Hoje trago à baila e vou repudiar outra prática historicamente obstativa do amplo acesso à tutela do Estado-Juiz. Refiro-me ao acolhimento de exceções de incompetência territorial em casos de reclamantes que deixaram o lugar da prestação de serviço.
Como se sabe, o polo ativo da lide trabalhista, via de regra, é ocupado por um trabalhador desempregado, quase sempre hipossuficiente, para não dizer miserável. Justamente por isso, o legislador de 1943, ao editar a CLT, propiciou proteção ao trabalhador (parte economicamente frágil da relação processual), compensando, destarte, o desequilíbrio econômico, considerando-se que o demandado é, de hábito, a parte poderosa da relação jurídica havida. Com efeito, se as regras do processo do trabalho têm como destinatário principal o empregado, na sua presumida qualidade de hipossuficiente econômico e se o processo do trabalho se orienta por princípios que visam o livre acesso à jurisdição, não se pode conceber que nele – processo do trabalho – as respostas dadas ao jurisdicionado estejam em conflito e não se harmonizem com esses princípios.
Então, cabe indagar: os juízes do trabalho estão, de fato, observando esses princípios tutelares quando apreciam exceções de incompetência em razão do lugar?
Para responder essa indagação, nada melhor do que a análise de um caso concreto.
Uma empresa, a qual chamarei de CARACARÁ IMPLEMENTOS LTDA, apresentou exceção de incompetência ratione loci, em síntese alegando que o reclamante/excepto fora contratado para laborar em Itabirito-MG e jamais prestara serviço para a excipiente na cidade de São Luís. Pugnou no sentido de que o juiz da 3ª VT de São Luís declinasse da competência em favor de uma das varas de Ouro Preto-MG.
O empregado/excepto pediu fosse a exceção rejeitada, alegando que, embora tenha efetivamente laborado em Itabirito-MG, fizera exames médicos admissionais em São Luís, além de ter viajado em transporte subsidiado pela excipiente. Também alegou que estava sem emprego e pleiteando verbas contratuais e rescisórias, de modo que não tinha meios para viajar e comparecer à audiência em Ouro Preto.
Fosse o leitor o juiz, acolheria a exceção de incompetência territorial, à vista do disposto no art. 651 da CLT?
Há anos, desde 2000, rejeito declinatórias de foro apresentadas em casos como esse. E, modéstia à parte, passei a fazê-lo com certo pioneirismo, considerando que tanto aqui, na 16ª Região, quanto no resto do Brasil - e mormente no c. TST - vigorava o entendimento baseado na interpretação literal da norma insculpida na cabeça do art. 651 da CLT, verbis:
Art. 651 – A competência das Juntas de Conciliação e Julgamento é determinada pela localidade onde o empregado, reclamante ou reclamado, prestar serviços ao empregador, ainda que tenha sido contratado noutro local ou no estrangeiro.
Ora, não há como bem solucionar o incidente acerca da competência territorial sem levar em conta as respostas para duas outras perguntas: (1) Se o juízo se der por competente e rejeitar a exceção de incompetência, qual prejuízo terá a reclamada? (2) E caso venha a acolher a declinatória de foro, qual prejuízo advirá ao reclamante?
Considerando-se incompetente para instruir e julgar a reclamação, remetendo-a para uma das varas de Ouro Preto, o juiz estaria fechando as portas da Justiça do Trabalho ao empregado/excepto. Afinal, o trabalhador tem domicílio muito distante do local da prestação de serviço, circunstância que inviabilizaria o acompanhamento da reclamação trabalhista no estado de Minas Gerais.
Ou seja, caso decidisse por acolher a exceção, o juiz, na verdade, estaria negando ao trabalhador a decantada garantia constitucional do mais amplo acesso ao Judiciário (art. 5º, XXXV, da CF/88).
Não se pode esquecer que o reclamante tem a seu favor a presunção de hipossuficiência. E como ele estava a pleitear verbas contratuais e rescisórias por haver perdido o emprego, é de se supor que estivesse sem renda. Sem renda, era pobre na forma da lei. Sendo pobre e sem renda, como poderia se deslocar até Ouro Preto?
Já a reclamada, que prejuízo sofreria se a ação fosse instruída e julgada em São Luís?
Arrisco-me a dizer que nenhum. Não há falar em gastos com passagens e hospedagem do proposto e do advogado. Essas despesas são anteriores à decisão acerca da competência em razão do lugar e são feitas até para que a exceção possa ser validamente apresentada em audiência. Também não se poderia alegar prejuízo à sua defesa. Afinal, a prova documental da empresa deve vir com a contestação, entregue na audiência inaugural, e a sua prova testemunhal poderia ser colhida na VT de Ouro Preto, via carta precatória.
Portanto, pode-se afirmar que nenhum prejuízo sofreria a reclamada, se a exceção de incompetência fosse rejeitada.
Então, não há motivo ponderoso para o acolhimento de exceção de incompetência territorial em casos que tal, a não ser que se queira negar jurisdição ao reclamante.
A propósito, convém fazer um ligeiro escorço histórico. É fato que a CLT foi elaborada com inspiração também no CPC. Porém, deve ser interpretada sem que se perca de vista os princípios que tutelam o trabalhador. Portanto, ao prever o legislador, no caput do art. 651 da CLT, que “A competência das JCJ é determinada pela localidade onde o empregado, reclamante ou reclamado, prestar serviço ao empregador...”, assim o fez com o propósito de impedir que o empregador, prevalecendo-se da fragilidade econômica do empregado, celebrasse o contrato de trabalho elegendo um foro de sua preferência para a dirimência de eventual controvérsia decorrente da relação empregatícia.
Ou seja, quando do advento da CLT, a esmagadora maioria dos trabalhadores prestava serviço na mesma localidade em que residia. Visando a sua proteção e para impedir que a dirimência da lide trabalhista ocorresse em foro distante do domicílio do hipossuficiente, o legislador celetista estabeleceu que, ordinariamente, a competência para o julgamento da lide seria do juiz da localidade onde o empregado, reclamante ou reclamado, prestara serviço.
Portanto, acolher a exceção de incompetência territorial no caso paradigma aqui adotado seria ir de encontro à vontade do legislador, em total desprestígio aos princípios tutelares reitores da CLT, embora a interpretação meramente literal do caput do art. 651, da Consolidação, possa sugerir outra coisa.
Sucede que a interpretação literal e gramatical da legislação é, sabidamente, a mais pobre e perigosa das interpretações. Não raro, leva o intérprete a se desviar da mens legis (verdadeiro objetivo do comando normativo), com desastrosas conseqüências. É o que ocorre quando o juiz, em casos como o aqui trazido a comento, esquece os fins sociais aos quais a norma se dirige, máxime a proteção que se deve dar ao trabalhador, e acolhe a exceção de incompetência ratione loci.
Ademais, a questão debatida nestes autos deve ser interpretada em consonância com os métodos de interpretação advindos do direito constitucional, aplicáveis analogicamente ao caso em espécie, conforme passo a demonstrar.
Como bem destacado pelo Desembargador ALCEBÍADES DANTAS, do e. TRT da 16ª Região, em memorável acórdão (in Recurso Ordinário nº 560-2001-005-16-00-8), “o artigo 651 da CLT e seus parágrafos - e em especial o §3º - devem ser interpretados de acordo com os novos conteúdos históricos, sociais e políticos vigentes, os quais não foram pensados pelo legislador quando da redação da norma, isto, sem lhe modificar a estrutura extrínseca formal. É o que em Direito Constitucional se chama de ‘mutação constitucional’, assim definida por Luís Roberto Barroso, apud Mauro de Azevedo Menezes como consistente “na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação do seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente do constituinte” (Constituição e reforma trabalhista no Brasil: interpretação na perspectiva dos direitos fundamentais/Mauro de Azevedo Menezes- São Paulo: LTr, 2003, p.192)”.
Portanto, é de se analisar a questão posta em face da nova realidade social, histórica e jurídica, a qual, evidentemente, não é mesma de 1943, quando a CLT veio à lume. Vale dizer, impõe-se interpretar o artigo 651 da CLT de forma sistemática e integrada aos preceitos normativos do artigo 1º, II e III e 5º, XXXV, ambos da CF, e reconhecer a competência da vara do trabalho do local onde o trabalhador se encontra, onde poderá ter acesso à Justiça do Trabalho de forma fácil e digna, podendo exercer, assim, a sua cidadania de forma plena.
Por fim, é auspicioso constatar que a jurisprudência do c. TST vem evoluindo quanto ao tema aqui apresentado, graças, sem dúvida, à chegada de ministros de vanguarda como KÁTIA MAGALHÃES ARRUDA e MAURÍCIO GODINHO DELGADO, os quais referendam o entendimento esposado por juízes que, como eu, há anos proclamamos o que não deixa de ser uma obviedade ululante, todavia lamentavelmente esquecida por muitos operadores do direito do trabalho: “a finalidade precípua das regras de competência territorial, no âmbito da Justiça do Trabalho, é beneficiar o parte hipossuficiente, sob pena de negar-se acesso à Justiça”. A propósito, vale transcrever e festejar recentíssimas decisões do TST, in verbis:
COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO EM RAZÃO DO LUGAR. AJUIZAMENTO DA AÇÃO NO DOMICÍLIO DO RECLAMANTE. No processo do trabalho, ao contrário do processo civil, as regras de competência relativa têm como destinatário principal o empregado, na sua presumida qualidade de hipossuficiente econômico. O legislador visou a garantir o pleno acesso do obreiro ao Judiciário Trabalhista, consoante o teor do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, assegurando-lhe o princípio da proteção, ínsito ao Direito do Trabalho. Dessa forma, é possível aplicar à hipótese a exceção prevista no § 1º do artigo 651 da CLT, que atribui competência à Vara do Trabalho do domicílio do reclamante, quando inviabilizado o ajuizamento da reclamação trabalhista no foro da celebração do contrato ou da prestação dos serviços. Essa interpretação, além de melhor corresponder à letra e ao espírito do artigo 651, caput e parágrafos, da CLT, mostra-se mais consentânea com o princípio constitucional de acesso à Justiça e com a constatação prática de que, em muitos casos, a exigência legal de que o trabalhador que ajuizasse a reclamação no lugar em que prestou serviços acabaria por onerar, excessivamente, o exercício do direito de ação pela parte hipossuficiente. Por outro lado, em se tratando de arguição de incompetência relativa, era necessário que a reclamada demonstrasse manifesto prejuízo a justificar o deslocamento da competência para a Vara do Trabalho de Uberlândia, local da contratação do reclamante e sede da reclamada, o que não ficou comprovado nos autos, como afirmado pelo Tribunal a quo. Conclui-se, portanto, que o Regional, ao rejeitar a exceção de incompetência para processar e julgar esta demanda trabalhista, atendeu aos fins sociais a que a norma se dirige e garantiu o livre acesso do reclamante ao Judiciário, previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, permanecendo incólume o artigo 651, § 3º, da CLT. (Processo: RR - 134700-12.2008.5.23.0051 Data de Julgamento: 11/12/2013, Relator Ministro: José Roberto Freire Pimenta, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 19/12/2013).
RECURSO DE REVISTA. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA TERRITORIAL. ART. 651 DA CLT. RECLAMAÇÃO AJUIZADA NO DOMICÍLIO DO RECLAMANTE. POSSIBILIDADE. O eg. TRT manteve a r. sentença que não acolheu a exceção de incompetência territorial arguida pela reclamada, ao fundamento de que, em face da situação de hipossuficiente do autor, é perfeitamente possível o ajuizamento da ação no local de domicílio (Mafra), distinto daquele onde prestou serviços (Rio Negro). Registrou que São José dos Pinhais (Unidade Judiciária de Rio Negro) é distante do local de domicílio do autor e que houve notícia de fechamento do Posto de Rio Negro e, ainda que assim não fosse, seu funcionamento tem sido como Posto Itinerante, o que dificulta o acesso à Justiça. Ressaltou, por fim, que, apesar de pertencerem a estados diferentes, as cidades Rio Negro e Mafra são circunvizinhas. Em estrita observância às normas de proteção do empregado, basilar no direito do trabalho, deve-se privilegiar o juízo da localidade que seja mais acessível ao trabalhador, beneficiando a parte mais hipossuficiente economicamente. Isso porque a finalidade precípua das regras de competência territorial, no âmbito da Justiça do Trabalho, é beneficiar o empregado, parte hipossuficiente, sob pena de negar-se acesso à Justiça. Daí, a observância literal do artigo 651 da CLT, pode possibilitar, em determinados casos, a denegação do próprio acesso à justiça, como se denota no caso em apreço. Ora, se o reclamante reside atualmente na cidade de Mafra/SC, local distante de São José dos Pinhais e, como alega em sua petição inicial (a fl. 7), não tem condições de arcar com as custas e despesas processuais, impor a fixação da competência para o local em que foi contratado e prestou serviços (Rio Negro/PR), é fixar como competente local de difícil acesso para o reclamante, tornando inexequível o seu acesso à Justiça. Arestos inespecíficos. Recurso de revista não conhecido. (Processo: RR - 839-96.2012.5.12.0017 Data de Julgamento: 12/02/2014, Relator Ministro: Aloysio Corrêa da Veiga, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 14/02/2014).
RECURSO DE REVISTA. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DO LUGAR. DOMICÍLIO DO EMPREGADO. Esta Corte, em respeito aos princípios constitucionais do amplo acesso à Justiça, da razoabilidade, da eficiência, e, mais, considerando a característica comum de hipossuficiência do trabalhador, vem admitindo a possibilidade de fixação da competência à Vara do Trabalho do domicílio do reclamante, quando inviabilizado o ajuizamento da reclamação trabalhista no foro em que firmado o contrato ou no da prestação dos serviços. Precedentes. Recurso de revista de que não se conhece. RECURSO DE REVISTA. RITO SUMARÍSSIMO. DURAÇÃO DO TRABALHO. HORAS IN ITINERE. LIMITAÇÃO POR NORMA COLETIVA. POSSIBILIDADE, DESDE QUE OBSERVADA A RAZOABILIDADE. Conforme recente entendimento da SBDI-1 do TST, seguido por esta Turma, em atendimento ao princípio da razoabilidade, a limitação do direito ao pagamento da hora in itinere ao período fixado na norma coletiva é possível, mas deve ser condizente com a realidade. No caso, o reclamante gastava duas horas e meia por dia no deslocamento casa/trabalho/casa, e a norma coletiva limitou o pagamento das horas in itinere apenas a uma hora diária, o que não se considera razoável. Precedentes da SBDI-1 do TST. Recurso de revista de que não se conhece. (Processo: RR - 903-93.2012.5.18.0129 Data de Julgamento: 12/02/2014, Relatora Ministra: Kátia Magalhães Arruda, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 14/02/2014).