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A formação da federação nacional enquanto processo de construção de um novo conceito jurídico:

atuação retoricamente estratégica com vistas à positivação

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18/08/2014 às 08:08
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No que diz respeito à federação, Rui Barbosa conseguiu transpor o plano argumentativo do “porque queremos” do grupo social poderoso no Brasil imperial para atingir o âmbito imparcial do “porque é a melhor solução” teórico-científica para os problemas nacionais.

Introdução.

O presente artigo, produzido num contexto de pesquisa de mestrado em torno da originalidade da formação, da consagração e da positivação federalismo defendido por Rui Barbosa no Brasil do final do séc. XIX, busca apresentar as primeiras investigações da autora em torno do tema. O objetivo principal é mostrar a importância do processo dogmático de construção de conceitos jurídicos para o fortalecimento da tese federalista no cenário nacional. De fato, é essa estratégia retórica que permite a Rui Barbosa superar diversos entraves argumentativos existentes na linguagem de comando então vigente, a qual comunicava acerca da importância da unidade do Estado, mostrando-se avessa à positivação da forma federativa de Estado.

O primeiro tópico do artigo destina-se ao esclarecimento do que vem a ser o processo de conceituação no âmbito da dogmática jurídica e a sua importância teórica e prática para a calibração e estabilização do sistema do direito. O segundo tópico, por sua vez, aproxima a análise anteriormente feita ao contexto específico do direito e da política brasileiros no final do séc. XIX, destacando o papel de Rui Barbosa como artífice da federação. Por fim, conclui-se, de maneira ainda superficial, diante da profundidade do tema e do caráter inicial das pesquisas, estabelecendo um elo analítico entre os dois tópicos anteriormente desenvolvidos e problematizando outras questões a serem desenvolvidas em momento posterior.


1. A produção de novos conceitos como importante ferramenta dogmática para o agir no âmbito do direito: a busca da legitimidade por meio da remissão para o plano abstrato.

A formação de conceitos é marca constante no desenvolvimento cognitivo dos seres humanos, caracterizando-se como a elaboração de representações mentais referidas, em geral, a classes de coisas no mundo[1]. Com base nesse primeiro processo de abstração, desenvolve-se o de categorização: os diversos conceitos são organizados, classificados dentro de grupos específicos de tal forma que as categorias abstratas formam um grupo independente dos objetos particulares que a formam[2]. Entretanto, de onde se origina essa necessidade humana de abstrair para poder interagir com o mundo e com os outros? Trata-se do problema do abismo gnoseológico[3].

O conhecimento humano baseia-se em três elementos irredutíveis. O primeiro é o evento real, objeto a ser conhecido empiricamente, caracterizado por ser único e irrepetível. Justamente em razão de o “mundo real” ser marcado pela mutabilidade, pela transformação, pela individualidade, o evento real apresenta-se ao sujeito como um dado irracional. Isso porque seu aparato humano não consegue proceder sem generalizações, sem tentar superar a contingência por meio de uma suposta universalização. Ou seja, há uma incompatibilidade entre a individualidade do mundo e a generalidade do sujeito. Dessa forma, objetivando conhecer o mundo, o sujeito procede a diversas tentativas de eliminar a contingência: consuma-se, então, o processo de abstração, de formação de conceitos gerais, produto do esforço para detectar nos eventos algo em comum que permita os classificar, ou seja, as representações mentais são o resultado da seleção de apenas alguns aspectos do evento real em detrimento de outros. Percebe-se, assim, que o objeto investigado passa a ser adequado à mente humana, uma vez que se apresenta generalizado, despido da contingência que lhe é peculiar. Esse distanciamento das características que marcam a realidade empírica faz com que as representações dos objetos sejam, consequentemente, ideais, irreais. Entretanto, é por meio delas que o ser humano consegue pensar os eventos, fazer sentido[4], uma vez que elas processam a adequação entre mundo real e mente humana que, apesar de imperfeita, é a única via possível. É o segundo elemento irredutível, qual seja, a ideia.

Cada ser humano, porém, estabelece critérios particulares durante o processo de formação da ideia, tornando, sob essa perspectiva, suas ideais novamente únicas e irrepetíveis, apesar de elas continuarem sendo gerais no que diz respeito à relação sujeito-mundo empírico. Por conseguinte, as abstrações inicialmente feitas pelo sujeito tornam-se mais uma vez incompatíveis com a mente humana, agora, dos outros sujeitos. Desenvolve-se, então, no processo de transmissão dos conhecimentos adquiridos, a linguagem, terceiro elemento irredutível, o qual permite a interação entre indivíduos e a troca de percepções oriundas das experiências empíricas individualizadas. Caracteriza-se, assim, a dicotomia significado e significante, sendo a expressão simbólica a representação deste último, enquanto a ideia, produto da abstração das interações com o mundo, corresponde àquele. Comunicar uma ideia, portanto, é um processo de reintrodução dela no mundo sensível, mas sempre de maneira bastante incompleta, já que a linguagem, meio pelo qual tal reinserção se processa, pressupõe ainda mais generalidade, na medida em que não consegue expressar todos os detalhes presentes na mente humana. A linguagem é, pois, uma abstração de segundo nível, permitindo que os sujeitos interajam.

Percebe-se que a conceituação/categorização e a comunicação estão relacionadas às condições de produção do conhecimento humano, na medida em que permitem aos sujeitos fazer contato com o mundo e entre si, dando apoio às explanações feitas acerca desse mundo e assegurando a produção de prognósticos[5].O direito, enquanto um dos diversos ramos de conhecimento humano, não se distancia dessa caracterização, sendo também marcado por três elementos irredutíveis, quais sejam: o fato juridicamente relevante, que é particular, a norma jurídica, geral e abstrata, e a fonte do direito, expressão simbólica da norma. Reconhecendo a irredutibilidade entre essas três esferas do mundo jurídico e, ao mesmo tempo, sendo premido a apresentar soluções para os conflitos sociais que se lhe apresentam, as quais pressupõe a interação entre esses três níveis, os juristas desenvolvem mecanismos para organizar os elementos componentes do fenômeno jurídico. Criam-se doutrinas, sistemas teóricos, princípios, conceitos e classificações, todos voltados para o objetivo principal de solucionar conflitos, na exata medida em que se tenta, por meio de processos mentais, aproximar o caso concreto da norma abstrata. É a dogmática jurídica, forma peculiar de organização do direito a qual é produto do séc. XIX, da modernidade[6], estando, consequentemente, atrelada histórico, teórico e ideologicamente ao positivismo jurídico. Dessa forma, para melhor perceber a importância da construção de conceitos no direito, objetivo central deste trabalho, faz-se necessário investigar mais detidamente as bases de estruturação do positivismo jurídico.

A Escola Histórica, propulsora do positivismo jurídico, propõe uma reinvestigação do direito romano de maneira a revitaliza-lo em consonância com as novas necessidades sociais vigentes. Nesse processo de busca pelas fontes primárias do direito, qualquer elemento não empírico, não verificável é descartado[7]. Daí a positividade da escola: investigações metafísicas, busca por fundamentos do direito que se situem para além do próprio fenômeno jurídico enquanto dado cultural, empiricamente verificável, são descartadas. Pelo fato de as fontes romanas serem tidas por essa Escola como superiores, de maneira que abaixo delas é que vão se ordenando as demais, o direito passa a ser percebido como um sistema hierarquizado, cujo conteúdo é a legislação, o que marca o processo de maior fixação do direito em textos escritos. Além disso, os institutos jurídicos são percebidos como um corpo orgânico, em permanente desenvolvimento, devendo o jurista, por meio de abstrações, extrair as normas a partir dos conceitos e princípios desse sistema. Por outro lado, esse empirismo positivista apresenta-se como um aporte de método e de cientificidade ao racionalismo já consagrado no séc. XVIII pelo jusnaturalismo[8]. Assim, as investigações em torno do “ser” e da “verdade” perdem sentido, cedendo lugar para o problema metodológico, ou seja, questões relativas ao fundamento das normas deixam de ter plausibilidade no debate jurídico: a forma abstrata transforma-se em condição de possibilidade para o tratamento “científico” do objeto “direito”. Consequentemente, eleva-se a importância da lógica, do método dedutivo, criando-se todo um conjunto de relatos metalinguísticos sobre o direito, concentrados em preocupações conceituais, classificatórias, ordenatórias, distintivas, tudo isso com fins de reforçar a imagem ideal que se consagrou acerca do fenômeno jurídico. Enfim, o positivismo jurídico do séc. XIX concebe o direito como um sistema formal, marcado pela disponibilidade de conteúdos éticos e pela procedimentalização, que o tornam autor-referente, fechado em si mesmo e, consequentemente, completo, livre de lacunas, além de ser logicamente estruturado.

A prática jurídica, porém, demonstra que o processo de concretização, de aplicação do direito pressupõe algo mais do que tão somente as normas jurídicas (unidades do sistema de direito positivo), fixadas nos textos normativos. Ora, a tentativa de encaixar um caso concreto e, portanto, contingente em uma norma geral caracteriza-se como um absurdo lógico, em razão da irredutibilidade acima destacada entre esses dois elementos. Somente entre iguais pode haver subsunção: é preciso abstrair inúmeras particularidades do caso concreto para poder transformá-lo em um “conceito do fato”, o qual vai poder se adequar à norma jurídica, também abstrata[9]. Ainda assim, contudo, os juristas constatam, ao se depararem com os casos concretos, dificuldades para as quais somente as normas jurídicas cruas, tal qual expressas nos textos, não apresentam qualquer solução, qualquer critério possível de ser utilizado para fundamentar a tomada de uma decisão. É preciso, diante dessa falta de regras próprias, aparelhar o sistema normativo com outras ferramentas que permitam a solução dos casos que são postos para decisão pelo direito. Surge, então, a necessidade do raciocínio dogmático e de suas construções conceituais[10], enquanto linguagem criada para poder-se falar sobre o direito, sobre sua compreensão, interpretação e aplicação. Por conseguinte, a dogmática jurídica atende à necessidade de organização do seu objeto de estudo, o direito, de tal forma que se confirmem os postulados consagrados pelo positivismo, mantendo e fortalecendo a ficção da completude do sistema e de sua estruturação lógica, objetiva, racional e imparcial. Consequentemente, o papel das construções conceituais dogmáticas, do processo de abstração, fortalece-se com o positivismo fazendo do pensamento conceitual lógico-abstrato o único meio capaz de promover a aplicação do direito, concretizando-o[11]. Baseando-se no postulado idealista de perfeição lógica do sistema, os conceitos jurídicos adquirem independência com relação às normas, detendo, ainda, a capacidade de determinar o conteúdo específico da norma em um dado caso concreto, mesmo que esse conteúdo se choque com concretizações anteriormente já processadas com relação à mesma norma. É a típica noção pandectista[12], segundo a qual, partindo dos conceitos, poderia o jurista construir logicamente as normas, o que confere a esses conceitos um caráter de realidade direta, e não apenas de valor ordenador do sistema.

Superando-se, porém, essa caracterização idealizada do direito, a qual lançou as bases para a compreensão das conclusões a seguir apresentadas, tenta-se agora sair do paraíso dos conceitos dos juristas[13], hermético e asséptico, e adentrar em análises sobre os papeis heurístico-retórico e o ideológico da conceituação realizada pela dogmática jurídica.

Primeiramente, percebe-se que a interpretação e a argumentação são momentos necessários no processo de concretização das normas jurídicas. O agir criador do intérprete é indispensável para a determinação do sentido da norma, tanto em virtude da vagueza e da ambiguidade ínsitas à linguagem natural e, consequentemente, aos textos normativos, quanto pela já mencionada incompatibilidade entre o geral e o individual, que demanda um agir para adaptação de forma a que eles possam ser encaixados um no outro, quanto pela exigência do próprio sistema de que, para serem legítimas, as soluções jurídicas devem ser fundamentadas[14]. O jurista, entretanto, não pode argumentar da maneira que bem quiser, sendo constrangido pelo sistema dogmático: quanto ao conteúdo, ele é sim livre para realizar as mais diversas estratégias hermenêuticas que se adequem a seus interesses; quanto à forma, porém, o jurista deve seguir as orientações dogmáticas, para que sua argumentação seja dotada de um mínimo de aceitabilidade jurídica, podendo ser então apreciada pelo direito. Os pressupostos formais demandados são apresentados pela própria dogmática jurídica de maneira autônoma, em consonância com os ideais que fundamentam a compreensão positivista do direito: ao defender uma nova tese o intérprete não pode, por exemplo, em querendo vê-la aceita como “juridicamente relevante e plausível”, argumentar com base unicamente em sua mera vontade, no desejo de vingança que tem contra outro, na “injustiça” ínsita à degradante situação dos sem-teto ou no acordo ilicitamente firmado com o juiz da causa. Esses motivos todos podem sim ser razão última do agir no âmbito do direito, mas eles devem ser pintados com as cores da dogmática jurídica, abarcados pelo véu formal de princípios, conceitos, categorias e institutos jurídicos, transformando-se, então, no princípio contratual da autonomia da vontade, na função retributiva da pena, na função social da propriedade ou na competência absoluta do juízo, único capaz e imparcial o suficiente para decidir. A dogmática procede, destarte, a um segundo nível de abstrações, gerando um sistema auxiliar de princípios, conceitos e teorias que tentam reconduzir o complexo emaranhado de normas dispersas, primeiro nível de abstrações, a um todo unitário e harmônico, tendo-se em vista fins de decidibilidade[15]. Ou seja, ao deparar-se com um problema para o qual o conjunto cru de normas fixadas no ordenamento positivo não apresenta qualquer solução, o jurista lança-mão de ferramentas mais abstratas ainda, disponíveis no arsenal de técnicas dogmáticas.

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No que se refere especificamente ao processo de formação de conceitos, percebe-se que as representações mentais criadas pro meio dos raciocínios dogmático adquirem existência autônoma[16]. Ou seja, independentemente de o jurista fazer qualquer afirmação específica sobre os conceitos, ele pode os utilizar como pontos centrais de sua argumentação, de forma a atrair plausibilidade. Assim, por exemplo, ao utilizar-se do conceito de propriedade, o jurista não precisa definir tal instituto jurídico, nem caracterizá-lo dentro do ordenamento jurídico nacional, basta mencioná-lo e, a partir daí, derivar as consequências jurídicas que são desejáveis no caso concreto. É justamente essa independência dos conceitos, por seu alto nível de abstração, que lhes confere a capacidade de adaptação às mais diversas relações jurídicas, de maneira que, um conceito já criado pode ser utilizado em situações bastante diversas entre si e, inclusive, contraditórias sem que as inconsistências do sistema sejam reveladas e sem que tal conceito seja tido como logicamente falho. Forma-se, então, um arcabouço teórico abstrato capaz de abarcar diversas possibilidades fáticas, manipulando-as a fim de prescrever resultados jurídicos. Assim, por exemplo, para fins de decisão de determinado caso controverso, um ácido pode sim ser abrangido pelo manto normativo no conceito de “arma”, que, em princípio, englobaria somente instrumentos como uma pistola ou uma faca, fazendo com que uma qualificadora específica incida sobre determinado caso concreto[17].

Por outro lado, não é somente nos casos para os quais já há regência normativa da matéria jurídica que a conceituação se apresenta como importante ferramenta para a obtenção da decisão jurídica. O processo de formação de conceitos jurídicos também se mostra imprescindível em situações nas quais determinada relação ainda não foi reconhecida pelo direito, o que a tornaria não passível de tutela jurídica em virtude do dogma da “impossibilidade jurídica do pedido”, afastando-se sua plausibilidade jurídica. Mesmo em tais casos, porém, consegue-se sim proteção por parte do direito, desde que se crie uma argumentação com base em conceitos já reconhecidos pela dogmática, manipulando-os para encaixe em um novo caso concreto; ou, melhor, que se engendre um novo conceito, o qual seja aceitável, plausível conforme os ditames fixados pelo sistema. É justamente por meio dessa necessidade de concretização jurídica mediada, ao menos formalmente, pelos conceitos abstratos que, por exemplo, antes mesmo do reconhecimento positivo da união estável as mulheres já conseguiam tutelar minimamente seus interesses por meio da manipulação de institutos jurídicos já consagrados, ou que novos conceitos são forjados para se justificar a tutela jurídica de casos ainda não abarcados pelas concepções já criados pela dogmática, como no caso da formação do conceito de “direito subjetivo público”[18]. Percebe-se, portanto, que em torno dos conceitos é que se vai estruturar diversas argumentações, atraindo ou afastando a incidência de normas jurídicas sobre o caso, mas o conteúdo preciso do conceito é determinado de maneira relacional. Ou seja, apenas com referência às necessidades específicas do caso concreto único e irrepetível a ser solucionado é que se vai precisar, por meio da argumentação e da interpretação, os contornos de determinado conceito[19].

Vai-se, assim, desconstruindo a crença pandectística de que o conceito determina, ele mesmo, o resultado da aplicação do direito. Destaca-se a importância do papel argumentativo do intérprete, o qual nota um mesmo conceito dogmático aplicar-se a uma infinidade de resultados. Dessa forma, atuando em defesa de seus interesses, ele cria uma argumentação com vistas a um determinado resultado estando, porém, vinculado ao vocabulário conceitual, única via adequada para a adequada utilização da linguagem jurídica[20]. A importância do conjunto de conceitos da dogmática jurídica é, então, servir como ponto de estabilização das diversas contradições e dos diferentes conflitos presentes no ordenamento positivo, permitindo ao jurista construir argumentos que fundamentem seu atuar jurídico. Além disso eles também servem para reforçar a simbologia de objetividade cara ao sistema positivo, consagrando o mito da perfeita estruturação lógica do ordenamento e conferindo ares de neutralidade a uma argumentação parcial, que passa a ser vista como simples descrição do que vem a “ser” o direito. É a função heurístico-retórica[21] do arsenal de conceitos construídos pela dogmática: ela ajuda o jurista a criar, a descobrir argumentos, mas não qualquer tipo deles, e sim tão somente aqueles persuasivamente efetivos dentro de um sistema jurídico dogmaticamente organizado.

Por outro lado, a dogmática jurídica também reserva outra função para a produção de novos conceitos enquanto instrumento do agir no direito: a ideológica. A conceituação desempenha um papel idológico na medida em que consegue neutralizar valores, encobrindo-os. Esse processo de neutralização se consuma por meio da transformação do valor em forma, tornando-se independente de qualquer conteúdo e válido em qualquer contexto, justamente pelo fato de tornar-se abstrato. Ora, a criação de conceitos, aparentemente forjados de maneira lógico-dedutiva e, pois, racional, confere ao discurso jurídico uma espécie de autoridade pedagógica[22]: o arbítrio ínsito à tomada de decisão é escamoteado por meio de símbolos dogmáticos. É a retórica da cientificidade e da universalidade. A autoridade produzida por essa simbologia conceitual torna a argumentação jurídica nela embasada plausível, crível e, portanto, legítima, visto que reconhecida no tecido social. Dessa forma, ao transformar vontade em ciência, decisão casuística do intérprete em império da lógica legal, a construção de conceitos jurídicos tem o condão de atrair maior aceitação social ao controle de condutas realizado pelo direito, na medida em que apela para as noções de imparcialidade, coerência lógica, completude e autonomia, todas, valorizadas pelo ideário positivista. Confere-se legitimidade, a qual se fixa justamente na crença geral de que o direito é aplicado de modo objetivo e neutro, à prescrição[23].

O preço pago, porém, para poder-se continuar a participar desse jogo de escamoteação e de abstração é a vinculação do jurista ao eterno jogar[24]. Em sendo desvelados os reais fundamentos das decisões, as bases de sustentação do mundo jurídico ruiriam no exato sentido de fazê-lo perder sua aceitação social, tornando ateus os até então crentes. Desfeita a crença na objetividade e na cientificidade de todo o aparato teórico criado pela dogmática jurídica, o que era direito legítimo torna-se arbítrio espúrio. Diante disso, para que tais efeitos negativos sejam evitados, o jurista desenvolve suas exposições em torno de alguns conceitos jurídicos centrais, eleitos conforme as demandas do caso concreto, os quais o permitem, além de neutralizar seus interesses (função ideológica), criar novos argumentos para poder fundamentar a defesa de seus interesses, atraindo plausibilidade para seu discurso e, pois, tornando-o mais aceito. Volta-se, então, à função heurístico-retórica da conceituação.

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Sobre a autora
Laila Iafah Goes Barreto

Advogada. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito do Recife - UFPE. Mestranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE. Bolsista CAPES e, na graduação, bolsista da Fundação Baden Württemberg (durante o intercâmbio de 1 ano na Alemanha)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARRETO, Laila Iafah Goes. A formação da federação nacional enquanto processo de construção de um novo conceito jurídico: : atuação retoricamente estratégica com vistas à positivação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4065, 18 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31009. Acesso em: 22 dez. 2024.

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