Resumo: O trabalho examina os procedimentos de controle concentrado de constitucionalidade no Brasil, com ênfase para os efeitos da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal e seus reflexos na teoria e na prática do Direito no País.
Sumário: 1. Introdução. 2. ADIN e ADC. 2.1. Legitimidade ativa e participação do Ministério Público. 2.2. Procedimento. Medida cautelar. 2.3. Distinções entre os procedimentos de ADIN e ADC. 2.4. Efeitos da decisão. 3. ADPF. 3.1. Cabimento. 3.2. Legitimidade e procedimento. 3.3. Eficácia geral e efeito vinculante. 4. Conclusão. Notas. Referências.
1. Introdução
A importância recentemente conferida ao precedente no direito brasileiro se evidencia, com especial destaque, na eficácia geral outorgada às decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Por expressa disposição legal, determinadas decisões do STF são dotadas de efeito vinculante e eficácia contra todos, pelo que se configuram precedentes de observância obrigatória pelos órgãos do Poder Judiciário no julgamento de questões que envolvam a temática previamente apreciada pelo Supremo. Trata-se de regramento voltado a promover a economia processual e a racionalidade da jurisdição superior, que se via, repetidas vezes, diante de uma mesma questão de direito. O resultado do esforço voltado a conter tal problemática foi o estabelecimento inequívoco de um sistema de precedentes formalmente obrigatórios, que, a par da pretendida desobstrução do STF, propiciou maior estabilidade, isonomia e segurança na interpretação e aplicação do direito.
Nos termos da CF/88, o Brasil adotou dois modelos de controle de constitucionalidade de normas, a saber, o norte-americano, também denominado concreto, incidental ou difuso, e o austríaco, nominado pela doutrina de controle concentrado, direto ou abstrato da regularidade constitucional de lei ou ato normativo (SCHULZE; GONÇALVES, 2013, p. 1). O controle difuso se dá pela atuação de todos os membros do Poder Judiciário, os quais, no julgamento das demandas que lhes são submetidas, têm o poder-dever de afastar a aplicação da norma que resulte em inconstitucionalidade no caso concreto. No âmbito do STF, o controle difuso é efetuado, em regra, por meio do recurso extraordinário, cabível, presente a repercussão geral, quando a decisão recorrida contrariar dispositivo da CF/88 (defesa direta do texto constitucional), declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal (competência do Supremo para apreciar, em última instância, a violação a norma constitucional) ou julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição (controle da constitucionalidade formal do ato local à luz da competência legislativa ou administrativa da União, Estados e Municípios, de base constitucional, ou da constitucionalidade material da medida impugnada, quando viole frontalmente dispositivo da Constituição), tudo nos termos do art. 102, III c/c § 3º, da CF/88 (BRASIL, 1988, p. 1).[1]
O controle concentrado, por sua vez, ocorre, no Brasil, precipuamente, na forma da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), todas previstas diretamente no texto constitucional (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 1048-1119). [2] É sobre essa última forma de controle jurisdicional da supremacia da Constituição que se debruça o presente estudo, tendo em vista os efeitos impostos por lei à decisão judicial prolatada nessa espécie de tutela jurisdicional.
2. ADIN e ADC
Previstas no art. 102, I, “a” c/c art. 103, da CF/88, [3] a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) e a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) são os instrumentos cabíveis, respectivamente, para a impugnação e a sustentação, em caráter abstrato, de lei ou ato normativo federal ou estadual (no pedido declaratório de inconstitucionalidade) e lei ou ato normativo federal (na ação que solicita o reconhecimento da constitucionalidade), em processo de competência originária do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 1988, p. 1). A alegação de inconstitucionalidade, na ADIN, é efetuada em tese, independentemente de comprovação do cerceamento concreto de direito constitucional de pessoa física ou jurídica, pública ou particular. Na ADC, ação em que se busca apenas a confirmação da constitucionalidade da norma, exige-se, tão somente, a demonstração prévia da existência de controvérsia judicial acerca da constitucionalidade da lei ou ato normativo que, aqui, somente pode ser federal (BRASIL, 1999, p. 1). Trata-se de instrumentos que remontam à Constituição Brasileira de 1934, que instituiu a declaração de inconstitucionalidade prévia à intervenção federal, a qual foi aperfeiçoada pela EC n.º 16, de 1965, sob a égide da Constituição de 1946 (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 985-986). Até a vigência da CF/88, o direito brasileiro conhecia apenas a ADIN; somente com a EC n.º 3, de 1993, criou-se a figura da ADC, a qual, atualmente, é ação praticamente idêntica à ADIN, ressalvadas pequenas peculiaridades que serão apontadas adiante.
2.1. Legitimidade ativa e participação do Ministério Público
Na história das constituições brasileiras, a legitimidade para a propositura da ADIN sempre foi bastante restrita. Tendo em vista a presunção de constitucionalidade dos atos do Poder Legislativo, os quais, inclusive, são submetidos a exame prévio de conformidade com a Constituição por comissões específicas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, e, outrossim, por força da relevância de uma ação passível de resultar na supressão de determinada norma do ordenamento jurídico, é de se esperar que o poder de deflagrar referido procedimento não fosse conferido de forma generalizada ou indistinta.
De início, e em muito por força de sua imbricação, na origem, com o procedimento da intervenção federal, o instrumento era de utilização exclusiva do Procurador-Geral da República, que detinha o monopólio da ação direta (MAKIYAMA, 2013, p. 1). A Constituição Federal de 1988, porém, ampliou significativamente o rol de legitimados, dispondo, nos termos do art. 103, com a redação conferida pela EC n.º 45/2004, que podem propor a Ação Direta de Inconstitucionalidade: a) o Presidente da República; b) a Mesa do Senado Federal; c) a Mesa da Câmara dos Deputados; d) a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; e) o Governador de Estado ou do Distrito Federal; f) o Procurador-Geral da República; g) o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; h) partido político com representação no Congresso Nacional; e i) confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional (BRASIL, 1988, p. 1). Ademais, estabelece o § 1º, do art. 103, da CF/88, que, não tendo sido o autor da demanda, o PGR oficiará no feito como custos legis, exarando parecer prévio à decisão do Tribunal. Prevê a Constituição, ainda (§ 3º, do art. 103), que, na referida ação, o Advogado-Geral da União será citado para funcionar como defensor do texto impugnado (BRASIL, 1988, p. 1).
2.2. Procedimento. Medida cautelar
O processo e julgamento da ADIN e da ADC foi regulamentado pela Lei n.º 9.868, de 10 de novembro de 1999 (GOMES, 2013, p. 1). A lei estabelece regras formais, com indicação dos elementos obrigatórios da petição inicial, fixa prazos para a atuação das partes e interessados e dispõe sobre os poderes do relator e do tribunal na apreciação da matéria (BRASIL, 1999, p. 1). [4] Regula, ainda, a medida cautelar em cada um dos procedimentos e versa sobre os efeitos da decisão final em ADIN e ADC. Nos arts. 5º e 16, estabelece que não é dado ao autor desistir da ação direta e nos arts. 7º e 18, dispõe que não se admite a intervenção de terceiros (arts. 56 a 77, do CPC) nos mencionados procedimentos (BRASIL, 1999, p. 1).
Na forma dos arts. 4º e seguintes da referida lei, na Ação Direta de Inconstitucionalidade, recebida a petição inicial, o relator indeferirá liminarmente a exordial inepta, não fundamentada ou manifestamente improcedente. Superado exame preliminar, o relator pedirá informações aos órgãos ou autoridades que emanaram a lei ou ato normativo impugnado, os quais responderão no prazo de 30 (trinta) dias. Caso considere insuficientes os elementos constantes dos autos, poderá requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria, podendo, ainda, solicitar informações aos tribunais superiores e aos tribunais federais e estaduais sobre a aplicação da norma impugnada no âmbito de sua jurisdição. Considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá o relator, por despacho irrecorrível, admitir a manifestação de outros órgãos ou entidades (amicus curiae). Após a instrução do feito, serão ouvidos, sucessivamente, o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República, que deverão manifestar-se, cada um, no prazo de 15 (um) quinze dias (BRASIL, 1999, p. 1).
Ainda em se tratando de ADIN, dispõe a lei que, salvo no período de recesso, a medida cautelar, também aqui admitida, será concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do STF, observado o quorum de 8 (oito) ministros, no momento processual situado após a audiência dos órgãos ou autoridades que editaram a lei ou ato normativo impugnado, que deverão pronunciar-se no prazo de 5 (cinco) dias. Se julgar indispensável, o relator ouvirá o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República no prazo de 3 (três) dias. Apesar do rito abreviado, a lei assegura que, no julgamento da medida cautelar, será facultada sustentação oral aos representantes judiciais do requerente e das autoridades ou órgãos responsáveis pela expedição do ato, na forma estabelecida no RISTF. Ademais, sendo caso de excepcional urgência, o Tribunal poderá deferir a medida cautelar sem a audiência dos órgãos ou das autoridades que editaram a lei ou o ato normativo impugnado (BRASIL, 1999, p. 1).
Consoante o art. 11, da lei de regência, concedida a medida cautelar, o Supremo Tribunal Federal fará publicar, no prazo de 10 (dez) dias, em seção especial do Diário Oficial da União e do Diário da Justiça da União, o dispositivo da decisão, devendo solicitar as informações à autoridade da qual tiver emanado o ato, observando-se, no que couber, o procedimento regular de julgamento da ADIN. Dispõem os parágrafos do art. 11, da Lei n.º 9.868/99, que “a medida cautelar, dotada de eficácia contra todos, será concedida com efeito ex nunc, salvo se o Tribunal entender que deva conceder-lhe eficácia retroativa” e que “a concessão da medida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário.” (BRASIL, 1999, p. 1)
Ainda nos termos da lei, havendo pedido de medida cautelar, é possível ao relator, “em face da relevância da matéria e de seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica”, adotar um rito abreviado de julgamento da ADIN: após a prestação das informações, no prazo de 10 (dez) dias, e a manifestação do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República, sucessivamente, no prazo de 5 (cinco) dias, autoriza-se ao relator submeter o processo diretamente ao pleno do tribunal, que terá a faculdade de julgar definitivamente a ação (BRASIL, 1999, p. 1).
2.3. Distinções entre os procedimentos de ADIN e ADC
Para a Ação Declaratória de Constitucionalidade (arts. 13 a 21, da Lei n.º 9.868/99), o rito se afigura fortemente assemelhado. A distinção básica entre os procedimentos da ADIN e da ADC reside no fato de que, na segunda, não há necessidade de citação do Advogado-Geral da União para a defesa da norma objeto da demanda, vez que, a seu favor, já pesa a presunção de legitimidade dos atos públicos, o que inclui sua conformidade com os preceitos da Constituição. Ademais, o que se pretende com a ação é, precisamente, a confirmação da validade jurídica do ato, diante do que os argumentos apresentados pelo autor suprem a defesa que se faria da norma no processo. Quanto ao cabimento, há uma diferença significativa: enquanto a ADIN é utilizada para lei ou ato normativo federal ou estadual, a ADC somente pode ter por objeto lei ou ato normativo federal (BRASIL, 1999, p. 1).
O art. 13, da mencionada lei, previa, para a ADC, rol de legitimados diverso, estatuindo que a propositura da ação era privativa do Presidente da República, da Mesa da Câmara dos Deputados, da Mesa do Senado Federal e do Procurador-Geral da República (BRASIL, 1999, p. 1). Tal norma foi revogada pela EC n.º 45/2004, que conferiu nova redação ao caput do art. 103, da CF/88, equiparando os legitimados para oferecer a ADC aos da ADIN.
No que tange à medida cautelar, há ainda outra diferença na previsão normativa relativa à ADC: nos termos do art. 21, da Lei n.º 9.868/99, a cautelar na Ação Declaratória de Constitucionalidade consistirá na “determinação de que os juízes e tribunais suspendam o julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou ato normativo objeto da ação até seu julgamento definitivo.” (BRASIL, 1999, p. 1). Se, contudo, o STF não concluir o julgamento no prazo de 180 (cento e oitenta dias), a cautelar perde a eficácia, restando liberados os juízos de primeiro grau e tribunais de segunda instância a prosseguir com o andamento dos feitos sobrestados (BRASIL, 1999, p. 1).
2.4. Efeitos da decisão
O aspecto mais relevante da lei que rege o processo e julgamento da ADIN e da ADC, para os fins deste estudo, porém, diz respeito aos efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal no controle concentrado de constitucionalidade. Em primeiro lugar, estabelece a legislação específica que a decisão do STF que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade em ADIN ou ADC é irrecorrível, ressalvados os embargos declaratórios – que, a rigor, não são espécie recursal – sendo, ademais, insuscetível de ação rescisória (art. 26). Demais disso, autoriza a lei, em seu art. 27, que, na declaração de inconstitucionalidade, o STF, por maioria de 2/3 dos seus membros, “tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social”, module os efeitos da referida decisão, restringindo sua aplicação ou estabelecendo que ela só tenha eficácia a partir do trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado. Por fim, o parágrafo único, do art. 28, da Lei n.º 9.868/99, estabelece que a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, “inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto”, proferidas em sede de ADIN ou de ADC, “têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.” (BRASIL, 1999, p. 1) [5] Atualmente, a disposição encontra amparo em norma constitucional, na medida em que o § 2º, do art. 102, da CF/88, com a redação conferida pela EC n.º 45/2004, prevê que as decisões de mérito do STF nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade “produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.” (BRASIL, 1988, p. 1) [6]
Uma primeira observação a ser efetuada diz respeito às técnicas de decisão à disposição do STF nos processos de controle de constitucionalidade. A doutrina majoritária entende que a declaração de constitucionalidade equivale ao reconhecimento da nulidade da lei e, portanto, produz efeitos ex tunc ou retroativos (BARROS, 2014, p. 1). O que o art. 28, parágrafo único, da Lei n.º 9.868/99, autoriza é a modulação desse efeito natural, originário, da declaração de inconstitucionalidade.
Respeitada a maioria qualificada de 2/3, o que equivale ao voto de 8 (oito) ministros do STF, pode o tribunal conferir à decisão eficácia ex nunc (meramente prospectiva), ou, ainda, fixar uma data futura, a partir da qual produzirá efeitos a declaração de inconstitucionalidade (efeito pro futuro). Ademais, no exercício dessa faculdade constitucional, pode o Supremo reconhecer a inconstitucionalidade total ou parcial da norma, declarar a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, proceder à interpretação conforme à Constituição, declarar que a constitucionalidade da norma fica condicionada a determinado evento fático (“lei ainda constitucional”), proceder à declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade (julgamento de providência de Estado-membro a ser anulada em sede de intervenção federal) [7] ou efetuar declaração de inconstitucionalidade de caráter limitativo ou restritivo (declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, com suspensão da aplicação da lei e dos processos em curso até que o legislador, dentro de prazo razoável, manifeste-se sobre a situação constitucional), esta última hipótese cabível sempre que a declaração de nulidade da lei e sua consequente supressão do ordenamento jurídico resultem na perda de uma vantagem ou avanço considerável, sendo, porém, inadmissível que persista situação de violação a princípios constitucionais, a exemplo da isonomia (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 1181-1206). Janete Ricken Lopes de Barros assim comenta as técnicas de controle de constitucionalidade utilizadas pelo Supremo:
A declaração de nulidade total ocorre nos casos em que a totalidade da lei ou do ato normativo é invalidado pelo Tribunal e está relacionada a defeitos formais, tais como a inobservância de dispositivos legais no processo legislativo, a exemplo de vício de iniciativa, o que já se verifica no Brasil desde a Constituição de 1967/69, oportunidade em que o STF declarou a inconstitucionalidade de emendas às Constituição estaduais relativas a matérias que somente poderiam ser disciplinadas mediante iniciativa do Executivo, gerando a declaração de nulidade total como expressão de unidade técnico-legislativa. Outro caso de declaração de nulidade total é em virtude da dependência ou interdependência entre as partes constitucionais e inconstitucionais da lei, salvo se algum dispositivo puder subsistir sem a parte inconstitucional, ocorrendo nessa hipótese uma declaração de inconstitucionalidade em virtude de dependência unilateral. Ainda pode ocorrer, diante da indivisibilidade da lei e da forte integração entre as parte, a declaração de inconstitucionalidade em virtude da chamada dependência recíproca. Dessa interdependência normativa, surge algumas vezes a declaração de inconstitucionalidade consequente ou por arrastamento, em virtude de sua dependência normativa em relação aos dispositivos inconstitucionais expressamente impugnados. A declaração de nulidade parcial advém da aceitação da teoria da divisibilidade da lei, pela qual o Supremo deve declarar a inconstitucionalidade somente da parte da norma viciada,sempre que puderem subsistirem de forma autônoma, quer seja, quando estiverem presentes as condições objetivas de divisibilidade e de que a norma que vai subsistir corresponde à vontade do legislador. A declaração de nulidade parcial sem redução de texto, já presente no sistema brasileiro desde 1949, ocorre nos casos em que o Tribunal se limita a considerar inconstitucional apenas determinada hipótese de aplicação da lei, sem que isso implique em alteração do seu programa normativo. Nos casos de possibilidade de mais de uma interpretação, os Tribunais devem buscar compatibilizar a lei com o texto constitucional, partindo da premissa de que o legislador, a quem foi dada a legitimidade originária para criar as leis, busca positivar uma norma constitucional e de onde se pode extrair o princípio orientador do controle de constitucionalidade intitulado de interpretação conforme à Constituição, que tem tomado contornos muito maiores do que simplesmente espécie de declaração de nulidade parcial sem redução de texto. (BARROS, 2014, p. 1)
Em segundo lugar, cumpre registrar que a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade não vincula o próprio Supremo Tribunal Federal (BARBOSA, 2013, p. 1). Não obstante se espere certa estabilidade do julgado, é possível que a corte reaprecie a matéria em outra oportunidade e, à luz de uma nova leitura dos valores e princípios constitucionais, declare a inconstitucionalidade de norma anteriormente reputada constitucional, desde que haja “significativa mudança nas circunstâncias fáticas ou relevante alteração das concepções jurídicas dominantes” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 1214). Em outras palavras, a decisão no controle concentrado de constitucionalidade não forma coisa julgada material. [8] É o que ensina William Akerman Gomes, quando afirma que,
ao contrário do que ocorre com a res iudicata nos processos subjetivos, a doutrina assevera que a decisão de improcedência do pedido em sede de ADI não se reveste da autoridade da coisa julgada material, por ser inadequado impedir o STF de reapreciar a constitucionalidade ou não de uma lei anteriormente considerada válida, à vista de novos argumentos, de novos fatos, de mudanças formais e informais no sentido da Constituição ou de transformações na realidade que modifiquem o impacto ou a percepção da lei .(GOMES, 2013, p. 1)
Por último, importa considerar o significado do efeito vinculante e da eficácia erga omnes na decisão do STF no controle concentrado de constitucionalidade. Há uma diferença substancial entre os dois institutos (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 1222). Do que se extrai do texto constitucional (art. 102, § 2º, da CF/88) e da lei que o regulamenta (art. 28, parágrafo único, da Lei n.º 9.868/99), a decisão de mérito sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade é dotada de eficácia “contra todos” (BRASIL, 1999, p. 1). Isto é: ressalvada a hipótese de, por algum fundamento específico, poder o tribunal restringir os efeitos da decisão, declarada a inconstitucionalidade da norma, é de se reconhecer, ipso jure, a sua imediata eliminação do ordenamento jurídico, estendendo-se a autoridade da decisão a todos, independentemente de terem participado do processo (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 1215). Logo, a eficácia erga omnes diz respeito ao alcance subjetivo da decisão do STF que controla a constitucionalidade.
O efeito vinculante, por sua vez, está relacionado à limitação da autonomia funcional de magistrados e órgãos da Administração Pública. Para tais, enquanto particulares, pessoas físicas ou jurídicas, desnecessária seria a menção legal ao “efeito vinculante”, na medida em que a “eficácia” da decisão no controle concentrado de constitucionalidade, nos termos da lei, já seria oponível “contra todos”. Por conseguinte, em suas relações sociais e eventuais demandas judiciais, seria de observância obrigatória o teor do julgado pelo STF. Entretanto, na perspectiva funcional, do magistrado enquanto representante do Estado-juiz e da Administração Pública na condição de órgão executivo do direito posto, poderia restar dúvida acerca da aplicabilidade da decisão de inconstitucionalidade. Com efeito, o dogma do livre convencimento motivado e a sempre presente possibilidade de o magistrado efetuar um controle difuso de constitucionalidade, sobretudo à luz da tradição do civil law, que, em sua origem, desconhecia a vinculação aos precedentes judiciais (stare decisis), justificariam a indagação acerca da possibilidade de o juiz, na apreciação de causas futuras, fazer uso de sua autonomia funcional para julgar a questão constitucional conforme os ditames de sua consciência, desprezando a orientação do STF; do mesmo modo, tendo em vista a sensibilidade da atividade administrativa ao princípio da legalidade, é possível que se quisesse arguir que o Poder Executivo somente deixaria de aplicar a lei quando fosse suspensa sua execução pelo Poder Legislativo, nos termos do art. 52, X, da CF/88 [9] (BRASIL, 1988, p. 1).
Ambas as indagações se tornaram inadmissíveis em face da menção, no texto constitucional (art. 102, § 2º, da CF/88), ao “efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.” (BRASIL, 1988, p. 1) Significa dizer: enquanto a eficácia erga omnes assegura que a autoridade da decisão do STF se estenda a todos, independentemente de participação no processo, o efeito vinculante garante que Judiciário e Executivo cumprirão o conteúdo da decisão em seu mister funcional, pelo que restará vedada a aplicação da lei declarada inconstitucional independentemente de revogação formal ou suspensão de sua execução pelo Legislativo, na forma do art. 52, X, da CF/88.
Registre-se, ainda, um breve comentário acerca do alcance do efeito vinculante nas decisões do STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Diferentemente do que possa parecer, o que vincula o Poder Judiciário e a Administração Pública não é apenas o dispositivo da decisão em ADIN ou ADC, mas os fundamentos ou “motivos determinantes” do julgado, que constituem a ratio decidendi do precedente (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 1223). Assim já decidiu o STF, quando do julgamento da Reclamação n.º 1987, da relatoria do Min. Maurício Corrêa. (BRASIL, 2003, p. 1) [10] No mesmo sentido, Luiz Guilherme Marinoni doutrina:
O Supremo Tribunal Federal fala em motivos ou fundamentos determinantes, em conteúdo essencial e em eficácia transcendente. As expressões “motivos ou fundamentos determinantes” e “conteúdo essencial” se referem à decisão. Querem expressar os fundamentos que determinam ou são essenciais à conclusão judicial. A eficácia transcendente, por sua vez, é aquela que transcende ao caso, interferindo sobre os demais casos que, embora não tratando da mesma norma, configuram igual questão constitucional, a ser solucionada mediante a aplicação dos mesmos fundamentos ou motivos que determinaram a decisão. (...) No common law, a ratio decidendi identifica os fundamentos, motivos ou razões determinantes ou essenciais da decisão. Em verdade, a preocupação com os fundamentos determinantes da decisão é a mesma que inspira a individualização da ratio decidendi. Trata-se de definir as razões que levaram a Corte a decidir, deixando-se de lado os pontos que, ainda que analisados, não interferem ou determinam o resultado do julgamento, considerados, assim, obiter dicta. A ratio decidendi ou os fundamentos determinantes estão inseridos na fundamentação da decisão. Individualiza-se a ratio decidendi ou os fundamentos determinantes olhando-se para a fundamentação. Se um fundamento, embora não necessário, pode ser suficiente para se alcançar a decisão, este apenas é determinante quando constitui premissa sem a qual não se chegaria na específica conclusão acerca do caso. De maneira que o fundamento determinante é o que se mostra imprescindível, e, assim, essencial à decisão que foi proferida. (...) No common law, não é preciso falar em eficácia vinculante. Basta aludir a ratio decidendi, uma vez que a força obrigatória ou vinculante é inerente ao sistema de precedentes. Quando se pensa em ratio decidendi admite-se, implícita e automaticamente, a sua força obrigatória. De modo que a ideia de eficácia vinculante, no direito brasileiro, destina-se a enfatizar a força obrigatória dos fundamentos determinantes das decisões constitucionais. (MARINONI, 2014, p. 1)