O princípio da solidariedade: pela superação da histórica dicotomia entre Estado e sociedade

14/08/2014 às 10:10
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A efetivação dos direitos sociais não pode se resumir a um problema de/do Estado, mas sim de todos nós, o que plenamente se compatibiliza com a noção de sociedade irmanada e solidária projetada pelo constituinte de 1988.

1 INTRODUÇÃO

Pretende este artigo promover, na esteira das sempre atuais discussões sobre os limites e as possibilidades de o Estado desincumbir-se dos enormes desafios que assume com o advento do constitucionalismo social, quais sejam garantir condições mínimas de vida para a população e tornar realidade as promessas de igualdade substantiva e justiça material, alguns questionamentos concernentes à contribuição que pode oferecer o povo – ou melhor, a sociedade civil – para o processo de efetivação dos direitos sociais, o que exige uma remodelação da concepção dogmática tradicional dos modelos de Estado e Sociedade.

2 DESENVOLVIMENTO

No que tange à problemática da efetivação dos direitos sociais, os obstáculos com que tem deparado o Estado brasileiro no seu dever de satisfazer as necessidades e os reclamos de uma sociedade moderna bem mais consciente e reivindicadora de seus interesses têm suscitado inúmeras indagações alusivas à própria capacidade de o poder público realizar satisfatoriamente as políticas voltadas ao tema.

Por outra via, pouco se discute o potencial da sociedade civil para o processo de conquista e proteção desses direitos. A inércia dos cidadãos diante das dificuldades encontradas e a atribuição ao Estado do papel de provedor de todos os problemas representam um vício social sobre cujo combate pretende-se aqui discorrer.

O tema que ora se delineia não tem recebido um tratamento desejável face à permanente iniquidade do cenário nacional e às inúmeras barreiras que o Estado tem enfrentado para dar conta de todas as demandas de uma sociedade extremamente complexa e, dia a dia, mais conscientizada e ávida pela concretização de seus direitos.

De fato, o baixo grau de efetividade dos direitos sociais – ao estudo dos quais, desde já, por imperativo didático, limitaremos o foco deste trabalho – constitui uma problemática que propicia infindáveis cizânias a respeito da capacidade fática e jurídica de as instituições públicas lograrem êxito na formulação e na execução das políticas prestacionais voltadas aos ideais de segurança e bem-estar que aqueles buscam democratizar. Há de lamentar-se, porém, como já antecipamos, que muito pouco se fala acerca da contribuição que pode oferecer a sociedade para a realização desses direitos.

É inequívoco o fato de que os direitos sociais geram maiores dificuldades para sua afirmação fática do que os direitos ditos de primeira dimensão – os direitos civis e políticos. E uma das razões é a imensa resistência ideológica, já que a inclinação dos direitos sociais para uma alteração do status quo mobiliza contestações de segmentos privilegiados da sociedade absolutamente não desejosos de mudança.

Existem também graves barreiras estruturais, porquanto o caráter essencialmente prestacional – sem esquecer os direitos sociais de caráter negativo (as liberdades sociais) – desses direitos favorece a lógica da eficiência e o discurso dos custos materiais, chocando-se a desejada efetivação com limites materiais às vezes insuperáveis.

É preciso ter em mente, contudo, que, se, por um lado, os desafios que cumpre ao Estado enfrentar são imensos, por outro, não é fácil colher satisfatórios resultados caso os próprios destinatários da atuação do poder público quedem-se passivos diante das dificuldades encontradas, aguardando a vinda de um Messias apto a tudo resolver.

É cômodo delegar ao Estado a solução para todos os nossos problemas, especialmente no que tange aos direitos sociais, cujo norte, pautado pelas ideias de igualdade e de justiça social, deveria sensibilizar cada um de nós para assumirmos porção de responsabilidade diante do quadro de miséria nefando que, lamentavelmente, já nos acostumamos a enxergar.

Nesse particular, assume relevo o princípio constitucional da solidariedade, previsto no art.3º, inciso I, da vigente Constituição Federal, o qual é bem comentado por Daniel Sarmento (SARMENTO, 2004, p. 334):

“Na verdade, o texto constitucional brasileiro acena, em diversas passagens, no sentido da co-responsabilidade dos particulares em relação à garantia dos direitos sociais não-trabalhistas. Assim, no artigo 194, estabeleceu o constituinte que “a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistencial social.” Já o artigo 205 da Lei Maior dispõe que a educação “é um direito de todos e dever do Estado e da família”, determinando que ela deve ser “promovida e incentivada com a colaboração da sociedade”. Neste mesmo diapasão, o art. 227 da Constituição atribuiu não só ao Estado, mas também “à família e à sociedade” o dever de assegurar à criança e ao adolescente seus direitos fundamentais, o mesmo ocorrendo em relação às pessoas idosas(art.230, CF).”

Deve-se enaltecer, na busca por tal concretização, a imprescindibilidade da superação da clássica dicotomia entre Estado e sociedade, no afã de consagrar o princípio da solidariedade, insculpido em vários dispositivos da Constituição da República de 1988, a sugerir e avocar a corresponsabilidade de cada indivíduo em relação à realização dos ditames sociais, opção de um constituinte certamente não indiferente à importância da construção de uma sociedade mais solidária e unida para a consecução da igualdade substantiva que o Estado tem-se revelado incapaz de, isoladamente,alcançar.

Uma vez estabelecida como um dos objetivos fundamentais da República a construção de uma “sociedade justa, livre e solidária”, é possível dizer que a Constituição, ao proclamar o princípio da solidariedade, não se cinge a enunciar uma meta política destituída de qualquer eficácia normativa, expressando, em absoluto, um princípio jurídico, em que pese sua baixa densidade normativa, imbuído de aplicabilidade e eficácia e de grande valia como norte interpretativo de todo o ordenamento jurídico.

Impõe-se compreender, portanto, que a efetivação dos direitos sociais não pode se resumir a um problema de/do Estado, mas sim de todos nós, o que plenamente se compatibiliza com a noção de sociedade irmanada e solidária projetada pelo constituinte de 1988.

Com a superação da vetusta separação entre Estado e sociedade, compreender-se-á que o primeiro, na verdade, somos todos nós e que a materialização dos direitos sociais não pode condicionar-se tão-apenas a “atos dos poderes constituídos em forma de bênçãos de um ser divino que a todos alenta” (PANSIERI, 2003, p.396), visto que o poder da sociedade – de que podem ser exemplos as empresas, as associações e a família –, tão prestigiado pelo texto constitucional, não pode ser desprezado. Jose Luiz Bolzan de Morais (MORAIS, 2008, p.287 e 288), refletindo sobre o papel que o Estado deve hoje desempenhar, aduz:

“Apenas assegurando instancias especialistas de poder estatal, não se consegue promover o acesso de todos ao bem-estar. É necessário que estas mesmas instâncias, vinculadas ao projeto constitucional, estejam comprometidas com o pressuposto finalístico da unidade estatal: produzir uma sociedade justa e solidária etc. Afinal, à pergunta quem é o Estado? só se responde com a suplantação da histórica dicotomia entre Estado e Sociedade, muitas vezes reproduzidas no seio daquele, agora como tripartição. O Estado somos todos nós, e os resultados alcançados serão mérito ou ruína de nossa capacidade de justiça(dikê) e dignidade pessoal(aidos), como resultado da arte política, como a tradição grega ensina.”

Fazer valer o princípio da solidariedade significa homenagear o cidadão e apostar em seu potencial para influir no seu meio, na crença de que a construção uma sociedade justa, livre e solidária (CF: 3º, I) não é apenas um dever estatal, mas uma obrigação com que deve arcar toda a sociedade e cada um de seus membros. Prossegue Daniel Sarmento (SARMENTO, 2004. p.338):

“Na verdade, a solidariedade implica o reconhecimento de que, embora cada um de nós componha uma individualidade, irredutível ao todo, estamos também todos juntos, de alguma forma irmanados por um destino comum. Ela significa que a sociedade não deve ser o locus da concorrência entre indivíduos isolados, perseguindo projetos pessoais antagônicos, mas sim um espaço de diálogo, cooperação e colaboração entre pessoas livres e iguais, que se reconheçam como tais. É em razão da solidariedade que faz sentido a máxima de que “a injustiça em qualquer lugar é uma ameaça para a justiça em todos os lugares”, proclamada por Martin Luther King, na belíssima carta que escreveu na prisão de Birmighan.”

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É forçoso, pois, o amadurecimento do povo, assentado em sua conscientização como sujeito de direito idôneo a influir em seu meio com o condão de transformar a sociedade, já que a organização, a fiscalização e a atuação popular representam poderoso instrumento de concretização de direitos, porque “não há efetividade da Constituição, sobretudo quanto à sua parte dogmática, sem uma cidadania participativa”, como ensina Luís Roberto Barroso (BARROSO, 2006, p.127).

Partindo da compreensão de que as instituições públicas, por si sós, não têm conseguido dirimir os múltiplos litígios que afloram no âmbito de uma complexa sociedade vertiginosamente mais informada, consciente e demandante no que diz com os direitos de que é titular, surge a necessidade de atribuir à sociedade civil sua porção de responsabilidade frente aos problemas que a atingem.

Nessa linha, urge aos cidadãos um repensar de valores, consubstanciado em uma mudança de comportamento a exigir-lhes que se reconheçam como sujeitos de obrigações para com as necessidades coletivas, não mais como sujeitos tão-somente beneficiários dos serviços outorgados pelo Estado.

O princípio da solidariedade, prestigiado pela Constituição de 1988 em vários de seus artigos, qualifica-se como relevante instrumento na busca pela efetivação dos direitos sociais, e o grau de confiança que ele deposita nos cidadãos para a resolução dos conflitos da coletividade, repelindo a noção egoísta e individualista de que somos responsáveis apenas por nossos próprios problemas e intentando a construção de um modelo de sociedade no qual cada um é ciente de que, individualmente, corresponsabiliza-se pelo problema de todos, não pode simplesmente ser ignorado.

3 CONCLUSÃO

Por meio da valorização do princípio da solidariedade ou da corresponsabilização, expressamente plasmado em nosso ordenamento constitucional, e na certeza de que urge materializar os fins e valores sociais formal e largamente proclamados, busca-se sobrepujar a histórica dicotomia entre Estado e sociedade, a permitir que se vislumbre a construção de um ambiente coletivo mais solidário e irmanado, onde cada um é capaz de reconhecer sua responsabilidade em face dos problemas e do destino dos demais integrantes do corpo social.

        4 REFERENCIAL TEÓRICO

BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. São Paulo: Renovar, 2006.

BOLZAN DE MORAIS, Jose Luiz. Afinal: quem é o Estado? Por uma Teoria (possível) do/para o Estado Constitucional. In: AGRA, Walber de Moura et al. Constitucionalismo: os desafios no terceiro milênio. Minas Gerais: Fórum, 2008.

PANSIERI, Flávio. Direitos sociais, Efetividade e Garantia nos 15 anos de Constituição. In: SCAFF (Org.) Constitucionalizando direitos: 15 anos da Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004

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Sobre o autor
Lucas Sales da Costa

Juiz de Direito Substituto do TJDFT. Ex-Advogado da União. Ex-Técnico Judiciário do TRF da 5ª Região. Pós-Graduado em Direito Processual Civil Individual e Coletivo pela Faculdade Christus (CE). Pós-Graduado em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/DF). Aprovado nos concursos de Analista do TRT da 7ª Região e de Juiz Federal Substituto do TRF da 4ª Região.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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