tribunal Federal, o qual passou a interferir diretamente no conteúdo do ordenamento jurídico. A sistemática do controle concentrado de constitucionalidade, com decisão do STF dotada de eficácia erga omnes e efeito vinculante, de observância obrigatória pelos demais órgãos do Poder Judiciário e pela Administração Pública federal, estadual e municipal, é demonstração evidente da aproximação entre os sistemas jurídicos de common law e civil law pela via do prestígio da jurisprudência como fonte do Direito. Mais que isso, foi o estopim de um processo de transformação do Judiciário brasileiro que culminará com a vinculação às decisões dos tribunais superiores como regra, nos moldes do PLNCPC.

No caso da ADPF, o efeito legal das decisões do STF também é exemplo claro do ganho de influência dos precedentes judiciais no direito brasileiro. A eficácia geral e o efeito vinculante da decisão que resulta do processo, dotado de objeto nitidamente mais amplo que o da ADIN e da ADC, evidenciam, mais uma vez, a tomada de consciência da comunidade jurídica brasileira acerca da necessidade de estruturar o Judiciário nacional a partir de um sistema de precedentes vinculantes. O esforço em dar aplicabilidade ao regramento constitucional relativo à arguição de descumprimento de preceito fundamental, ante o caráter subsidiário de seu cabimento na jurisdição constitucional, revela não se tratar a inovação de simples empenho por reduzir a carga de processos distribuídos ao Supremo Tribunal Federal, mas de uma normativa consciente, direcionada a propiciar uma jurisdição mais célere, isonômica e de resultados, que passa pela reafirmação do papel de corte constitucional do STF e pela utilização racional do trabalho da Corte Maior pelos órgãos judiciários de inferior instância. Na medida em que até mesmo a Administração Pública passou a estar vinculada às decisões do Supremo em sede de controle de constitucionalidade, alteraram-se sobremaneira as próprias bases do processo decisório brasileiro, em transformação radical e abrupta, como sói suceder nas mudanças históricas, verdadeiramente significativas.

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Sobre o autor
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - dupla diplomação. Ex-Assessor da Justiça Federal de Primeira Instância na 5ª Região. Ex-Assessor do Ministério Público Federal na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva. Eficácia erga omnes no controle concentrado de constitucionalidade e sistema de precedentes vinculantes no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4104, 26 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30502. Acesso em: 24 dez. 2024.

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